Radioactive escrita por Sammy Martell


Capítulo 1
O Grito da Orfã




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POV Anne

Respirei fundo antes de abrir os grandes portões de vidro da estufa. Os botânicos caminhavam de um lado para o outro com pranchetas ou mudas de plantas, haviam discussões em alguns pontos, mas nada que realmente precisasse me preocupar, afinal meu principal objetivo ali era encontrar Elia.

E como se num passe de mágica, ela praticamente brota ao meu lado.

- Bom dia Anne. Espero que esteja preparada para o dia de hoje. – diz a mulher.

Sorrio para ela.

- Claro, no que posso ajudar?

- Bem – Elia junta as mãos em um sonoro clap com um sorriso no rosto – preciso de alguém que possa ajudar a descarregar a entrega de mudas e depois preciso que você passe em minha sala, acha que pode fazer isso?

Assento, indo em direção ao vestiário.

Nas estufas cada botânico tem seu próprio armário de modo que podíamos guardar nossos jalecos e luvas em algum lugar sem sermos roubados. Grande parte dos botânicos tinha algo com o que personalizar seu armário, fotos de familiares ou amigos, eu? Eu mal tinha amigos. Meu armário era sem graça assim como a minha vida.

Após colocar meu jaleco e as luvas adequadas me dirijo para as portas dos fundos, encontrando lá o caminhão com fileiras e mais fileiras de mudas. Dois soldados conversavam apoiados no caminhão enquanto deveriam estar descarregando as mudas. Reviro os olhos, eles nem parecem me notar, portanto resolvo que posso fazer tudo aquilo sozinha.

Encaminho-me até o caminhão pegando a primeira bandeja de mudas e no momento em que o faço me arrependo amargamente de não ter pedido ajuda aos soldados, afinal eu estou fazendo o trabalho deles.

Algumas mudas em uma bandeja pode ser algo pesado e eu admito: não sou das pessoas mais fortes. Portanto já era esperado que o acidente seguinte ocorresse; eu derrubo a bandeja.

Para a minha sorte elas ficaram presas no ar, como se algo as segurasse. Revirei os olhos no momento em que foram recolocadas na bandeja cuidadosamente, ele não pode fazer isso, não na frente de dois soldados.

- Seu idiota. – murmuro – Eu sei que está ai – disse, dessa vez em um tom mais alto, não muito para não ser ouvida pelos guardas, mas o bastante para ele ouvir.

Seguro a bandeja o mais rápido possível antes que tal alcance o chão, assim evitando que os guardas percebam que algo está errado.

- Seja mais cuidadoso, você sabe que qualquer coisa antes da Partida pode me levar junto com eles. – sussurro para o vulto.

Pelo canto do olho percebo os guardas me lançarem olhares estranhos, parando sua conversa.

Caminho um pouquinho mais rápido, deixando a bandeja em cima de uma caixa. Aponto para o resto indicando para eles o que devem fazer.

- Elia quer me ver. – digo saindo rapidamente.

Quando entro novamente na estufa percebo que minha mão esquerda está tremendo, o que é um sinal de que estou nervosa. Mesmo assim resolvo ignorar isso e seguir caminho até o escritório de Elia.

Empurro as portas de madeira da sala dela.

- Já? – diz em um tom espantado.

- Pedi para alguns soldados me ajudarem. – dou de ombros. – Por que você queria falar comigo mesmo?

Elia se levanta da cadeira em que estava, andando em minha direção. Ela coloca as duas mãos em meus ombros, uma de cada lado e me puxa para um abraço.

- Anne, você tem tomado cuidado? – pergunta em um tom preocupado.

- Claro.

- A Partida é amanhã. – sussurra – Eu prometi a sua mãe que não deixaria que matassem você.

- Por que está tão preocupada agora? – me solto de seu abraço.

- Anne, hoje Aiden perguntou se eu tinha visto algo de diferente em você.

Eu fico paralisada, talvez eles saibam

- Você tem certeza? Quero dizer e se...

Elia coloca um dedo sobre meus lábios, me impedindo de continuar.

- Nada vai acontecer, por isso, faça um favor para mim – ela sorri – Vá para casa e tome um dia de folga.

Assinto, mesmo com o medo me consumindo por dentro. Estou trêmula e tudo que quero fazer é chorar, mas eu me seguro, sou Anne e eu não choro por nada, nada mesmo.

Calmamente fecho o portão do orfanato atrás de mim, com as mãos nos bolsos de meu casaco eu caminho pelas pedras molhadas pela chuva.

Nós estamos em um local nos Estados Unidos em que chove pouco e apenas uma ou duas vezes por estação, claro se tivermos sorte. E hoje é um dia de sorte afinal.

Na hora em que chego no casarão que é o orfanato, já estou completamente encharcada e, antes que possa entrar, sou impedida por uma das freiras.

- Senhorita Anne, você acha que pode simplesmente entrar aqui assim? – ela aponta para as minhas roupas que estão, no momento, ensopadas.

- Irmã Lacy, esse lugar poderia usar um pouco de água, afinal não é todo dia que chove aqui na resistência.

- Aula de história da sala três, por que não acha algo para se ocupar? – mas antes que eu possa entrar, ela me para novamente – Vá pelos fundos.

Reviro os olhos entrando novamente na chuva, não há uma maneira de entrar na casa encharcada sem que seja punida por uma freira. Elas levam disciplina muito a sério e isso e muito irritante às vezes.

Nas resistências, ser órfão significa que você ficará preso para sempre em um orfanato, não há um motivo para as pessoas adotarem uma criança aqui, é apenas mais uma boca para alimentar todos os dias e comida aqui não é barata.

Mas morar no orfanato, embora signifique ter comida e água de graça, significa ter que aturar as freiras todos os dias sem férias. Nós aprendemos a escrever e ler, mas não somos tão cultos quanto os escribas, aprendemos história e geografia e, infelizmente, matemática. A única pessoa nessa resistência inteira que gosta de matemática é provavelmente...

- Buh! – exclama alguém atrás de mim, exatamente com quem eu queria falar.

Viro para trás inabalada.

- Peter seu grande idiota, vamos para dentro agora. – digo em um tom baixo para não ser ouvida pelas freiras ou os outros órfãos.

- O que eu fiz de errado dessa vez? – ele pergunta franzindo a testa.

- Você estava me observando hoje?

Ele parece parar por um momento como se pensasse em uma mentira.

- Não... – começa a sua desculpa.

- Por que tentou me ajudar, isso foi uma tremenda idiotice. – interrompo-o.

- Anne, seja um pouco mais agradecida, eu salvei algumas mudas medicinais para você. – ele sussurra, mas ao mesmo tempo parece que está gritando. – De qualquer maneira, você normalmente não parece se importar, o que está te deixando tão nervosa?

- Pessoas começaram a desconfiar, ok? – cruzo os braços.

Peter percebe o quão grave é a situação e não insiste em continuar brigando, apenas ficando quieto ao meu lado.

Nós dois continuamos nosso caminho até o orfanato, estamos tão perto da cozinha que já posso sentir o cheiro do jantar que está sendo preparado. O cheiro fica mais intenso quando abro a porta dos fundos.

Berta, a cozinheira do orfanato é uma mulher que sempre foi apaixonada por culinária, ela faz mesmo a pior gororoba daqui parecer fantástica e o melhor de tudo? Ela nos ama, mais do que qualquer freira.

- Os dois estão encharcados! – exclama enquanto limpa suas mãos no avental para nos abraçar – Venham, venham, vamos achar roupas secas.

Berta nos dá toalhas próximas, o que não é o bastante, mas ajuda muito. Logo, a pequena cozinheira que alcançava, por pouco, meu ombro, nos conduz até o corredor dos quartos, tendo certeza de que não seríamos vistos pelas freiras.

Assim que fico sozinha em meu quarto, meu pequeno espaço particular, me deito em minha cama pensando no que poderia ter feito com que os guardas suspeitassem de mim, quero dizer, eu sei que as mudas flutuaram e eu sei que falei sozinha, mas existem pessoas que simplesmente são malucas.

Então use isso em seu julgamento, penso.

Quem me dera poder ficar mais um ano aqui, escondida dos detectores e olhares desconfiados que todos me lançam. E sobre Elia? De acordo com a lei ela é minha cúmplice se sabia sobre os meus poderes e isso pode acabar com esta sendo exilada comigo, o que quero evitar que aconteça.

Eu me deito na cama e rapidamente pego no sono, uma habilidade que tenho e me orgulho, afinal não passo horas procurando uma posição confortável.

O sonho que tenho é estranho; no fundo de minha mente consigo ouvir esse barulho, como se fosse um disco rodando e rodando e rodando, nunca parando, estou parada em um corredor a tempestade se fora, era pleno dia de sol e lá estou eu, parada olhando para a janela completamente hipnotizada. Passo por passo começo a ir em direção ao som que ouço, abrindo porta a porta, mas nenhuma delas é a origem do som, por isso, continuo tentando até que começo a me aproximar do fim do corredor, cada vez menos e menos portas. O desespero cresce dentro de mim, eu preciso saber, preciso acabar com aquilo de uma vez por todas, pois não consigo aguentar esse maldito som. Atinjo o fim, tendo como única opção as escadas para sótão.

Cuidadosamente subo degrau por degrau até que alcanço o alçapão e o abro, para minha felicidade lá está o tocador de disco que tanto procuro. Quanto mais perto vou ficando, melhor consigo ouvir o som e logo percebo que são sussurros, todos chamando meu nome, em tons e vozes diferentes, mas todos dizem a mesma palavra: Anne.

As vozes começam a falar mais alto e mais alto até que são gritos, pessoas gritando meu nome com puro desespero em suas vozes. Coloco minhas mãos sobre meus ouvidos tentando bloquear o som, mas é impossível uma vez que parar de ouvi-las de tão alto que gritam.

Estendo o braço para parar o disco e no momento que o toco as imagens enchem minha cabeça.

É um incêndio, crianças morrendo, adultos tentando salvá-las e morrendo no processo, todos gritando como se não houvesse amanhã e para eles provavelmente não haverá. E naquele momento tudo me atinge de uma vez, aquele é o mesmo terreno do orfanato.

Eu acordo gritando, como se estivesse tentando copiar o grito das crianças, tão alto que aposto que toda a resistência me ouviu.

Alguns órfãos e Peter abrem a porta do meu quarto para me acharem encolhida, chorando enquanto abraço minhas pernas, cacos de vidro por todos os lados em meu quarto.

Meu amigo é o primeiro a fazer uma ação enquanto todos os outros ainda estão muito chocados para superar o que acaba de acontecer, Peter coloca um braço e meu ombro em uma tentativa falha de me acalmar.

Não estou chorando porque sinto cacos entrando em meus pés, muito menos porque agora sei que estou na lista de pessoas que serão levadas amanhã; estou chorando porque alguém vai morrer e posso pressentir isso.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!



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