História do Éden escrita por Vendetta23


Capítulo 1
Hoje




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Ovos, certo. Água, ok. Maçãs, ok. Parece que peguei tudo. Fecho os dedos em volta do papel agora amassado que era minha lista, guardando-o no bolso. Começo a andar em direção ao caixa, aonde tiro todas as coisas da cesta e as coloco no balcão.

“O preço da água subiu demais, não acha?” comento com o balconista, que, pela primeira vez desde que começou a passar os produtos, ergue os olhos para mim e balança a cabeça. A temperatura estava muito elevada no mercadinho, o que começou a fazer minhas costas suarem, mas não tiro o casaco para que não olhem as cicatrizes por baixo das mangas, eu não preciso atrair atenção desnecessária. Pago o balconista e coloco os produtos na minha mochila de costas, colocando-a cuidadosamente na mala por causa dos ovos.

Então eu me viro e lá está ela, parada no caminho do rastro de um raio de Sol que entrava pelas janelas elevadas do mercado, olhando para mim como se estivesse vendo um fantasma. Ela não estava completamente errada.

“Alex...” ela diz como se tivesse medo de falar mais alto que um sussurro e se aproxima de mim lentamente, olhos arregalados por trás dos óculos de armação azul. Ela carregava uma bolsa que parecia pesar bastante em seu ombro já vermelho por causa da fricção. Eu ajusto as alças da minha mala para que ela fique mais apertada contra as minhas costas caso eu precise correr. Mas ela não me olha como os outros me olhavam, não tinha repugnância em seus olhos ou a hesitação do medo em seus passos, ela ficou frente a frente comigo e perguntou “O que aconteceu com você?”. Provavelmente ela estava se referindo à mudança drástica na minha aparência devido aos meus dez quilos perdidos, pele mais morena, profundas olheiras encrustadas no meu rosto, cabelo tingido de preto. Aparentemente eu estava mais irreconhecível para mim mesmo do que para o resto das pessoas, soltei um suspiro.

“Carol” eu começo a suplicar, cansado de fugir “Por favor, não conte pra ninguém que me viu” eu esperava que ela entendesse, ela sempre foi gentil, compreensiva “Eu vou mudar o que vocês todos pensam de mim, certo? Eu estou trabalhando nisso, eu realmente estou” eu saio do caminho de um homem que empurrava um carrinho, sem tirar meus olhos dos dela. Pelo olhar que ela me deu, eu soube que meu segredo estava seguro, e, antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa, me virei e comecei a caminhar a passos rápidos para a saída.

Empurrando a porta com força, eu quase a bati contra uma mulher que estava entrando no mercadinho, pedi desculpas e andei mais um pouco até chegar ao limite da calçada, aonde ela cedia espaço para os canais aquáticos que cortam a cidade. Eu sempre gostava de olhar para a água, mesmo que ela fosse, na maior parte dos lugares, suja. Mas eu não sabia se Carol ia mudar de ideia, então comecei a andar até achar uma viela, me enfiar nela e procurar um cano para subir até o telhado da construção mais próxima. Era algo que eu fazia com tanta frequência que acabei por conhecer a maior parte dessa cidade pelos telhados de suas construções, que se erguem em um completo caos.

Desde que a água começou a invadir as cidades da costa e posteriormente também do interior do país, as pessoas começaram a construir desesperadamente andares extras em suas casas e prédios, transferindo tudo o que tinham para cima quando a água começou a invadir os andares térreos, tendo estourado as barreiras de contenção. Ficou mais difícil ainda de ver o horizonte. As pontes e ligações construídas entre edifícios, passando por cima das ruas agora aquáticas, facilitaram a locomoção as pessoas até o governo instaurar um sistema de transporte público aquático e construir novas calçadas acima do nível da água. Agora, as antigas passagens suspensas estão praticamente vazias e servem muito bem para mim.

Me movimento habilmente, cortando caminho pelos telhados e pontes, ansiando chegar em casa. Depois de 15 minutos correndo, finalmente chego no prédio de paredes enegrecidas, caindo aos pedaços, nos subúrbios da cidade. Entro pela porta que dá para o terraço, defeituosa, ela nunca fecha. Desço alguns lances de escadas até chegar no meu apartamento - não meu propriamente, mas um dos muitos abandonados por pessoas que migraram para o interior do país.

Jogo as chaves na mesinha na frente do sofá e tiro minha mochila para começar a guardar as coisas do mercado.

“Merda...” falo baixo quando vejo que três ovos estão quebrados. Depois de limpar tudo eu sento no sofá, na frente da TV, mas sem coragem para ligá-la. Sinceramente, eu não queria saber se eles ainda estavam me procurando ou sobre quaisquer fossem os problemas pelos quais essa cidade estava passando, eu já tenho os meus, e de sobra. Me reclino no sofá e fecho os olhos.

Péssima ideia.

Eu sempre a vejo quando fecho os olhos. Bombardeado com milhares de lembranças, me levanto para pegar o caderno e uma caneta, retomo a escrita da minha história.

Ela tinha olhos amendoados, cabelos cor de mel que se espalhavam por seus ombros e percorriam todo o caminho de sua pele até a metade de suas costas. Ela constantemente olhava pela janela do meu antigo apartamento, comentando como a cidade ficava mais bonita iluminada pela luz de velas e tochas, desde que a água arruinou a distribuição de energia para boa parte dela.

“Volta pra cama” eu dizia, me revirando e limpando a fina camada de suor da minha pele no lençol. Ela geralmente não respondia, ela falava tão pouco. Perguntas existenciais que me afligiam até conhecê-la foram trocadas pelo desejo de, acima de tudo, entender o que se passava pela sua cabeça.

Eu a amava.

Eu também a matei com as minhas próprias mãos no dia 12 de setembro do ano passado.

Se passou quase um ano desde sua morte e eu ainda não sei porque só agora decidi escrever o que realmente aconteceu. Talvez por não querer ser lembrado como um monstro. Talvez eu não queira ver o demônio no espelho.

Caro leitor, não espero obter perdão por meus atos, muito menos compreensão.

Permita-me começar...


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