Memórias Ardentes escrita por senhoritavulpix


Capítulo 1
Capítulo Único




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— E você, pirralho?

A pergunta repentina o pegou de surpresa. Piscou os olhos algumas vezes, saindo abruptamente dos seus pensamentos e tentando se adaptar a realidade. Como se não tivesse entendido direito, o homem de cabelos morenos e cinzentos olhos cortantes repetiu impacientemente o questionamento, adicionando um complemento: “E você, pirralho? O que tem a dizer?”.

O garoto de cabelos cúpricos olhou para os nós dos dedos, aturdido. Cerrou os punhos e fechou os olhos, esperando que aquilo, de alguma forma, o ajudasse a trazer à memória alguma lembrança reprimida.

O que tinha ele a dizer? Não sabia.

— Eu… não... lembro. — disse por fim, soltando um suspiro magoado.

A lua mostrava-se exuberante, com seus lânguidos raios prateados beijando as superfícies que tocava. A noite estava quente e excepcionalmente clara, e os insetos chilreavam animadamente; pequenos animais faziam companhia à aquele grupo sentado em volta da fogueira que crepitava, fazendo galhos secos estalarem hora ou outra. As fagulhas que subiam e dançavam no ar faziam com que os guerreiros, hipnotizados por aquela dança sinuosa, mergulhassem numa profunda mistura entre letargia e saudosismo.

O que aquele estranho amontoado de gente havia em comum, afinal? À primeira vista, talvez não muito. Em verdade, o andarilho de cabelos platinados e espada que — pasme! — não parava de falar pareciam ainda mais avulsos à reunião, pois os outros integrantes da estranha trupe tinham, de um modo ou outro, ao menos o laço sanguíneo que os unia. Porém, naquela peculiar noite, todos os presentes sentiam-se conectados aos outros por causa de um nome em comum: Elscud Sieghart, a Lenda. E era sobre ele a pauta do encontro em questão, e sobre as memórias que cada um carregava sobre este grande homem que discutiam. E estavam assim, conversando, até que um longo silêncio recaiu sobre eles, cada um refletindo quietamente sobre o que estava ouvindo. Ercnard resolveu por fim ao silêncio soltando aquela incômoda e inoportuna pergunta. “E você, pirralho? O que tem a dizer?”.

O que tinha a dizer? Elsword simplesmente não se lembrava. E como poderia? Suas memórias só começavam de verdade aos cinco ou seis anos de idade, numa época que estava gravada a ferro e fogo nas mentes de muitos dos habitantes de Ernas; época na qual a Guerra de Vermécia estourou entre os dois maiores reinos do continente, ceifando a vida de dezenas de guerreiros e deixando órfãs centenas de crianças.

A partir do começo dos sangrentos conflitos, todas suas lembranças se resumiam à uma rotina estressante e exaustiva, de longos treinamentos diários e pouco tempo de descanso. Ele era filho do grande comandante dos Cavaleiros Vermelhos, e, por isso, necessitava a cada instante provar — na maior parte do tempo, para si mesmo — ser forte e digno o suficiente para merecer ter nascido com esta posição privilegiada; talvez fosse, no futuro, ele mesmo o líder daquela Ordem. Precisava ser forte e guerreiro assim como seu pai.

Mas que pai?

Por causa da Guerra, o Sieghart vivia no campo de batalha integralmente. Elsword raramente podia vê-lo, quanto mais passar algum tempo com ele. Lembrava-se dele como o líder que foi conhecido na história: gritando ordens aos seus homens, brandindo a espada, com os olhos chispeando de determinação. Porém, como pai, tinha pouco o que dizer. Mementava somente breves instantes com seu progenitor — nada exatamente concreto; em verdade, todas as recordações que tinha dos anos antes das guerras eram tão suaves que pareciam ser sonhos. Às vezes imaginava mesmo que as tardes ensolaradas que passou ao lado da família não passavam disso mesmo: sonhos. Fantasias de sua mente infante.

Sua vida, aliás, parecia ter saído de um daqueles livros de ficção que descansavam solenes nas prateleiras das bibliotecas, esperando pacientemente que mãozinhas curiosas e grudentas os folheassem: para começar, seu ancestral mais conhecido era ninguém menos que Ercnard, o Herói de Vermécia, o Imortal destruidor de montanhas. Depois, seu próprio pai era uma lenda que corria pela boca do povo: o grande Elscud, o maior dos líderes da Ordem dos Cavaleiros Vermelhos, que sumira enquanto protegia Ernas da Rainha das Trevas. E então sua irmã, a feroz e impiedosa Elesis, líder não só da Ordem de seu progenitor, mas também do grupo de elite Grand Chase.

De repente, Elsword sentiu-se tremendamente pequeno e humilde diante daqueles três pares de olhos que brilhavam com intensidade à luz da fogueira. O que ele realmente sabia sobre sua família? Não muito. Sentiu-se deslocado; às vezes não sentia fazer parte do lendário clã Sieghart. Tudo o que sabia a respeito de suas raízes fora aprendido em livros, ou em aulas teóricas na academia, ou então ouvindo histórias de bardos que cantavam nas tavernas clandestinas de Canaban. Sentia-se magoado por não ter passado mais tempo ao lado de seus parentes, mas, ao invés disso, ter perdido toda a sua infância roubada pela guerra, gastando todo seu tempo treinando como um pequeno adulto; lutava incansavelmente em busca de reconhecimento, numa incrível determinação marcial para ser “digno de ser chamado filho de Elscud” sem perceber que, anos depois, nem ao menos iria poder saber contar ao certo quem Elscud fora.

A dureza da realidade o machucava. Não tinha nada o que dizer, era essa a verdade. Elsword sabia que Elscud havia sido uma lenda. Uma lenda, entretanto, que ele não tivera a oportunidade de conhecer de fato — e, como temia, talvez jamais tivesse.

Não tenho nada à dizer”, balbuciou.

O garoto apertou as mãos com tanta força que os dedos ficaram brancos; sentia uma queimação na garganta e controlou a respiração para evitar que aquela lágrima teimosa escorresse pela face avermelhada.

— Hey criança, está chorando? — o moreno soltou no habitual tom cínico.

— Deixa ele em paz, velhote.

— Qual é o problema, ruivinha?

Uma veia pulsou levemente na testa da jovem. Como aquele babaca podia ser seu avô? Recusava-se a acreditar nisso. Como era possível que uma das maiores lendas da história de Ernas tivesse a imaturidade e a falta de sensibilidade de um adolescente?

Não que ela mesmo fosse exemplo de sensibilidade. Sabia que pelas costas a chamavam de bruta, e não era pra menos. Nunca teve muita paciência e suas faces geralmente adquiriam o mesmo tom rubro dos cabelos, indicando que mais uma vez ela havia saído do sério. Ao entrar no masculino ambiente das tavernas, os homens presentes se afastavam consideravelmente da mesa onde ela se sentava: não o faziam só para contemplar sua beleza selvagem, mas também pelo medo que ela inspirava nos espíritos mais corajosos.

Contudo, apesar de toda sua dureza de coração, incomodarem o irmãozinho era imperdoável. Ela passou os dedos pela face do garoto, recolhendo uma lágrima que havia ganhado da força de vontade do pequeno e cruzava seu rosto em um risco sutil.

Elesis Sieghart também fora criada independente em meio ao calor da guerra, praticamente sem mãe ou pai, porém sabia que seu irmão era quem em silêncio mais sofria, pois ao menos a guerreira tinha passado mais tempo ao lado da família do que o espadachim. Portanto, era também ela quem tinha mais histórias para contar sobre o pai, e ao perceber o desconforto da situação, resolveu contorná-la narrando uma de suas aventuras. Apertou os olhos com a ponta dos dedos… bem, o que poderia dizer?

A mãe de ambos, Penélope, morrera há muitos anos, no nascimento do segundo filho. Na época a cavaleira não tinha mais do que quatro anos, e todas as imagens que restaram dela em sua mente foram a de uma mulher gentil e suave, cuja voz macia e sorriso acalentador podiam não consertar um brinquedo quebrado, mas certamente curavam um coração partido. Exceto isso, realmente não se recordava de mais nada. Às vezes mesmo tinha dúvidas se havia ela sido loira ou morena. A presença marcante na vida da pequena Sieghart fora, de fato, o pai.

Viveram os três em quase perfeita paz por nove ou dez anos, até que a guerra surgiu compelindo os homens às batalhas e arrastando consigo para muito longe a esperança de uma vida tranquila. A menina, intrépida, logo quis juntar suas forças às forças dos exércitos de Canaban, entrando nos Cavaleiros Vermelhos assim como seu irmão mais novo fora recrutado pouco tempo antes.

Em primeiro momento, Elscud fora contra a entrada da filha na Ordem; entretanto, a determinação da pequena guerreira e a coragem de leão fizeram-no mudar de ideia. A história se iniciava muitos anos atrás, no começo dos conflitos entre os reinos de Vermécia. E pensar que tudo começou com um simples presente de um amigo de infância...

Era uma manhã especialmente ruim. A chuva intensa da madrugada deixara os campos enlameados, e as tentativas de movimentação das tropas foram desastrosas. Para piorar, depois do massacre à família Erudon, um novo líder da Guarda Real subira ao comando. Ronan Erudon, apesar de apresentar imensa bravura e senso de liderança e justiça, ainda assim era um rapazola de não mais que doze anos de idade e inexperiente em batalhas. Elscud estava desgostoso por ter perdido várias horas naquela manhã tentando persuadir aquela criança de que poderiam obter melhores resultados se dispusessem as tropas de maneira diferente; o rapaz não assentiu nas mudanças, o que rendeu um enorme debate enfadonho.

Esse garoto é um problema. Vou cuidar de deixá-lo bem longe da minha filha”, o guerreiro vermelho resmungou, bufando e apertando as pálpebras com raiva.

— Falando sozinho, papai?

— Elesis. O que está fazendo aqui? — Repreendeu-a ríspido, com um olhar duro — Já não lhe disse que deve ficar em casa, onde é o lugar das mulheres e onde você fica mais segura?

A menina franziu o cenho, contrariada. Detestava quando tratavam-na como uma boneca inútil que servia só para ser contemplada e protegida. Não tinha ela dois braços e duas pernas assim como todos os meninos? E por acaso não eram os meninos quem apanhavam pra ela nas brincadeiras? Por que a impediam de lutar? Ela tinha nove anos, quase dez, droga! Se os líderes fossem tão espertos quanto diziam ser, iriam facilmente dobrar as tropas colocando mulheres treinadas no meio das fileiras de soldados.

— Elsword treina na base dos Cavaleiros e é desse tamanho! — disse com raiva, mostrando no ar a diminuta altura que o irmãozinho tinha e, ao fazer isso, deixou aparecer o que tinha escondido atrás das costas.

— O que tem aí atrás? — falou desconfiado.

A garotinha hesitou só por um instante para mostrar, toda orgulhosa, o presente que ganhou:

— Uma espada! — e brandiu a pequena arma.

O homem fitou-a sério. Os olhos escarlates do pai perscrustraram os olhos escarlates da filha; a garota encarou-o determinada enquanto era examinada. Por fim o Sieghart caiu na risada, deixando-a momentaneamente desconsertada.

— Quem te deu isso?

— Meu amigo! Arthur!

— Arthur Larryschmidt, o filho do nosso ferreiro?

— Sim!

— Ele está interessado em você, então? Tenho que conversar com meu velho Larry sobre esses galanteios do filho dele para você.

A menina inflou as bochechas, com raiva por não ser levada à sério.

— Ele fez essa espada pra mim porque ele não podia me proteger durante uma batalha mas a espada dele pode! — gritou impaciente — E eu vou treinar porque quero ser forte!

— E o que pretende com isso?

— Entrar na Ordem!

— E você acha que uma menininha como você vai poder entrar na minha Ordem? — provocou-a, enquanto se abaixava para ficar na altura da pequena fera e dava-lhe um peteleco na testa.

— Acho sim! E vou! Se o Els pode eu também posso, e é por isso que vim te desafiar!

Ora, quanta petulância. Se já não tivesse bastado o desgosto com o menino de cabelos azuis logo mais cedo, agora aquela criaturinha ruiva ousava desafiá-lo. Refletiu por um instante.

— Pois bem, que seja. — sorriu, pegando uma adaga que lhe fora atirada. Ao redor dos dois, uma pequena multidão de curiosos se formava. Alguns achavam graça, outros censuravam que era muita ousadia deixar uma menina agir daquele jeito sem ser repreendida.

Ele não sabia ao certo o que pensar. Não poderia mesmo imaginar que aquela luta definiria a vida da filha para sempre.

Logo que pegou sua adaga, recebeu uma séria de golpes que aparou sem dificuldades. Apesar de serem golpes desajeitados e principiantes, havia uma certa técnica nos movimentos, o que o deixou encantado. Estudou a criança por um tempo, que batia com uma fúria inimaginável para alguém daquela altura, e então principiou-se a avançar ofensivamente. Para sua surpresa, ela podia defender tão bem quanto atacava.

Os olhinhos vermelhos luziam de excitação, e seu coração palpitava no ritmo dos gritos da platéia animada.

Cansado da brincadeira e crente que já havia visto tudo, provocou-a.

— Você não duraria dez minutos em batalha, Elesis. — e com um movimento ligeiro, desarmou-a jogando sua espada para o lado.

Ao ver-se sem sua espada, a pequena não hesitou em mergulhar na lama dando uma cambalhota para reaver a arma. Com mais uma rápida cambalhota, passou por baixo das pernas do homem e, levantando-se ligeira como um gato, acertou-o nas costas, arrancando um curto ganido de dor.

Touché!

— Baixou a guarda e permitiu ser surpreendido — resfolegou, tentando achar no fundo dos pulmões o ar que não tinha — Subestimou o inimigo e foi atacado pelas costas. Sinceramente, papai, o senhor não duraria dez minutos em batalha.

O guerreiro olhou-a assombrado, como se visse um fantasma. Sua pequena herdeira estava vitoriosa de pé, as roupas e os cabelos vermelhos manchados de lama. Uma amazona perfeita.

— Quem te ensinou a lutar? — e enxugou o suor da testa.

— Aprendi vendo o senhor. E batendo nos meninos que mexiam comigo e com o Els!

De braços cruzados, a cavaleira riu regozijada com a própria história.

— Ainda naquela tarde fui admitida com louvor na Ordem. — e balançou a cabeça positivamente, como se confirmasse o que ela mesmo dizia.

Elsword sorriu. Mesmo que não tivesse muitas histórias para contar, gostava de ouvir as da irmã — particularmente as que envolviam a família em cenas constrangedoras ou inusitadas. Ainda que bruta e grosseira, ela tinha o dom da persuasão, e, com isso, também uma oratória particularmente surpreendente. É claro, ele também gostava de ouvir as aventuras do avô, entretanto elas com certeza seriam mais interessantes se ele não acrescentasse pontos desnecessários a cada vez que recontasse algum dos seus casos, e, como não poderia deixar de ser, se não fosse tão narcisista a ponto de fazer com que todas as narrativas girassem em torno dele.

— Mana, conta aquela do Papai e do Gerard?

A ruiva enrubesceu levemente com a lembrança do último nome evocado; para sua sorte o rubor não foi percebido pois as chamas da fogueira lançavam à todos os rostos o aspecto avermelhado das labaredas.

Droga, Elsword, justo aquela?

O moreno levantou uma sobrancelha, curioso. Ainda não conhecia aquela história do “Papai e do Gerard” e, pelo visto, a ruivinha evitava contá-la. A moça enrolou distraidamente uma mecha do cabelo nos dedos enquanto fitava as labaredas serpenteantes e soltou um suspiro contrariado. “Se eu desconversar agora, Sieghart vai ficar curioso e me encher o saco de qualquer jeito”. Enviou um rápido olhar de reprovação para o irmão, como quem diz “te pego na saída”, e empertigou-se toda tesa no tronco meio apodrecido que estava usando como banco.

Aconteceu um bom tempo depois dela ter entrado na Academia da Ordem…

— O que uma garotinha continua fazendo aqui? Eu já disse, volta pra casa! — o rapaz vociferou, nitidamente indignado com a situação incabível. Ele tinha a postura rígida de um soldado treinado, e os cabelos castanhos claríssimos cortados rentes à cabeça, no estilo militar da época, completavam a aparência inflexível.

— Eu é que pergunto o que um maricas como você está fazendo aqui! — ela respondeu irascível, grunhindo por entre os dentes arreganhados e encarando o oponente no fundo dos seus olhos azuis.

— Você por acaso sabe com quem está falando, fedelha?! — e levantou o punho fechado em riste, ameaçando afundar um soco no nariz da menina que não se intimidava diante à ameaça. Verdade seja dita, se havia algo de admirável naquela criança irritante com certeza seria a personalidade inconsequente; ainda que o menino fosse muito maior e mais alto que ela, e também alguns anos mais velho, ela não se deixava acanhar por nenhum desses pontos, os quais chamava com desdém de “apenas meros detalhes”.

— E você, sabe?! — a baixinha o empurrou com força, fazendo-o se desequilibrar e cair de costas na lama que cobria o pátio interno da Academia. Até aquele momento o que havia sido um desentendimento entre crianças ganhou um aspecto muito mais sério com aquela afronta; ao ver-se coberto com aquele lodo fétido, Gerard inflamou-se em ira e voou sobre Elesis. Ambos caíram e rolaram no chão, trocando socos e pontapés. Alguns cavaleiros que por ali passavam riram da briga, relembrando a época da juventude; a maioria, entretanto, lançou olhares duros de reprovação.

— Elesis!!

Ah, o poder de uma voz de comando! Um único grito furioso foi capaz de imediatamente apaziguar os ânimos e afastar os adversários que se engalfinhavam — não só isso, fez também ambos se postarem de pé, em posição de sentido; o coração acelerado, não devido a recente luta, mas pelo medo e respeito que o comandante inspirava.

Elscud cruzou os braços por cima do peito largo e olhou severamente para os dois. Lhe ocorreu passar uma descompostura para Gerard ali mesmo, mas seu instinto paternal lhe dizia — muito acertadamente, diga-se de passagem — que o pivô da situação não era ele; era ela. Por isso, limitou-se a lhe dar uma ordem curta e grossa de ir se limpar; a garota, no entanto, não teve a mesma sorte. Ele levantou-a pelas orelhas e tratou de arrastá-la pra longe dali e dos olhares curiosos. A última coisa que ela pôde ouvir do adversário foram palavras entrecortadas.

— Esse lugar não é pra você.

— Que droga, papai! Você nem sabe o que aconteceu! — virou-se furiosa, depois de adentrarem o gabinete do Sieghart.

— Senhor! Aqui dentro, me trate por senhor! E nada de “papai”. — a imitou, afinando a voz a balançando as mãos no ar, de maneira ridícula — E não quero saber o que aconteceu. O que vi foi dois soldados meus brigando na lama. Isso não é bom para a imagem de vocês, não é bom para a minha imagem e, sobretudo, não é bom para a imagem dos Cavaleiros Vermelhos.

— Ma--

— Não me interrompa! — bradiu, impaciente — Gerard é filho de Depas Palenwhite, que não só é meu braço direito mas também um dos meus melhores amigos. Você já os conhece e sabe a influência da família deles sobre a Ordem! Eu espero que vocês se respeitem, se não como amigos, ao menos como soldados. Eu não quero saber de divisões internas causadas por pirralhos.

— Ele me desrespeitou! — disse num fôlego só, aproveitando a brecha — Todo maldito dia é a mesma coisa! Como exige que eu o respeite quando sempre e sempre eu tenho que aguentar aquele almofadinha fazendo chacota de mim para os nossos colegas da divisão e dizendo que eu deveria voltar para casa, lavar a louça e chacoalhar os quadris pra ele “como uma boa mulher faria”? Ele quem começou com isso!

— Não quero saber quem começou, Elesis! Estamos no exército, não na sua casa brigando com seu irmão! Um bom líder sabe que não pode se abalar por conta de uma ofensa qualquer. Em uma batalha não é só a sua vida em jogo, porém as vidas de todos os seus subordinados. Você precisa ser menos histérica e mais racional.

— Como você tem coragem de advertir e ao mesmo tempo aceitar esse tipo de atitude nojenta por parte dele?! — gritou indignada.

— “Senhor”! E não grite comigo, mocinha! Eu não vou permitir insubordinação nas minhas fileiras! Não espere que eu vá pegar mais leve com você por ser minha filha! Você é uma mulher, Elesis. Se não se comporta como uma, ao menos que lute como um homem. Você precisa provar seu valor aqui dentro. Não espere que vá ser respeitada só porque sou seu pai, ou só porque você luta um pouco melhor do que alguns rapazes. — respirou profundamente e inspirou devagar, tentando aliviar a tensão — Saia já daqui e vá limpar todos os estábulos enquanto eu penso em uma punição para você. E chame Gerard aqui, agora. É uma ordem.

A garota retirou-se contrariada — sobretudo com aquela última ordem —e bateu a porta atrás de sí.

— Perdão, senhor. — o rapaz chegou se desculpando assim que abriu a porta do gabinete —Perdi a cabeça e passei dos limites. Eu aceito qualquer punição que quiser me dar, senhor.

— Pelo contrário. — o homem levantou-se e pôs a mão sobre o ombro do garoto — Não pegue leve com ela.

E saiu, deixando para trás o adolescente atônito.

A ruiva olhou pelo canto do olho para o moreno, que deliciava-se com a narrativa. Todos eram tão acostumados com uma Sieghart autoritária, que nunca tinha suas ordens contestadas, que era realmente muito... divertido — podemos colocar assim? — ouvir o outro lado da história: uma Elesis teimosa e rebelde que tinha as orelhas puxadas pelo próprio pai, a quem tanto venerava.

— Para alguém grosseira como você, até que você conta histórias muito bem, quase tanto quanto eu. Não se faça de rogada, continue!

— Você é muito boa... — completou timidamente o albino.

— É, mana! Continua! — o irmão incentivou, animado.

Elesis girou os olhos. Elsword não estava particularmente muito esperto aquela noite. Pois bem… onde ela estava? Ah, sim…

A guerra já se arrastava há alguns anos. A paciência da garota, também.

Após o pequeno incidente com Gerard alguns meses antes, as coisas ficaram ainda piores para o lado dela. Aquele bastardo pegava cada vez mais no seu pé, e não havia sinal de que Depas o censurasse nem de que Elscud o criticasse — pelo contrário, sentia que eles faziam vistas grossas ao garoto obstinado em fazer da vida dela um inferno, e ele, claro, se aproveitava dessa proteção especial para irritá-la ainda mais nas horas mais inoportunas. Para piorar, por ser mais velho e experiente e ter demonstrado muito talento nos últimos meses, ele subira de posto rapidamente e agora era hierarquicamente superior à garota — o que a colocava em uma posição de desvantagem desleal, pois agora não podia nem mesmo revidar os insultos sem ser retaliada. As coisas, é claro, já estavam ficando insustentáveis.

A cena em questão aconteceu num dia gelado de outono...

— Me diga, ruivinha… Não sabe que espadas não são adequadas para mulheres? Como… ou melhor: por que ainda não desistiu? — os olhos azuis de Gerard examinavam minuciosamente todo e qualquer movimento da Sieghart, prontos para capturarem qualquer deslize da dama, por menor que fosse. Humilhá-la em público se tornara sua diversão favorita e uma obsessão constante. Passara praticamente todo o verão perseguindo-a; ainda assim, não gostava quando olhavam a situação por esse viés: preferia desculpar-se dizendo que ficara com os olhos pregados nela, sim, mas somente por causa das obrigações do ofício, não havendo nada de pessoal na sua perseverante importunação.

— Não interessa, palhaço. — ela respondeu seca, voltando aos seus afazeres. Não à toa detestaria, anos mais tarde, quando o avô se referisse a ela como “ruivinha”; era esse o apelido favorito que aquele cretino do Palenwhite usava quando queria tirá-la do sério. Não que ser ruiva fosse ruim; para falar a verdade ela nem se preocupava com isso. Entretanto era aquele tom cínico e o diminutivo claramente pejorativo que a irritavam.

Ele saltou ligeiro de onde estava sentado.

— Como disse? — a puxou bruscamente pelo braço — Eu estou fazendo uma pergunta e espero que me responda com respeito. — com o polegar e o indicador o rapaz segurou firmemente o queixo da moça, forçando-a a encará-lo face a face.

— Já disse, não interessa. E me deixe em paz. — e com um movimento bruto mas preciso, desvincilhou-se das mãos do rival.

Gerard se deu por vencido e deixou-a ir embora. “Mais tarde, Gerard…. Mais tarde.”, pensou. O que ele não sabia, porém, é que esse mais tarde se daria de forma imprevista, durante a madrugada daquele mesmo dia, e mudaria profundamente o seu modo de enxergar a companheira de exército.

No meio da noite o rapaz despertou sobressaltado. Um daqueles malditos pesadelos que nos assustam de tão reais que parecem ser: acordou com o solavanco que a sensação de queda livre de um penhasco provocara. Após alguns segundos sorvendo a realidade ao redor e percebendo que estava vivo, são e salvo e em cima da sua cama de palha, respirou lenta e ritmadamente para, com isso, acalmar seu coração que ainda estava aos pulos. Já estava quase adormecendo novamente quando ouviu baixinho, muito ao longe no campo de treinamento, o barulho inconfundível de espadas. No começo pensou que estivesse ouvindo coisas devido ao sono, entretanto, bastou apurar um pouco a audição para perceber que não se tratava de sono: alguém estava realmente treinando lá fora.

Talvez seja algum novato apressado que quer logo evoluir e demonstrar seu valor, pensou. Porém isso não fazia muito sentido… todo mundo no exército, do recruta mais jovem até o general mais experiente, não dispunha de mais do que algumas pouquíssimas horas de sono e descanso por dia, e ele simplesmente não poderia conceber que alguém fosse idiota o suficiente para cansar-se durante a noite quando os dias já eram por si só tão arrastados e extenuantes — naquela época tensa de guerra não era raro os relatos de gente morrendo de exaustão em campo.

Quem quer que fosse, deveria ser alguém muito obstinado para preferir gastar daquela forma as sagradas horas de sono. A disciplina na Ordem era rígida, e os soldados deveriam ir dormir na hora que eram mandados e acordar na hora que eram ordenados; saidinhas noturnas por aí não eram, evidentemente, vistas com bons olhos — pelo contrário, eram punidas severamente. De todo o modo, Gerard não estava realmente disposto a dar uma bronca naquela madrugada. Para falar a verdade, estava mesmo era curioso para descobrir quem era que treinava às... — abriu as janelas e calculou a posição das estrelas, parcialmente encobertas por nuvens — ...duas, três horas da manhã?

Vestiu o robe carmesim e saiu discretamente de seu quarto, dirigindo-se à origem do barulho. “Octavio? Ele parece um pouco indisposto durante os treinos matinais, talvez por andar treinando à noite. O filho de Victor, talvez? Qual era mesmo o nome do moleque…? Mas, não. Fracote demais, não aguenta nem levantar a espada, quanto mais levantar da cama. Quem sabe aquele loiro que ainda não conseguiu subir de posto…” de repente, ocorreu-lhe que poderia ser um superior. “Bem, nesse caso não tenho o que fazer. Vou só observar de longe e se ele me ver… droga, o que eu digo? Que ouvi um barulho e ‘oh, resolvi ver o que era’? Acho que vou receber uma descompostura de qualquer jeito por bisbilhotar e ficar andando por aí de noite, tsc. Bem, pode ser um mestre ensinando a um aluno algum movimento avançado novo… que diabos, em época de guerra, dormir é essencial. Nada no mundo justifica ficar se cansando — ou cansar seus subordinados — durante a madrugada, à toa”. Estava com essas perguntas na cabeça quando, após atravessar todo o pátio interno, andou pé ante pé até a área de treinamento e, oh, o espanto foi tamanho que seu queixo caiu ao chão e ele ficou hipnotizado, toda sua atenção presa por aquela cena fantástica que se desenrolava em frente aos seus olhos.

Com o cabelo trançado preso em coque, de longe certamente parecia um garoto: afinal, se esforçava para isso. Os seios enfaixados, o jeito rude, as maneiras grosseiras e o andar militar, nada demonstravam que naquele corpo habitava uma mulher. Ela empunhava uma espada curta e golpeava freneticamente umas dezenas de bonecos pendurados por cordas, que se movimentavam mais e mais a cada golpe recebido, fazendo daquele campo talvez não um lugar violento, visto serem só bonecos de areia, mas era ao menos um ambiente movimentado, que forçava a menina a usar de toda sua agilidade para esquivar-se das iminentes pancadas dos adversários e ainda desferir golpes contra eles. Ainda que a espada de treino fosse de madeira, por três vezes golpeou de forma tão certeira e violenta que o forte tecido rompeu-se, despejando o sangue arenoso dos inimigos no chão, e sua destreza era tamanha que aparou e desviou sem dificuldades de ataques pelas costas e pelos flancos.

Elesis movia-se com a graça de um felino; a intimidade que tinha com a espada era tão grande que parecia que a arma fazia parte do seu corpo. Depois de muito pular e rolar no chão, o coque caiu e as tranças foram se desfazendo um pouco a cada nova estocada e a cada investida que ela fazia, e os fios ruivos logo grudaram na face molhada de suor atrapalhando sua visão, o que, no entanto, não a fez parar um segundo sequer para se aprumar. E ficaram os dois ali, em pé: ela duelando contra si mesma, irascível, sem tomar conhecimento do companheiro que a uma distância segura acompanhava embasbacado cada gesto que ela fazia. Quando no horizonte o Sol deu seus primeiros sinais de apontar, manchando o véu negro da noite com aquela acanhada luminescência rosada, a guerreira caiu de joelhos no chão, esgotada todas as suas forças. Gerard a observou quieto, até ter certeza que o subir e descer do peito significavam que ela dormia. Olhou para os céus e, bem, aí só as deusas sabem explicar direito o que aconteceu, mas bateu no peito do rapazola um sentimento tão forte que, ainda que sem lua ou conhaque, o fez ficar comovido como o diabo — e, sobretudo, ressentido por todo aquele inferno que ele a fazia passar.

Ajoelhou-se ao lado da colega de infantaria e, com uma ardência inexplicável nos olhos, pegou no colo aquele corpo mole de cansaço porém ao mesmo tempo rijo pelo treinamento e carregou-o, trôpego, até o quarto da moça. Abriu a porta amaldiçoando os empregados que não tinham colocado óleo nas dobradiças, que rangiam de forma tenebrosa, e colocou-a cuidadosamente em cima daquele colchonete de palha meio apodrecida, sentindo-se triste em relação ao último detalhe pois sabia que o colchonete estava daquele jeito porque não rara foram as vezes que ele acordou-a com um balde de água gelada.

De olhos fechados e corado até o último fio de cabelo, em semelhança às madeixas da amiga, ele tirou com cuidado o colete e as botas enlameadas dela, o que revelou um corpo tão forte quanto frágil. Pôs muito delicadamente um camisolão nela e assim que terminou de vestí-la, sabe-se lá por que deu-lhe um beijo na testa. Onde estava com a cabeça? Colocou um lençol sobre ela e saiu do quarto com o dedo nos lábios e a cabeça abaixada, tão abaixada que não viu e esbarrou com força no corpo rígido de um homem com no mínimo o dobro da sua altura, e já ia se preparando para pedir desculpas quando os olhos saltaram ao se darem conta de quem era o dono do corpo.

— S-se-senhor! N-n-na-não é o que o senhor está pensando!

Ele ergueu uma de suas grossas sobrancelhas vermelhas.

— Não é o que estou pensando? Se você não entrou no quarto dela para respeitosamente deixá-la em cima da cama, para o que foi então, mocinho?!! — e pôs as mãos na cintura fingindo estar indignado, o que deixou o rapaz lívido de medo.

— N-não, senhor!! Digo, s-sim, senhor!! Foi exatamente para isso que entrei, senhor!!!

O homem manteve a assustadora carranca de censura por uns poucos instantes, que pareceram os segundos mais intermináveis da história do rapaz. Ao vê-lo pálido e tremendo como trigo ao vento, Elscud não aguentou e soltou uma sonora gargalhada tratou logo de abafar o som do riso com as mãos, para não acordar a filha que dormia a poucos metros dali. Gerard, confuso, riu de nervosismo enquanto uma gota de suor lhe escorria pela têmpora. Quando as risadas deram sinal de cessarem, ele tratou de rapidamente atalhar qualquer coisa para continuar a conversa e evitar que seu superior o percebesse nervoso do jeito que estava:

— Eu… eu não sabia que ela treinava à noite, senhor.

O pai inflou o peito, orgulhoso de sua criaturinha perseverante. Suspirou e, com água nos olhos que diabos, quem diria que um homenzarrão daqueles se emocionava fácil? —, segredou aquele orgulho que guardava no peito mas que não convinha dizer aos outros:

— Ela já faz isso há muito tempo, para falar a verdade. Eu venho aqui escondido sempre quando posso, para acompanhar seu progresso. Devo dizer que ela melhorou muito desde que começou a treinar sozinha para superar as suas fraquezas… femininas, digamos. Eu te vi a observando e achei divertido ver sua cara de espanto e queria ver sua reação quando eu o pegasse de surpresa. Desculpe. — sorriu de viés para ele, enquanto olhava pela janela a filha ressonando na cama — Sei que se lembra que temos ordens que proíbem soldados de ficarem zanzando por aí à noite, só que… Bem, aqui estamos nós. E não à toa, não é? Devo dizer que adoro a insubordinação e a determinação dela: é o que a faz verdadeiramente uma Sieghart. — Um sorriso bobo desenhou-se nos lábios e também nos seus olhos vermelhos — Mas não diga à ela que eu lhe contei nada disso, em?

— Sim, senhor! Claro! — prontamente exclamou, feliz com a confiança depositada. Hesitante, continuou com tato —E… por favor, também não diga à ela que foi eu quem a carregou, a trocou, e a cobriu.

Ao que um levantou uma sobrancelha, confuso, o outro continuou, sem jeito:

— Ela me mataria, senhor.

— Oh, sim. — riu compreensivamente — Ela realmente te mataria.

— Sim, eu o mataria. Na verdade só não o matei ainda porque eu só soube dessa história pouquíssimo antes de sair de Canaban e me juntar a Grand Chase. E não é como se eu tivesse tido tempo pra voltar pra lá e esganá-lo com minhas próprias mãos. — ela rugiu, com os braços fortemente cruzados, tentando não fazer ser notado o rubor em suas faces.

O moreno fez menção de falar alguma coisa, entretanto bocejou e sorriu de forma cínica, esperando uma oportunidade melhor — muitas oportunidades futuras, aliás — que ele poderia fazer referência ao caso e importuná-la.

Com a quietude da noite sendo cortada pelo crispar da madeira queimada pela fogueira, a Sieghart suspirou, com muitos sentimentos no peito prontos para transbordar. Deu conclusão aos seus pensamentos, agora muito menos prosa e muito mais emocionais:

— Eu… nunca soube disso. Digo, que papai me observava todas as madrugadas enquanto eu treinava sozinha. Às vezes eu sentia que estava sendo observada, só que… não era um sentimento ruim, sabe? Era como se algo ou alguém estivesse zelando por mim. E agora eu sei que sim, durante todo o tempo que eu estive nos Cavaleiros Vermelhos ele olhou por mim. Mesmo quando ele era durão e implacável, ele só fazia o que achava que era melhor para os seus filhos, e realmente foi, porque eu sei que não teria me tornado a guerreira e a mulher que sou hoje sem a influência dele na minha vida.

Ela sentiu um comichão para coçar os olhos, que estavam vermelhos de emoção. O irmão tocou o ombro dela de leve, meio hesitante no que faria em seguida. Não teve tempo pra reagir: a ruiva o abraçou forte, afundando o rosto no cabelo espevitado do irmão. Zero simplesmente não saberia como se sentir naquela situação, já que Grandark havia se calado. Quanto a Ercnard, apesar de ser da família, sentiu-se constrangido diante àquela cena tão doce de afeto e censurou-se por quase ter zombado da neta, ainda há pouco.

— E eu sei que ele continua zelando por mim. Por nós.

Entre as labaredas vermelhas da fogueira, ela podia enxergar o rosto queimado pelo sol de mil batalhas e os cabelos de fogo do pai.

“Em algum lugar. Seja lá onde ele estiver.”

“Eu vou encontrá-lo, papai.”


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Notas finais do capítulo

E é isso! Espero que tenham gostado! Se possível, por favor, deixem um comentário. Por favor, por favor~ ;u;



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