Um Outro Lado da Meia-Noite escrita por Gato Cinza


Capítulo 39
O menino das sombras




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— Andreas – chamei sacudindo o corpo de meu sobrinho, inconsciente – Andreas, acorde.

Não sei quando ele chegou ali, acordei e lá estava o corpo do filho de Margarida estirado no chão frio de pedra do calabouço fedorento onde Verbena tinha nos jogado. Minha irmã maluca deve estar planejando algo muito ruim para trazer uma criança para este lugar, isso supondo que ela ainda se importe com o fato de que Andreas é uma criança.

— Tia? – ele murmurou entreabrindo os olhos.

— Você está bem? – perguntei – Como veio parar aqui?

— Tia Verbena me trouxe. Ela disse que íamos passear e que me traria onde a senhora estava – ele ficou quieto de repente olhando para nossa cela e percebendo que eu estava presa pelos pés – Onde estamos?

— Em uma masmorra. Mas não se preocupe, vamos sair daqui – mortos, possivelmente.

— Eu sei – ele disse com uma convicção anormal para uma criança.

— Não está com medo, por que não está com medo? – chamei-o então – Vem cá, chegue mais perto de mim.

Fiquei tão preocupada em fazê-lo acordar que me esqueci de verificar se ele era real, Andreas de verdade, ou uma ilusão ou feitiço ou uma daquelas malditas criaturas feéricas. Andreas se aproximou sem medo, olhou para meu pé acorrentado e torceu as mãos, um gesto que o pai dele faz quando fica nervoso e que aparentemente é hereditário. Segurei-o pelos antebraços, sim, ele era humano e estava com medo. Mas se era o meu sobrinho ainda não saberia dizer.

— Acha mesmo que vamos sair daqui? – perguntei voltando para meu canto.

— Não vamos? O senhor Leonel disse que ia vir nos buscar se eu achasse a senhora e achei.

— Leo disse isso? Explique.

— Ele disse que a tia Verbena ia me levar para algum lugar e eu devia ir com ela, se ela me levasse para onde a senhora estava era para dizer que está tudo bem e que ele vai tirar a gente daqui, mas se a tia Verbena me levasse para outro lugar era para eu segurar o amuleto e gritar Aco-Apoco... acoplitica...

— Apocalíptica.

— É, era para gritar isso se tia Verbena não me levasse para junto da senhora ou se ela tentasse me machucar...

Sem duvida aquilo tinha sido mesmo uma ordem de Leonel, mandar uma criança de nove anos sem nenhuma experiência com magia explodir tudo á sua volta, é o estilo do meu amigo.

—... Mas aquele homem, o chefe da tia Verbena que gosta de fazer perguntas, ele tirou o amuleto do meu pescoço, depois acordei aqui.

— Eles, a Verbena e... o chefe malvado dela, fizeram alguma coisa com você? Te deram alguma coisa ou falaram algo estranho?

— Tia Verbena disse que ia ficar tudo bem, ela ia me trazer onde a senhora estava e que era para eu ser um bom menino que logo ela me levaria de volta para casa. Ela perguntou se eu queria comer ou beber alguma coisa, mas o senhor Leonel disse que se ela me desse algo para comer ou beber ou segurar eu não devia aceitar por que ia me transformar em uma estatula e não quero virar pedra...

—Estátua – corrigi involuntariamente.

—... o chefe da Tia Verbena falou uma coisa esquisita quando pegou o amuleto, mas não entendi o que era, depois eu fechei os olhos e escutei a senhora me chamar e eu tava aqui.

— Feitiço do sono. Pelo menos te trouxeram para cá. Leo por acaso disse quanto tempo vai levar de quando a Verbena te pegou até ele nos tirar daqui?

Andreas balançou a cabeça negativamente. Ele já tinha engatinhado por toda á mínima cela e agora estava em pé tentando passar por entre as grades, depois de perceber que a portinhola estava trancada. Chamou por Verbena um pouco e começou a se contorcer com as mãos entre as pernas.

— Preciso usar a casinha.

— Sinto muito, mas vai ter que segurar – falei, Andreas não demorou a começar a choramingar – Use aquele canto, eu fecho os olhos.

Me virei olhando para a parede enquanto meu sobrinho usava o canto oposto do cubículo como latrina. Realmente, Verbena podia ter me conseguido um companheiro de cela um pouco mais capaz de segurar a bexiga. Andreas se sentou encostado na grade, de frente para mim, abraçou os joelhos e ficou se balançando.

— Por que a Tia Verbena prendeu a gente aqui? Fizemos alguma coisa ruim? Mamãe diz que pessoas más ficam presas em lugares assim, frio, fedido, sem cama, água e comida como punição dos crimes. É por isso que a Tia Verbena prendeu á gente? Porque fazemos bruxaria?

— Que tolice, Verbena também é uma bruxa então ela não pode nos prender por bruxaria. E não fizemos nada de errado, Verbena está doente, enquanto estiver doente ela vai fazer coisas malvadas contra pessoas boas.

Ele ficou quieto, pensativo.

— Por que ela não vai ao médico? Mamãe diz que os médicos curam doenças.

Ok, aquilo ia ser um dialogo longo e tedioso, como explicar para uma criança que a tia é uma bruxa das trevas que se recusa á ser ajudada? Eu definitivamente, não sou boa com esse tipo de explicação. Dizer que minha irmã está louca e que vai sofrer as consequências de seus atos em um futuro próximo podia não ser o modo certo de informar á Andreas que a tia boazinha dele pretende nos matar para ficar ainda mais poderosa. Fiquei quieta, fingindo ter adormecido. Ouvi passos e alguém de rosto coberto por capuz nos trouxe água e pão. Andreas não tocou naquilo até que eu lhe disse que era seguro, aparentemente nos matar de fome não estava nos planos daqueles loucos.

...

Saber se era dia ou noite fica um pouco difícil quando a única iluminação ambiente é formada por tochas de chamas amarelas. Passo tanto tempo olhando para as paredes que acabo dormindo, então acordo e ainda estou presa. Andreas começou a chorar depois que percebeu que o resgate de Leonel podia demorar muito tempo e a palavra de Verbena de leva-lo para casa não tinha data de validade. Precisei de um pouco mais de paciência que o normal para acalmá-lo enquanto ele soluçava chamando pela mãe.

— Andy, olhe para mim – pedi me controlando para não gritar com ele e causar mais choro – Alguém sabe que você veio com a Verbena? Onde e com quem você estava quando ela te pegou? Andy pare de chorar e me conte desde quando Leo te disse para vir com ela até quando ela te trouxe. Pode fazer isso?

Ele fungou limpando o nariz no braço e entre soluços contou:

— Ele veio há uns dias lá em casa e disse que... eu não posso contar para a senhora. Vai ficar brava e o senhor Leonel disse que era para manter em segredo entre nós três.

— Nós, eu, ele e você?

— Não tia, a senhora não estava lá em casa. Era ele, eu e o homem de olhos de fogo que tem nome de menina... Dia... Dina...

— Dylan?

— É, o senhor Leonel disse que tinha que ficar em segredo entre nós três por que senão á senhora ia ficar muito zangada e contar para a mamãe que eu fiz magia.

— Você usou magia? – Andreas tampou a boca com as duas mãos e me olhou com os olhos castanhos escuros muito arregalados – Está tudo bem, Andy, você usou magia só para me ajudar, não foi? – ele assentiu – Então não há motivos para que eu fique brava com você. Agora me conte o que aconteceu.

— Eles foram na minha casa de noite, quando já estávamos dormindo e me acordaram. O senhor Leonel disse que ia precisar que eu achasse a senhora por que eu era o único que podia fazer aquilo e falou que eu precisava só me concentrar na senhora que o meu cordão faria o resto por mim por que eu era da família. O outro de olhos que queimam me fez repetir um feitiço estranho varias vezes até eu conseguir achar a senhora. Eu vi um casarão estranho, meio parecido com uma igreja, mas sabia que a senhora estava lá e de repente eu falei onde a senhora estava e nem sabia que sabia o nome daquele templo, então o outro homem agradeceu e sumiu. E o senhor Leonel disse que eu devia ficar quieto sobre aquilo.

Dylan cretino. Podia ter me dito que tinha sido meu sobrinho quem o levou até mim quando estava no Templo de Lúcifer, não que eu acreditaria que Andreas tivesse sido capaz de me rastrear. E como Leonel soube que o menino poderia me achar? Aliás, quando os dois se tornaram amigos? Ah! Ficar presa é muito chato, quero respostas para minhas perguntas e tudo o que tenho são informações de um garoto de nove anos que mal consegue pronunciar estátua. Eu quero minha vida de volta. Eu exijo minha vida de volta. Distrai Andreas o fazendo falar sobre como estavam às coisas desde a última vez que nos vimos antes de minha vida sair da rota planejada.

— Tia Mort, a tia Verbena vai machucar a gente?

— Vai – não devia ter respondido tão rápido – Sabe Andy. Há muitos anos atrás nasceu uma criança diferente no mundo das bruxas, ela não tinha sangue real e descendia de uma linhagem de bruxos muito poderosa, mas mesmo não tendo sangue real ela era uma princesa por que foi escolhida para ser. Essa criança devia ter sido treinada por seres poderosos e aprendido á lidar com todos os poderes que tinha, mas ela teve medo. Teve tanto medo de que as pessoas não gostassem mais dela que ela disse não. Não, eu não quero ser princesa e nem vou ser rainha. Então ela tentou viver como uma bruxa comum e ficar longe de tudo que lembrasse que era uma princesa. E um dia as coisas deram errado. Ela conheceu um príncipe do mar que não sabia quem ela era, ela gostava dele e se beijaram, mas ela teve medo e fugiu. O príncipe do mar ficou muito triste e o beijo da princesa o deixou doente, ele ficou malvado e resolveu fazer mal para a princesa e esperou, esperou até que muito tempo depois o príncipe-sombrio resurgiu e agora ele usava toda sua inteligência para controlar o destino da ex-princesa que ainda era tola demais para desconfiar daqueles que ela mais amava. Então tudo começou a ruir ao redor da ex-princesa que fugiu novamente para não enfrentar os perigos e manter sua família á salvo, mas descobriu certa manhã que um velho inimigo de quem ela tinha muita raiva estava de volta á sua cidade e ele se ofereceu para ajudá-la, infelizmente ela descobriu que seu inimigo do passado tinha sentimentos bons e ela não queria machucá-lo então contou para ele que ela era uma princesa e que ia se tornar a rainha em breve. Mas era tarde, por que outra pessoa ocupava o trono que a princesa bobona rejeitou. Essa nova rainha tinha se casado com o príncipe do mar que agora era tão mau que nem mesmo a princesa o reconhecia, e os novos reis juntos tinham um plano terrível, planejavam controlar a escuridão. E se eles fizerem isso, todo o mundo não-mágico vai entrar em colapso. As pessoas vão brigar umas com as outras, vão se machucarem demais, vão ficar doentes e muitos morrerão por não aguentarem o que as trevas fazem. O caos será incontrolável...

Fiquei quieta olhando para meus dedos, minhas unhas estavam sujas. Sempre estão sujas demais. Andreas interrompeu minha compulsão de cutucar os cantos das unhas, questionando:

— A senhora é a princesa medrosa? Mamãe diz que a senhora vive fugindo.

— É, eu sou a fugitiva medrosa. Verbena é a rainha má e o príncipe um dia foi um bom homem.

Ele se encolheu um pouco me olhando desconfiado, hesitante perguntou:

— O príncipe ficou doente e malvado depois que a princesa beijou ele, as pessoas que a senhora beija ficam do mal?

— Não todos, só os que se permitem.

— A tia Verbena também ficou má por que a senhora beijou ela?

— Não, ela ficou má por que queria coisas que não lhe pertencia e em vez de se contentar com o que já tinha resolveu tomar para si o que era de outra pessoa.

— Ela roubou?

— De certo modo sim.

— Ela vai presa?

— Não sei. Nós dois estamos presos. Talvez Leonel consiga vir nos tirar daqui e me ajudar a prendê-la.

— Eu posso ajudar a senhora prender a tia Verbena e o príncipe, também?

— Claro.

Prender. Há mais de cem modos de manter alguém prisioneiro, eu resolvi ocupar meu tempo imaginando qual prisão seria mais cruel para Verbena e George depois de terem seus poderes removidos e serem liberados de toda escuridão que os corrompe. Tenho uma imaginação fértil. Quem resolveu dar o ar de sua real graça foi minha irmã surtada, assim que ela entrou no meu campo de visão com aquele estonteante sorriso de quem recebeu a melhor noticia do mundo – ou que ultrapassou o limite da insanidade –, me coloquei na frente de Andreas.

— Morty, que estranho vê-la querendo proteger alguém. Acha que farei mal ao nosso sobrinho?

— Verby, que estranho vê-la agindo como se fosse eu. Acha que sou estúpida para confiar em uma... Hum, nem posso te chamar de maluca por que todos os malucos que conheci até hoje tinha uma noção de realidade. Falando em realidade, onde está o meu sombrio príncipe dos mares? Senti falta de ouvi-lo.

Verbena deu um passo para frente, e parou. Por um segundo achei que ela fosse gritar comigo, mas ela sabe se controlar. Uma pena.

— Andreas, venha comigo – ela disse indo para a porta da cela.

Segurei o braço do garoto e não o deixei sair.

— Vou te contar um segredo sobre sua tia Verbena, Andy, preste bastante atenção. Tá?

Ele olhou para Verbena no lado de fora e depois para mim, então assentiu.

— Sua tia descobriu que existe um poder ilimitado da escuridão, mas ela não sabe controlar esse poder e por isso trouxe nós dois aqui...

— Cala a boca – ela gritou atrás de mim abrindo a cela.

— Cale-se você, eu estou conversando aqui majestade.

Coloquei o pé na porta a impedindo de passar por mim para chegar em Andreas. Gritei acima dos berros dela que chamava pelos seus guardas.

— Verbena quer usar nossa magia para controlar a escuridão, Andy, se lembra da historinha da princesa fugitiva? Verbena quer fazer mal á todos que não são bruxas, todo mundo que não usa magia e que pensa que bruxaria é pecado. Não podemos deixar isso acontecer.

Andreas estava agarrado no meu vestido com uma cara de medo de causar dó. Mas eu tinha que assustá-lo e nada melhor que relembra-lo de que sua mãe dizia que bruxaria era pecado. Dois homens com cajados entraram na cela onde estávamos e levaram Andreas as forças, eu ainda ouvia os gritos estridentes deles chamando meu nome enquanto era arrastado para sei lá onde.

— Verbena, ele é uma criança.

— Eu sei, mas não ligo. A vida de Andreas será um pequeno preço á pagar pelo poder infinito que conquistarei.

— Eu vou arrancar seus olhos se fazer mal á ele.

— Eu sei, sempre esteve no seu destino ser a causa da ruína dos bruxos. Mas nunca imaginei que seria por ter negado um titulo.

— Está me entediando, Verby, se não tem nada mais interessante para dizer mande seus homenzinhos de papel trazer Andy de volta, ele é uma companhia mais interessante.

Ela riu, a risada de minha irmã com quem eu cresci e não da rainha biruta que ela tem sido nos últimos dias.

— Uma vez eu tive uma visão sobre você, Morty. Estava num jardim seguindo um monstro de olhos flamejantes que deixava um rastro de sangue pelo caminho. Foi bem quando papai morreu, você estava transtornada tendo pesadelos com o monstro que o matou e eu tendo visões de vocês dois em uma dança macabra, sempre que eu espiava seu futuro tinha esse monstro ora te perseguindo ora você o perseguia ora ambos corriam em direções opostas. Quando te levei para Ravenna as coisas mudaram, minhas visões sempre tinha a presença de uma sombra que se estendia na sua direção enquanto você fugia e o outro não aparecia mais. Quando vi George pela primeira vez eu soube que ele era a sombra que te espreitava e eu fiz tudo para que você voltasse para Ferrara até manipulei Magnólia e Edwin. E seu destino mudou novamente quando voltou para cá. O monstro e o pirata juntos em todas as visões que eu tinha não importava o que você fazia e nem como, eles estavam sempre presentes no seu caminho. Agora eu não os vejo mais, você está caindo, em um lugar escuro... mas sozinha.

Bocejei dramaticamente.

— Seu futuro é incerto, é difícil prever futuro de alguém tão imprevisível e mutável. É tudo tão nebuloso. Você disse isso para mim, Rainha da Malucolândia. Eu vou cair em um lugar escuro, sozinha, para uma rainha das sombras você devia saber que quem vive na escuridão nunca está só.

O sorriso de quem está feliz demais para ser atingido por qualquer coisa, voltou, no rosto dela que convocou um objeto. Uma bonequinha de vodu feita de trapos e cabelos. Awn! Uma bonequinha me representando.

— Você é o ser humano mais detestável que eu já conheci, irmã – ela disse – Sempre debochando de tudo, sempre correndo, sempre me irritando com esses olhos caleidoscópicos. Mas preciso de você, viva.

Ela tirou um alfinete do vestido e girou em torno da bonequinha de trapos. Odeio vodu, amo os bonequinhos, mas odeio o modo com que são usados.

— Ela é toda sua, meu querido – falou e enfiou o alfinete na cabeça da bonequinha, vislumbrei George parado ao lado dela, mas antes que pensasse em mais alguma coisa...


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