Antes Que Eu Vá escrita por Nynna Days


Capítulo 1
Realize meu último pedido?




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Toda criança deveria ter um amigo imaginário. Eu tinha vários. Desde pequenos, eles apareciam ao amanhecer e me divertiam com suas histórias. Claro, algumas delas eram tristes e me dava vontade de abraçá-los. Na verdade, tentei fazer isso um dia, só acabei caindo no chão e recebendo um sorriso melancólico em troca.

Meus amigos – os da escolinha – e eu falávamos sobre as loucuras que havíamos aprontado em nossas imaginações. Isaac foi velejar em alto mar em uma canoa feita do tronco de um coqueiro. Dexter foi para a lua em seu foguete de caixa de papelão. Gregory surfou de cabeça para baixo na China. Quanto a mim? Eu tinha ido até o outro lado da cidade em minha bicicleta apenas para entregar um colar para a dona de uma padaria local.

Sempre que contava minhas banais aventuras noturnas, me tornava alvo de piadas e zombaria. Ao invés de me encolher no campo e chorar, apenas mantinha minha cabeça erguida e coloria meus desenhos até a hora de minha mãe vir me buscar. Tudo porque sabia a diferença entre as histórias mirabolante de meus amigos e minhas passivas aventuras.

O que eu fazia era real.

Muitos dos meus amigos imaginários tinham o habito de me pedir coisas. Não objetos pessoais meus. Só que eu fizesse alguma entrega de presente ou mensagem para alguma pessoa que eles conheciam. Não gostava muito de fazê-lo. Pois, quando o fazia, eles apenas agradeciam e iam embora. Era menos um amigo para mim.

Com o passar do tempo, todos os meus amigos fizeram isso. E antes que eu pudesse sentir falta de um, outro tomava o seu lugar. Teve uma época que chegou a ser desgastante. Todos os meus amigos se livraram de suas fantasias infantis enquanto eu continuava pedalando em minha bicicleta até algum endereço desconhecido no meio da noite.

Queria só que aquilo parasse e eles fossem embora.

Todos... Menos ela.

“Hey, Pimpolho.”, Sutton me chamou. Dei um pequeno sorriso, mas não parei de digitar no computador. Pela tela, pude vê-la despojada em minha cama esticando as pernas até os pés pousarem na parede. Sempre com cuidado para não atravessá-la. “Pare um pouco esse trabalho e vá curtir seu aniversário. Só se faz quinze anos uma vez.”

Revirei meus olhos.

“Só se faz qualquer idade uma vez, Sutton.”

Ela assentiu, concordando com minhas palavras. Por um segundo, me perguntei o porquê de seu corpo não atravessar minha cama. Ela estava ficando mais forte desde que a conheci – há quase seis anos. Seu corpo era quase translúcido, mas mantendo uma tonalidade acinzentada. Como uma televisão com uma péssima recepção.

Sutton estava sempre com as mesmas roupas. Calça listrada preta e branco, –que destacava suas pernas torneadas – saltos pretos, camisa preta com estampas douradas em espirais e um casaquinho fino preto. Seus cabelos castanhos estavam espalhados por meu colchão e seus olhos verdes permaneciam fixos no teto. Não precisava ser nenhum gênio para saber que ela era rica. E que estava triste.

“Seus pais devem estar com os pés queimando de tanto andar de um lado para o outro.”, revelou retomando a minha atenção. Ergui uma sobrancelha, mesmo que ela não pudesse ver. “Estão planejando chamar os seus amigos para comemorar com você.”

“Amigo.”, corrigi. “Depois de todos esses anos, acho que só restou Isaac.”, suspirei me inclinando para desligar o computador. Virei meu corpo com o auxílio da cadeira giratória e sorri. “Satisfeita?”

Sutton ficou em pé no segundo seguinte. Encolhi meus olhos ao mesmo tempo em que ela olhou para baixo. Nós dois esperávamos o barulho de seus saltos contra o assoalho de meu quarto. Silêncio absoluto. Pressionou os lábios junto, ajeitando o cabelo com os dedos. Eles caíram em ondas por seus ombros.

“Esqueço que não preciso ser mais silenciosa.”, ela gracejou e sua expressão ficou travessa. Ergui minhas mãos tentando impedi-la. Um esforço em vão. “Feliz aniversário, Sebastian!”, ela gritou com toda força.

Tapei meus ouvidos e rangi meus dentes, esperando que ela terminasse de estender a última sílaba de meu nome. Sutton riu de minha careta e voltou a se jogar na minha cama. Os lençóis nem se mexeram com o peso de seu corpo. Ela ria tanto que quase fiquei com medo que ficassem sem ar. Bufei mentalmente com esse pensamento.

Antes que pudesse repreendê-la para que agisse de acordo com sua idade – ou sabe se lá o jeito com que eles contavam os anos de... Existência? – minha porta foi aberta e minha mãe praticamente me arrastou escada a baixo. Meu pai já estava com o bolo nas mãos e tive a vaga sensação de que Sutton estava batendo palmas e cantando junto com eles.

Isaac apareceu mais tarde por lá e jogamos vídeo game, aproveitando nossos últimos dias antes que as férias acabassem. Sutton sempre estava por perto, nos observando com curiosidade. Seja sentava no degrau da escada, ou jogada ao meu lado, sussurrando dicas de jogo.

“Caramba!”, Isaac exclamou mantendo seus olhos na tela. “Como você consegue ganhar todas as vezes?”

Dei de ombros, fingindo tirar a sujeira de minha roupa.

“É um dom. O que posso fazer?”

Sutton bufou ao meu lado.

“Poderia ser um pouco sincero e me dar um pouco de crédito, Pimpolho.”, reclamou deitando seu corpo no sofá. Suas pernas se balançavam do lado de fora e sua cabeça pousou em meu colo. Meus olhos se arregalaram em sua direção. “Ah, Bas. Você já deveria saber que não vou atravessar seu corpo.”, revirou os olhos e voltou a se sentar.

Queria gritar que ela tinha se esquecido de me contar esse detalhe, mas tinha que fingir estar concentrado no jogo. Isaac se remexia descontrolado no sofá, seguindo os movimentos de seu personagem. Meu corpo estava congelado, deixando que apenas meus dedos se movessem pelas teclas. Em todos os anos em que tive contatos com eles, nunca tinha conseguido tocá-los.

“Você está bem, cara?”, Isaac me analisou, franzindo o cenho. “Parece que vai desmaiar. Ou que vai vomitar.”

Balancei a cabeça, tentando espantar aqueles pensamentos.

“Estou.”, mexi os ombros, como se estivesse me aquecendo e me inclinei da direção da televisão. “Só tenho um pouco de pena de você. Porque vou te detonar.”

*********************

Estava sentado com a vaga impressão de que meus pais estavam gritando comigo. Meus olhos permaneciam fixos no bolo e meus pensamentos cismavam de repetir a cena de Sutton deitando sua cabeça em minha perna e agindo como se fosse a coisa mais natural do mundo. Só que não era.

“Sebastian Parker, preste atenção.”, minha mãe disse parando a minha frente com as mãos na cintura e os olhos azuis estreitos. Pisquei os olhos algumas vezes, para que ela soubesse que estava focado em suas palavras. “Estamos decidindo se você está pronto ou não para o ensino médio.”, ela suspirou, pousando uma mão em meu ombro. “Acho que é muita pressão para você...”

“E por isso estou alucinando.”, completei, assentindo com as suas palavras. Ela ficou em silêncio e se virou para o meu pai. Ele assumiu seu lugar. “Não precisa começar aquele discurso de estamos preocupados que você esteja enlouquecendo. Já o decorei desde os onze anos.”

Diferente de minha mãe, que sempre gostava de manter o controle e mostrar sua superioridade, ele se ajoelhou para poder fitar meu rosto vermelho e franzido. Meu pai realmente estava preocupado. Eu também estaria em seu lugar. Seu filho acabará de completar quinze anos e ainda falava com pessoas que não existiam.

“Só queremos o melhor, Sebastian.”, ele disse em voz baixa.

“Eu sei.”, soltei o ar e senti sua mão em meus cabelos escuros. “É que aquele foi o primeiro nome que me veio a mente.”

Os lábios de meu pai se torceram em uma careta.

“Você estava gritando sozinho, Sebastian.”, minha mãe voltou para o meu lado, gesticulando descontroladamente. “Gritando e exigindo uma explicação de uma garota que nem estava ali.”, ela olhou para meu pai. “Qual era o nome dela mesmo, Tom? Summer... Samantha... Suzana...”

“Sutton.”, meu pai e eu dissemos em uníssono.

A mão em meu ombro me impediu de realizar o desejo de bater com a cabeça na mesa até encontrar a inconsciência. A culpa era de Sutton. Tinha subido até o quarto para exigir uma explicação – como minha mãe havia ressaltado – e ela se negou. Então me descontrolei e berrei com tanta força que até os vizinhos do Obama devem ter escutado.

Foi um descuido e, infelizmente, não havia sido o primeiro. Meus pais estavam cansados de me pegar gritando para o nada. Isso geralmente acontecia quando eu tentava negar um pedido a alguém. No mês passado, escutei uma conversa entre os dois. Uma conversa semelhante a que eles estavam tendo na minha frente.

Uma conversa que incluía uma passagem só de ida para o hospício.

Sabia que eles estavam esperando uma resposta. E – por Deus – que fosse muito convincente. Só que eu não tinha. Estava cansado de todos os anos ter que me justificar por algo que nem era culpa minha. Eles apareciam, eu não os chamava. Só que dizer isso aos meus pais apenas iria garantir minha internação.

Sinceramente, nunca fiquei bem de branco, e nem em uma camisa de força. Não tinha a mínima vontade de ter apenas isso como vestimenta obrigatória.

Pus meus cotovelos na mesa e massageei minhas têmporas. Lembro-me que no início tinha muitas dores de cabeça, só que atualmente eram apenas vibrações no fundo de minha mente. A mão de meu pai saiu de meu ombro, fazendo-me voltar para o mundo real.

“Desculpe.”, sussurrei. “Acho que estou com medo.”, menti e desviei o olhar para o outro lado da cozinha. Minhas bochechas coraram e eu rezei para que eles interpretassem aquilo como um sinal de vergonha. “Sutton é um personagem de um vídeo game que baixei no computador e acabei perdendo. Só que é estrangeiro e eu queria uma explicação...”, minha voz foi morrendo, até que parei analisando as besteiras que tinha dito. “Desculpe.”, repeti.

Minha mãe saiu batendo os pés e meu pai hesitou alguns segundos antes de segui-la. Levantei meu rosto na sua direção e o vi me estudando. Odiava ter um pai psicólogo. Parece que ele sabe exatamente quando estava mentindo. Por fim, ele apenas assentiu e foi atrás de minha mãe.

Sutton apareceu quase que imediatamente.

“Não quero falar com você.”

Seus olhos verdes estavam baixos.

“Desculpe.”

A porta do quarto de meus pais bateu. A raiva me tomou e só tinha uma pessoa em que eu poderia descontar. Inclinei meu corpo por cima do bolo, mantendo uma distância segura do rosto de Sutton. Ela ficou surpresa e pressionou as costas na cadeira. (Novamente: Como ela não atravessava?)

“Não desculpo não, Sutton.”, rosnei as palavras entredentes. Seus ombros se encolheram e eu apontei na direção do corredor. “Sabe o que eles estão fazendo nesse exato momento? Escolhendo o melhor manicômio da cidade para poder enviar o filho maluco. Tudo porque você não quer me dar uma estúpida explicação.”

Minha respiração estava pesada e a dor de cabeça voltou com força.

Sutton continuou olhando para a cozinha, presa em seus pensamentos. Pôs uma mecha de cabelo atrás da orelha. Então assentiu para si mesma. Eu ainda estava preso em minha própria raiva. Ela estava tranquila enquanto a possibilidade de ir para um manicômio batia em minha porta.

“Tudo bem.”, ela sussurrou voltando os seus olhos castanhos esverdeados para mim. Por um instante, meu corpo todo gelou. Ela está falando sério? “Acho que já estava mais do que na hora de te falar que você não é maluco.”, deu um riso amargo e se inclinou na minha direção. “Seus olhos...”

“Vai começar a zombar de meus olhos?”, a interrompi.

Eu tinha nascido com heterocromia, o que me fazia ter um olho azul de minha mãe e um castanho de meu pai. Algumas pessoas na escola zombavam dessa falha genética e por conta das histórias de que eu falava sozinho. Por isso só tinha Isaac como amigo – o que, sinceramente, não era grande coisa.

Cruzei os braços, defensivo. Sutton nunca havia zombado de mim. Parece que algumas coisas iriam mudar. Mas seu rosto estava sério, sem nenhum traço de deboche. Aquilo me fez ficar ainda mais temeroso.

Isso é fato engraçado nas pessoas. Elas lutavam tanto para ter a verdade diante de seus olhos, mas quando recebem a oportunidade de sabê-lo tem medo do que poderá ser. Afinal, era segredo por algum motivo, certo?

“Não estou zombando.”, ela retrucou. Antes que pudesse me desculpar, ela sumiu da cadeira e reapareceu ao meu lado. Seu dedo á centímetros de meu rosto. “Essa heterocromia é algo além de uma falha genética.”, explicou com um sussurro rápido, revelando sua excitação – ou sua pressa. Apontou diretamente para meu olho esquerdo –azul. “O limite entre o céu...”, apontou para o castanho. “...e a terra. O que é real e o imaginário. Poucas pessoas recebem isso e tem um motivo para isso.”

Meu peito se comprimiu, alertando-me que não iria gostar do motivo.

“Você não é louco, Sebastian.”, deu um sorriso meigo e passou os dedos por meus cabelos. Dei um salto na cadeira, encarando-a abismado. “Você só tem um dom de ver pessoas mortas. Fantasmas. Como eu.”, gesticulou para o próprio corpo.

Ok, me entendam. Com o passar dos anos, percebi que aquelas pessoas que viam atrás de mim me pedir favores não eram amigos imaginários e sim fantasmas. Uma vez cheguei a ver a foto de um deles no jornal. Então, as palavras de Sutton não deveriam ter me deixado tão amedrontado. Só que... Deixaram.

A possibilidade de ser louco não pareceu tão ruim de repente.

“Eles vêm até você para que você possa realizar seu último pedido antes que partam.”, Sutton continuou explicando, ignorando o assombro em meu rosto. “Apenas um pedido e eles vão embora.”, ela parou e respirou fundo, recuperando o fôlego. Aproveitei para fazer o mesmo. “Sei que é muita coisa para absorver, mas estou aqui para te ajudar.”, colocou sua mão em meu ombro.

Mesmo sorrindo, não deixei de notar uma sombra em seus olhos me alertando de que Sutton não havia me contato a história inteira. Não reclamei. Já estava com coisas demais para pensar.

*******************

Três anos haviam se passado desde a descoberta do meu dom. Meus pais estavam mais calmos com meus comportamentos estranhos e com a ajuda de Sutton – ela realmente tinha cumprido sua promessa – conseguia conciliar minha vida secreta com minha vida social.

Sim, eu finalmente tinha construído uma vida social no ensino médio. Realizei meu desejo de entrar para o time de futebol e tinha uma namorada linda. Isaac ainda era meu melhor amigo, mas tínhamos seguido caminhos diferentes. Aquela história de maluco tinha sido jogada para debaixo do tapete.

A noite, eu saía para ajudar algum fantasma a ter seu último pedido e voltava antes que sentissem minha falta. Melissa, minha namorada, reclamava um pouco de minhas escapulidas noturnas, mas nada que alguns baldes de elogios e mentiras não suprissem.

“Melissa ligou”, Sutton me avisou assim que entrei no quarto.

Lancei-lhe um olhar desgastado e joguei minha mochila no outro lado do quarto, deitando-me ao seu lado na cama. Seus cabelos roçaram em meu rosto e seu dedo mindinho se entrelaçou nos meus. Ficamos encarando o teto por alguns segundos, em absoluto silêncio. Sabia que minhas roupas estavam cobertas de lama, entretanto queria aproveitar aquele momento.

“O que ela disse?”, murmurei.

Sutton revirou os olhos.

“Sua mãe disse que você estava na casa de Isaac fazendo o dever de casa.”, ela narrou. “E Melissa deu um dos seus famosos ataques de patricinha.”, ela se remexeu até que seu corpo estivesse totalmente virado para mim. “Responda-me só mais vez o motivo de você namorar ela.”

Dei um meio sorriso, trombando nossos ombros.

“Isso é um pedido?”

Sutton se sentou, deixando seus cabelos caírem por seus ombros. Levantou uma sobrancelha em desafio e cruzou os braços. Em todos os anos em que nos conhecíamos, ela nunca ousou fazer um pedido para mim. Sabíamos que isso resultaria em nosso Adeus.

Talvez fosse o melhor, devido á determinados incidentes que ocorreram ao longo desse ano. Por exemplo, a péssima mania dela de entrar no banheiro quando eu estava no banho ou de ficar desfilando por meu quarto, exibindo seu corpo. Não deveria ter aqueles pensamentos por um fantasma, mas era quase inevitável.

Sutton não era o tipo de garota que poderia ignorar. Tinha presença, charme e uma inteligência invejável. Só que a tristeza que a rondava anulava todos esses atributos. Queria ver o mesmo sorriso de antes do meu aniversário de quinze anos e toda aquela confusão de manicômio.

“Vou fingir que não escutei isso.”, ela empinou o nariz e olhou para a outra parede. Mesmo com a aparência de uma garota de dezessete anos, na maioria das vezes ela se comportava como se tivesse doze. Bufou jogando as mãos para o alto. “Não consigo ignorar. Isso não é um pedido, é uma ordem.”

Ergui minhas mãos e arregalei os olhos.

“Ok, Senhorita.”, soltei um riso baixo. Ela balançou a cabeça, se sentindo insultada. “Talvez eu termine mesmo com Melissa. Nosso relacionamento já esteve em uma fase melhor. Agora é só grito, cobrança e grito.”

Sutton sorriu, recuperando seu bom humor.

“E grito.”, ela acrescentou.

“Esqueça esse assunto por um segundo e venha aqui.”, peguei em sua mão, puxando seu corpo leve de encontro ao meu e lhe dei um abraço. Meu rosto ficou na curva de seu pescoço e quase lamentei por não poder sentir o seu cheiro. Sua minúscula mão acariciou meus cabelos. “Nem acredito que amanhã farei dezoito anos. Estava pensando em ir até aquela livraria no centro e tentar um emprego. Não aguento mais depender dos meus pais.”

Bocejei simultaneamente que o corpo de Sutton se enrijeceu. Minhas pálpebras começaram a pesar, castigando meu corpo por todo o esforço da semana. Antes de me entregar totalmente á escuridão, entrelacei meus dedos aos de Sutton e senti sua respiração entrecortada. Como se estivesse chorando.

Sabia que estava sonhando no segundo em que vi um elefante cor de rosa apontar com a tromba o caminho até o pomar de pamonha. Segui naquela direção, contrariado. Já tive sonhos melhores e a realidade talvez fosse mais importante. Um sentimento de urgência não abandonava meu peito.

“Sério, Pimpolho?”, Sutton me chamou sentada embaixo de uma árvore comendo uma das pamonhas. “Um pomar de pamonha?”

Dei de ombros, sentindo minhas bochechas corando.

“Isaac ficou falando de pamonha ontem, acho que guardei a informação no fundo do cérebro.”, caminhei até ela e sentei-me ao seu lado. Diferente do habitual, ela estava usando um vestido branco de alças finas e que mal cobriam suas coxas. “Desde quando invade sonhos?”

Essa pergunta a fez soltar a pamonha e suspirar. Era um de seus momentos de divagação. Olhei para o seu rosto, esperando que organizasse os pensamentos. A luz do entardecer destacava seus traços finos e delicados. Encantado com sua beleza, me impedi de tocá-la, mesmo que minhas mãos formigasse ansiando por aquele simples contato.

Ao contrário do mundo externo, sua pele não estava cinzenta, mas nem por isso possuía muita cor. Ela era pálida, apenas com um leve bronzeado que destacava as sardas em suas bochechas. Além de uma pinta perto dos lábios delicados. Como nunca havia reparado em sua beleza depois de tanto tempo juntos?

“Eu vim aqui para poder te contar uma coisa que omiti há três anos.”, ela disse balançando suas pernas. Seus olhos ainda estavam distante do meu rosto. “Tem um jeito de acabar com toda essa coisa de dom e essas coisas.”, seus orbes esmeraldinos me encararam por baixo dos longos cílios. Deu uma gargalhada leve, mas carregada de tristeza. “É um jeito inevitável, na verdade.”

“Por que está me contando isso agora?”, perguntei em pânico.

Ela respirou fundo.

“Porque está na hora de fazer meu pedido.”, se ajoelhou virada para mim e pôs uma mão em meu rosto. Seus olhos se moviam por todo o meu rosto, tentando memorizá-lo. “Sempre fui uma garota inconsequente, Sebastian. Morri por ser inconsequente. Era para ser uma noite normal com minhas amigas, mas tive a brilhante ideia de pegar o carro de minha mãe e correr noite á fora. Perdi o controle por questão de segundos e bati em uma árvore. Felizmente, minhas amigas sobreviveram. Não tive a mesma sorte.”, deu de ombros. “Isso não importa agora. Estou feliz por ter te conhecido e por ter feito parte de sua vida. Uma vida estranha, se me deixar acrescentar.”

“Sutton, o que...”

“Não me interrompa, Pimpolho.”, ela sorriu, aproximando seu rosto ainda mais do meu. “Quando te conheci, tão pequeno e tão inteligente, percebi que aquela era minha última missão. Minha chance de redenção. Queria ajudá-lo e ser sua amiga. Tive a sorte de conseguir fazer os dois.”, pausou recuperando o fôlego. “Somos feitos das nossas escolhas, Sebastian. Nunca tive a chance de me despedir de minha mãe, nem de estar ao lado de minha irmã quando ela se formou. Não pude nem dar os pêsames á elas quando meu pai morreu.”, fechou os olhos, respirando fundo e controlando o tremor de seu peito. “São lamentações e eu escolhi viver sem elas. Viver com você.”, olhou ao redor, alerta. “Ao bater da meia noite, você irá parar de ver todos os fantasmas. Incluindo eu. Pensei em te deixar no escuro e apenas seguir seus movimentos, mas percebi que também tenho que seguir... para onde seja que for.”

Aquilo era uma despedida e mesmo que estivesse bastante óbvio o fim de tudo, ainda não conseguia acreditar. Deveria sentir alívio, ou felicidade, ou satisfação. Mas tudo o que me tocava era o vazio de perder Sutton. Ela acariciou minha bochecha e continuou seu discurso, não querendo prolongar a dor.

“Eu tenho que fazer um pedido para poder partir em paz, Bas.”, ela recitou as regras e mordeu o lábio inferior. Suas bochechas ficaram rosadas. “Quero que se lembre de mim, como sua amiga e companheira. Que te ajudou nos jogos de vídeo e quase te levou a loucura. Só se lembre.”

Seus lábios se pressionaram nos meus com paixão e amargura.

Apenas para que eu acordasse no segundo seguinte sobressaltado e suando. Olhei ao meu redor, preso á esperança de que havia sido apenas um pesadelo e que Sutton ainda estaria deitada ao meu lado, olhando para o teto e pensando no nada. Ou pensando em mim.

Meu olhar se fixou no relógio do despertador e um lamento saiu dos meus lábios. Era meia noite em ponto. Meus oficiais dezoito anos. Tinha perdido minha melhor amiga imaginária, apenas para me tornar um adulto.


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