Um Outro Lado da Meia-Noite escrita por Gato Cinza


Capítulo 9
Chuva




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/544239/chapter/9

Era noite de chuva, eu tinha nove anos. Minhas irmãs estavam na casa nova de Margarida e David, eu estava pescando com Narciso e chegamos em casa tarde demais para que fosse com elas. Meu pai havia prometido que me levaria para casa de minha irmã assim que fosse dia, eu estava impaciente e praticamente obriguei os dois dormirem mais cedo para que logo amanhecesse logo – coisa de criança. Então quando todos dormíamos ele veio, uma fera que não era nem animal nem humano.

Não me lembro da aparência exata, mas me lembro das garras, das presas e dos olhos alaranjados brilhantes humanos, eram olhos humanos o bastante para demonstrar ódio. Lembro-me dos gritos de meu pai quando aquela coisa começou a ataca-lo, me lembro da explosão de magia que liberei reduzindo a criatura á cinzas. E me lembro do sangue. Nunca em minha vida eu tinha visto tanto sangue, e papai... ele estava ferido, muito ferido, Narciso me trancou no quarto dele. Era dia quando abriram a porta, meu pai não estava mais em meu quarto, minhas irmãs choravam. David me arrastou de nossa casa e me levou com minhas irmãs para casa dele. Por dias as pessoas nos visitaram, muitos queriam saber o que tinha acontecido:

“Foram feras do inferno, as marcas em Inácio não eram feitas por mãos humanas e nem objeto nenhum conhecido”, “Tentaram matar a menina dele quando dormiam e ele acabou morrendo por ela”, “Pobre família, primeiro a mãe, menos de oito anos depois o pai”... os comentários e os especulações eram mais amenos á cada vez que eu ouvia. Quase matei uma mulher alguns meses depois da morte de meu pai, estávamos saindo do ferreiro onde Narciso fora encomendar algumas ferramentas para reparos de uma carroça quando ouvi: “Aqueles são os filhos dos Belaya, o demônio veio fazê-los pagar pelos pecados daquela bruxa... Odete”. Me virei para ela, voou por cima de um chafariz e bateu contra uma casa alta, ficou toda quebrada, mas sobreviveu para nunca mais falar contra minha família.

Revivi a morte de meu pai varias vezes, não ia ter outro pesadelo, resolvi que eu não ia mais dormir, fiquei deitada no chão do quarto de Magnolia até me transformar em humana e depois fiquei sentada em uma cadeira olhando para a janela e desejando que amanhecesse logo.

– Por que está usando capa? – perguntou Magnolia entrando na cozinha quase as cinco da manhã – Que cheiro á esse?

Estava usando um manto preto que ia até os pés e capuz para esconder os ferimentos em meu corpo.

– Chá – respondi a segunda perguntas, virando o chá no coador e observando a cor escura do liquido fumegante – Cheira bem, né?

– Tem cheiro forte, chá de que é isso?

– Se chama café, veio da colônia portuguesa na America. Verbena que me deu, disse como fazer. Tenho que sair.

– A onde vai?

– Não sei – respondi dando de ombros

Pelas garras do Gato

Morticia de fato não sabia para onde ir, queria apenas evitar as perguntas dos irmãos caso a vissem ferida. Os músculos do seu corpo ainda estavam dormentes, e a forma humana parecia lhe castigar agora que o dia amanhecera. Morticia vagou pela estrada sem nenhum destino, os pés doíam a cada passo, mesmo assim ela não conseguia parar de andar. Não pensava em nada, apenas andava. Nem mesmo percebeu a chuva fina que começou a cair.

A chuva caia cada vez mais forte. Dylan guiava seu coche pela estrada lamacenta não teria saído de casa se não tivesse urgência em enviar uma carta, estava preocupado com as mudanças repentinas do tempo. Esperava que isso não atrapalhasse as viagens ferroviárias, precisava ir para a Bologna e pegar um transporte até Ligúria, o pior é que deveria estar em Gênova fazia quatro dias. Ele foi tirado de seus pensamentos ao notar uma figura que andava a passos lentos pela estrada. Assim que estava perto o bastante disse em voz alta:

– Senhorita suba aqui – ela ignorou e seguiu andando

Dylan colocou seu coche no caminho de Morticia que começou uma curva para desviar da carruagem.

– Ei! Vai adoecer se não sair desse temporal – disse quase gritando

Morticia ergueu os olhos para ele sem mesmo o ver. A frente do vestido cinza - que agora podia ser preto - estava sujo de lama até os joelhos e havia respingos marrons até acima da cintura, o capuz do manto que vestia havia caído para trás e os cabelos estavam grudados no rosto magro, a pele estava tão branca quanto algodão deixando os ferimentos em um tom perturbador de vermelho, os lábios finos estavam azuis e os olhos desfocados. Dylan tirou a sua capa e desceu da carruagem para ajuda-la a subir, mas ao estender a mão Morticia se afastou pisando na barra do vestido e caindo sentada em mais lama.

– Não vou te fazer mal – disse Dylan – Só vou te levar para sua casa

– Não vou para casa – disse Morticia sentando-se como se a chuva e a lama não estivessem ali

– E para onde vai nessa chuva? – Dylan estendeu a mão para ela mais uma vez – Venha de deixo na cidade então.

Morticia olhou para a mão de Dylan como se fosse algo que visse pela primeira vez, então exclamou surpresa:

– Eu te conheço!

– Claro, esteve ontem em minha casa – Dylan estava começando achar que ela tinha problema mental – Mas você fugiu, me chamo Dylan.

Embora tivessem se visto mais de uma vez, ainda não haviam sido apresentados de modo formal.

– Meu nome é... Morticia. Chamam-me de Morticia – disse ela experimentando o som de seu nome.

– Olá Morticia, vamos sair dessa chuva?

Ele se achou um demente falando com ela como se fosse um velho explicando á uma criança que ficar sentada na chuva não é boa ideia. Morticia estendeu a mão e se deixou ser ajudada por ele. Então ela estremeceu e piscou confusa.

Morty narrando

Senti um frio percorrer meu corpo – o que eu queria? Estava encharcada até os ossos debaixo daquela chuva – Dylan segurava minha mão e me olhava de forma estranha como se eu fosse uma coisa rara e interessante. O que tinha acontecido? Olhei em volta até onde consegui ver pude concluir que estava muito longe de casa, e pelas condições de minha roupa eu deveria estar no mínimo parecendo uma desmiolada.

– Venha, te deixo na cidade – disse Dylan me ajudando a subir no coche

Eu não estava indo para a cidade, aliás eu não estava indo á lugar nenhum, mas julgando a distancia em que eu estava e fato de estar tremendo de frio aceitei de boa vontade que ele me levasse até a cidade, ia aproveitar e conversar com Verbena sobre meu ultimo encontro com a criatura de olhos alaranjados.

– O que estava fazendo debaixo desse temporal? – perguntou Dylan me passando sua capa seca.

– Estava caminhando e começou a chover – respondi o que acredito seja a verdade

– Devia ter procurado um lugar para se abrigar da chuva, pode pegar uma pneumonia.

Concordei com um dar de ombros, eu teria sim procurado um lugar para me abrigar se tivessem consciência que estava chovendo, mas eu me lembro do que me aconteceu depois que sai do território de minha casa, não lembro nada. O resto do caminho nos mantivemos em silencio, eu estava tremendo de frio e Dylan nãoparava de me lançar olhares nervosos como se temesse que eu virasse uma pedra de gelo na sua frente ou coisa assim.

– Onde te deixo? – perguntou quando entramos na vila central, a parte mais concentrada da cidade.

– Pode me deixar ali – disse apontando uma arvore

– Nem pensar que vou te deixar na rua debaixo d’água, me diga para onde está indo que te deixo lá.

Disse a ela o endereço de Verbena e vinte minutos mais ou menos chegamos. Dylan me acompanhou até a porta – acho que ele pensou que eu ia mudar de caminho quando ele se afastasse – foi Francesca quem abriu a porta.

– Senhor do céu vocês estão ensopados – disse ela nos fazendo entrar – Venham para perto da lareira, Lucca acabou de acendê-la.

Lucca era o cocheiro dos Quarini, um senhor de idade avançada que na minha opinião deveria repousar em sua casa e ser remunerado por seus anos de trabalho.

– O barão está em casa? – perguntei quando ela retornou com algumas toalhas

– Não senhorita, ele não se encontra. A baronesa pediu para que fosse se secar em sua suíte e trocar suas vestes. O senhor me acompanhe.

Dylan me olhou e seguiu Francesca, eu subi para o quarto de minha irmã. Verbena havia separado um vestido para mim e preparado algumas toalhas, mas ao me ver ela correu em minha direção com os olhos arregalados

– Morticia o que te aconteceu? Está toda machucada.

– É uma longa historia Verby, posso me aquecer primeiro?

Ela ficou me analisando fisicamente até eu estar novamente vestida, foi quase um vexame me trocar na frente de outra pessoa, mas Verbena teria me amarrado e arrancado minhas roupas para poder ver até onde iam os ferimentos de meu corpo. Mas não me fez nenhuma pergunta ou comentário.

– Farei um banho de ervas cicatrizantes para você - disse ela quando descíamos.

Dylan estava na frente da lareira quando chegamos á sala, suas roupas estavam todas amarrotadas o que me fez imaginar se ele mesmo havia torcido para que se secassem.

– Senhor Walker, devo agradecê-lo por me trazer essa teimosa – disse Verbena me olhando feio como se eu tivesse culpa de chover – Nos acompanha em um chá?

– Não senhora baronesa, tenho muito que fazer ainda - se virou para mim me olhando daquele jeito estranho de quem analisa algo raro - Morticia... cuide-se.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

narrei parte do capitulo por que ficaria muito estranho a Mort narrar algo da qual ela não se lembraria depois



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Um Outro Lado da Meia-Noite" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.