Cartas para Hope escrita por Skye Miller


Capítulo 28
EXTRA: A primeira vista.




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You will meet much peoples, son. But no one will be like her. - Cassie Adams.

Meu suéter é azul e novo.

Ele está encharcado porque estou soando muito. Não gosto de calor. Não gosto de suor. Não gosto da Califórnia. Queria estar em Nova Iorque, pois minha prima Sophia está lá e Mike também. Lá está nevando, e eu gosto da neve.

Quero ir embora.

Mamãe me disse que hoje vou conhecer uma pessoa especial, mas não sei o que isso significa. Será que especial é a mesma coisa que legal? Ou seria algo importante? De qualquer maneira, estou zangado com a mamãe por ter me acordado cedo. Não gosto de acordar cedo.

– Henry, você já pensou em ter uma irmãzinha? – Mamãe pergunta olhando para mim pelo espelho do carro. Olho para ela confuso, o pai do meu primo Mike tem uma filha com outra mulher e ela é muito chata. Não quero ter uma irmã chata, na verdade acho que não quero ter irmã nenhuma.

– Uma irmã? – O sol bate no meu rosto e eu uso a palma da minha mão para proteger meus olhos. Papai está na minha frente com um sorriso, é raro ver o papai sorrindo, ele normalmente é sério. Não sei porque ele é assim, a minha mãe sempre está sorrindo e me abraçando, mas o papai me trata como um homem adulto, ele diz que está me preparando para ser seu sucessor. Eu não sei o que significa sucessor. Mas acho que sucessor é algo ruim, então não quero ser seu sucessor. E não quero que papai me trate como adulto, quero que papai sorria como a mamãe, quero papai me abrace como a mamãe. – Não sei, pra quê eu preciso de uma irmã?

– Não é necessariamente precisar, querido. Você vai gostar dela quando conhece-la, prometo.

– Eu já conheço muitas pessoas, mãe.

– Você conhecerá muitas pessoas, filho. Mas ninguém jamais vai ser como ela.

Eu penso em dizer que não entendi, mas então o táxi para e nós saímos de dentro dele. Estamos em frente a uma casa de portão preto e com um nome grande no auto. Eu não sei ler, mas reconheço as letras. O-R-F-A-N-A-T-O.

Umas senhoras vestidas de preto sorriem para mim. Eu tenho medo delas, por isso me escondo atrás da minha mãe, elas parecem com monstros de filmes de terror, apesar de eu ver algumas moças vestidas como elas na missa de domingo. Acho que são freiras. Percebo tarde demais que também não gosto de freiras. Sophia diz que eu sou muito “seletivo”, não sabia o que essa palavra significava, e quando perguntei para mamãe e ela explicou, constei que Sophia estava certa.

Meu pai sorri para mim e aperta meu ombro. Não sei porque estão me dando tanta atenção. Nós caminhamos em direção a uma sala grande cheia de crianças. Nunca vi tantas, nem mesmo no recreio da creche. Meus olhos se arregalam quando um garoto se aproxima de mim e tenta pegar o meu boneco do Batman. Não gosto que peguem nos meus brinquedos, não gosto de compartilhar minhas coisas.

Mamãe me diz que devo ficar sentado quieto em uma cadeira de plástico no canto da sala enquanto ela conversa com uma das freiras, mas eu continuo em pé olhando para as outras crianças. Algumas têm a minha idade, quatro anos, mas outras são bem mais velhas. Elas não são iguais aos meus coleguinhas da escola, elas vestem roupas rasgadas e correm de um lado para o outro brincando de pique-pega.

– Ei! – Olho para o lado e tem uma menina me encarando. Eu me afasto, Mike diz que meninas tem piolho e que são más. Eu acredito nele, pois minha prima Sophia às vezes é muito malvada. Ela costuma bater em minha cabeça com suas bonecas da Barbie. – Você quer brincar?

Eu pisco os olhos algumas vezes antes de balançar a cabeça em negação. Ela é menor do que eu, tem cabelos castanhos e curtos que se dividem ao meio e estão em duas trancinhas. Seu rosto é tão fino que se assemelha a daquelas modelos da TV que a mamãe costuma criticar. Ela parece um anjo, com um vestido azul desbotado nas mangas e os pés sujos descalços. Um anjo de grandes olhos castanhos escuros e boca rosada.

Acho que Mike está errado em relação a garotas serem más. Ela é um anjo. Anjos não são más.

– Você gosta de correr? – Pergunta mais uma vez. Não sei o que responder, sua voz é aguda e ela fala de um jeito engraçado, enrolando as palavras quando diz "R", "Q" ou "S", como aqueles personagens caipiras de desenho animado. Eu nego e ela faz uma careta. – Do que você gosta então?

– Eu gosto de... – Eu penso no que falar e ela me olha atenta, aproximando-se de mim para ouvir tudo mais atentamente. Deveria dizer a ela que gosto de assistir desenho do Batman, mas ela não ficaria contente com essa resposta, e eu não quero deixar o anjo de vestido azul decepcionado. Não sei o motivo, mas quero deixa-la impressionada. – Desenhar.

– Oh! Que maravilha! – Ela abre um imenso sorriso que mostra todos os seus dentes. Seu sorriso é bonito, e há uma fenda entre seus dois dentes da frente, um pequeno espaçozinho interessante do tamanho de uma uva passa. Sophia também tem isso, mas nela é feio, porque os espaços são muito grandes e ocorre em todos os dentes. Minha mãe diz que Sophia vai ter que usar aparelho para juntar os dentes e não haver mais fenda. Ao contrário dos dentes de Sophia os do anjo de vestido azul são lindos, e a quase invisível fenda a deixa bonita. – A irmã Rosie Mary me deu de natal uma caixa nova de lápis de cor, mas não gosto de desenhar. Quer que eu dê para você? Aí você pode me desenhar.

– Eu já tenho lápis de cor. – A essa altura eu já não estou mais incomodado com a presença de tantos coleguinhas. A menina ao meu lado às vezes bate o pé impaciente e olha para o pátio a nossa frente, como se quisesse correr até lá. – Não precisa me dar.

– Mas vai ser um presente! Você tem que aceitar.

– Minha Mamãe disse que eu não posso aceitar nada de estranhos, sua mãe não lhe ensinou isso também?

O anjo de vestido azul para de sorrir e abaixa a cabeça.

– A irmã Rosie Mary disse que minha mãe está morando bem longe agora, lá em cima com o papai do céu. Não tenho mamãe aqui.

–Ah. – Isso é tudo o que consigo dizer. A garota não sorri mais, na verdade se encontra agora meio tristinha. Não gosto de vê-la triste, quero fazê-la sorrir. – Você ainda quer me dar os lápis?

– Sim! – Ela responde erguendo o rosto e pega minha mão com força puxando-me para um outro lado da sala. Estou nervoso, pois Mike disse que é nojento que garotas são nojentas e é nojento segurar suas mãos. Concordo com ele, não sei porque os adultos ficam tanto de mãos dadas. É esquisito. Tento puxar minha mão, mas o aperto é firme. Os outros garotos me observam e alguns até sorriem para mim, eles não são muito diferente dos meus amigos da creche, acho que posso ser colega deles também. – Você é meu novo amigo! A irmã Rosie Mary diz que devemos presentear aqueles que são importantes para nós, e meus amigos são importantes psra mim.

– Posso conhecer seus amigos?

– Não. – Sua resposta brusca me assusta. Ela pega uma caixa pequena e velha e me dá, lá dentro tem lápis descascados e alguns quebrados. Na minha casa não tem lápis assim, são todos grandes e bonitos. Eu olho para o anjo de vestido azul e sorrio, apesar de serem simples ela está muito empolgada em dá-los para mim.

– Obrigada. – Eu olho para os lados procurando meus pais, eles estão em pé conversando com uma mulher de vestido preto e às vezes olham para mim e sorriem. – Por que não posso conhecer seus amigos?

– Porque só eu posso ver eles. – Ela sussurra tão baixinho que eu preciso me aproximar para poder ouvir. – A irmã Rosie Mary diz que eles são chamados de "Imaginários". Não tenho amiguinhos de verdade, as outras crianças me acham estranha.

– Por que?

– Nunca tive vontade de saber.

– Mas por que?

– Não sei.

– Por que?

– Você pergunta demais! – O anjo de vestido azul reclama com o rosto rubro e me olha como papai costuma me olhar quando faço algo errado. Engulo em seco, não gosto desse olhar. Não gosto que alguém fique zangado. – Mas eu agora eu tenho você, não é? Você é meu amigo! Qual é o seu nome?

Antes que eu possa responder um garoto se aproxima de nós e puxa uma das tranças do Anjo para baixo. Ela faz uma careta de dor e tenta se esquivar.

– Hey baixinha. –Há meninos assim na minha escola, mamãe os chama de "mal criados" e "moleques", não sei o que significa, mas talvez seja algo ruim. Eu aperto o Batman com força contra o corpo e me afasto. – Amanhã é seu aniversário, não é? Temos uma surpresa pra você. Ops, não é mais surpresa.

O sorriso do garoto é estranho. Ele é estranho. Eu não gostei dele, não gostei do sorriso dele e nem da maneira que ele tratou o Anjo de vestido azul.

Levanto meu brinquedo e bato com força na cabeça do menino. Mamãe vai brigar comigo quando perceber o que eu fiz, mas foi para defender minha amiga. Ela deve ser o que meu pais dizem ser especial.

Aprendi com Mike como bater em alguém ruim. Tenho um vizinho chamado George e ele é grande e barulhento. George se zanga quando seu pai me leva pra escola. George se zanga comigo. Eu lhe dou um tapa quando se zanga comigo. Mamãe se zanga quando faço isso. Mas faço isso porque George é mau. George não me bate. George tem medo de mim. Mas não gosto que tenham medo de mim.

O garoto faz um barulho estranho e saí correndo para o pátio com a mão na cabeça. Não queria ter batido nele desse jeito, mas papai me dá tapas nas mãos quando faço algo errado, ele diz que é para meu próprio bem. Talvez ter batido no garoto tenho sido o melhor para ele, para o bem dele, mas por que me sinto tão culpado? Será que papai se sente culpado quando me coloca de joelhos e diz que eu não posso levantar por uma hora? Será que papai se sente culpado quando me bate nas mãos e nas pernas?

– Obrigada! – A trança da menina está mais folgada que a outra, porém ela parece não ligar. Limpa as mãos na bainha do vestido, sorri e ergue a mão para frente. – Meu nome é Hope.

Hope.

O nome do Anjo de vestido azul é Hope.

Combina com ela.

Hope.

– Sou o Henry. – Suas unhas estão sujas, mas estou pouco me importando com isso. Eu aperto sua mão e balanço, é menor e mais macia que a minha. Não concordo com o que Mike diz. Não é totalmente nojento segurar a mão de uma menina. É até bom. Ela sorri outra vez, seu sorriso é tão bonito, não me canso de olhar para ele. – O que você gosta de fazer?

– Correr. – Ela responde de maneira automática e agarra minha mão novamente. Dessa vez Hope me leva até o pátio. Eu não posso ficar aqui, mamãe disse que eu deveria ficar quietinho no canto. Tenho medo do papai se zangar por eu ter sido desobediente e bater nas minhas mãos na frente de todo mundo. É vergonhoso e dói muito. – Um dia, eu vou ser famosa por correr! Vou ganhar troféus e medalhas! Vou ser rica! Você vai ver! Nós vamos ser amigos até lá, não vamos?

– Claro.

Hope solta minha mão e começa a correr pelo pátio. Não consigo parar de admirar sua força de vontade, a maneira como ela corre: Nariz arrebitado , olhos apertados e sorriso de lado. Ela olha para frente como de estivesse determinada em chegar a um determinado destino o mais rápido possível.

Quando Hope finalmente para de correr de um lado para o outro no pátio meus pais aparecem na porta e eu aceno para eles. Meu suéter não está tão soado quanto antes e meu boneco do Batman continua intacto, isso significa que está tudo bem, que meus pressentimentos de que algo ruim fosse acontecer estão errados.

– Hope! Hope! Hope! – Eu grito seu nome e ela vem saltitante até mim. Não consigo parar de sorrir, fiz uma amiga que parece um anjo e que me deu uma caixa de lápis de cor. Estou feliz. Hope se aproxima e eu puxo seu pulso. – Essa é a minha mãe Cassie e esse é o meu...

– Tio John! – Hope grita soltando minha mão e corre até o meu pai. Meu sorriso desmancha quando meu pai pega Hope no colo e a abraça de lado. Ele nunca fez isso comigo, sempre reclama por eu estar sujo. Por que ele está abraçando Hope assim? Por que ele nunca me pegou no colo e beijou minha bochecha como está fazendo com ela? – Que saudades.

– Henry querido. – Minha mãe se ajoelha e fica do meu tamanho. Ela se parece comigo, seus cabelos são loiros e logos, seus olhos são os mais lindos que eu já vi, cinza. Ela sorri para mim e aperta minha bochecha um pouco. Quando ela faz isso eu normalmente sorrio, mas agora eu não consigo sorrir, não estou gostando da Hope abraçada com meu pai. Estou zangado com Hope. – Essa é a sua nova irmãzinha.

– A Hope? – Pergunto surpreso. Não. Não pode ser, não quero que a Hope seja minha irmã, quero que ela seja apenas minha amiga. Não quero dividir meus pais com ela.

– Sim, querido.

Eu faço birra. Aperto meu suéter, jogo o Batman no chão e começo a chorar. Não quero que a Hope seja minha irmã, eu gosto muito dela, mas não quero que ela seja minha irmã. Quero que ela seja minha amiga, apenas isso. Não quero morar com ela, dividir meus pais, meus brinquedos, minha casa ou qualquer coisa com ela. O Anjo de vestido azul vai me roubar tudo o que eu tenho. Vai roubar minha atenção, tempo, amigos, afeto e principalmente, meu coração.

Mike estava certo. Garotas são más.


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