Depois que o último iniciado pula, Minna pede a nossa atenção de um modo um pouco rude. Noto que ela tem poucas partes do corpo que não estão cobertas por tatuagens. O cabelo, pintado de rosa, esconde um desenho, e eu quero descobrir o que é.

– Agora, são oficialmente iniciados da Audácia! – ela olha fixamente em meus olhos – Nascidos aqui, comigo, transferidos, com o Sander! Por aqui! – diz ela apontando para o grupo de preto.

Sander nos instrui rapidamente. Entregam-nos roupas de nossa nova Facção e jogamos as antigas fora. Recebo uma calça grande demais e um casaco confortável. Gostava daquele vestido, mas agora não sou mais da Amizade. Terei de deixar meus velhos hábitos e minhas roupas para trás.

Outro líder da Audácia termina seu discurso e somos levados para o dormitório onde passaremos as próximas semanas. Eu e Morgana pegamos camas uma do lado da outra. As partes de cima de beliches. Sobram cinco camas de baixo ao todo. O quarto parece vazio e silencioso demais. Estou acostumada com os berros de meus irmãos e o caos gostoso do complexo da Amizade.

Somos liberados para jantar. Minha barriga está roncando. Não como nada desde o café da manhã. No caminho para o refeitório noto que as pessoas aqui são livres para fazerem o que quiserem com seus corpos, terem os cabelos como bem entenderem... Ninguém os julga... Ninguém critica.

Abrimos a grande e pesada porta de metal e estamos no refeitório. Vamos em direção à fila a fim de pegar algo delicioso para comermos. Pego uma bandeja preta. As comidas são muito diferentes das da Amizade. As de meu antigo lar eram muito mais saudáveis. Demoro a decidir, arrancando alguns gritinhos irritados. Por fim, acabo com um pedaço de bolo de chocolate, que só havia comido uma vez antes, e um pouco de café. Na minha antiga Facção, não é comum ver pessoas bebendo café, já que a cafeína causa agitação, não é um gesto bem visto. Agora estou na Audácia, vou fazer o que me der da telha.

Reviro o pedaço de bolo com o garfo algumas vezes antes de comer. Finalmente enfio um pedaço dentro da boca e me lembro do porque gostei tanto da primeira vez.

Três garotos se aproximam de nós. Os três são iniciados. Um da Erudição, outro da Franqueza e o último da Audácia.

– E aí? Prazer, sou Bardan! – diz o garoto da Erudição, sentando-se a meu lado – Este é Nico, da Franqueza, e este é Parker, nasceu aqui!

O garoto da Audácia não parece muito falante e tem um semblante misterioso. Apesar de ter, apenas, dezesseis anos, ele tem várias tatuagens. Os cabelos são mais, digamos, normais: curtos e pretos. Os olhos são verdes como as folhas das flores que crescem perto da minha antiga casa de madeira.

– Pril! – minha amiga me desperta de meus pensamentos.

Ela me apelida e eu rio.

– Fala, Mo! – viro meu rosto para ela.

– Os garotos perguntaram se podem se sentar! – eu não percebi.

Afirmo com a cabeça.

– Vieram de onde? – Nico pergunta olhando para Mo.

– Eu vim da Amizade, ela veio do mesmo lugar que você! – respondo, sendo simpática.

Os olhares se voltam para mim, todos curiosos.

– Porque vir justo para a Audácia? – Pergunta Bardan – Pancadaria não é contra os valores de sua Facção?

Todos rimos. Percebo que fiz novos amigos. Nossa sintonia em tão pouco tempo me assusta um pouco, mesmo de onde eu vim as amizades não acontecem tão rápido assim.

– Eu gosto de novos desafios! – respondo, piscando.

– Até uma Hippie gosta de uma boa pancadaria! – exclama Parker.

A voz dele é suave, mas ao mesmo tempo rouca. Um arrepio percorre meu corpo. Um frio inexplicável.

Outro instrutor, Ricky, avisou-nos que estava na hora de os iniciados irem pra seus dormitórios. Todos levantamos e nos dirigimos às escadas.

Quando chegamos, os garotos mudam suas coisas para as camas de baixo das nossas. Bardan no mesmo beliche que eu e Nico no mesmo que Mo. Nos preparamos e vamos deitar. Conversamos até que os outros iniciados nos mandarem calar a boca. Pego no sono lentamente.

Estou no meio dos campos da Amizade novamente. Pisco rapidamente, percebo que minha casa está atrás de mim. Reconheceria estas margaridas pelo chão em qualquer lugar. Alguém toca meu ombro. Meu pai.

– Ainda bem que escolheu a Amizade, meu anjo! – ele diz e me abraça.

Há uma confusão em dentro de minha cabeça.

– Eu não escolhi isso! – respondo, quase chorando.

– Então não é mais minha filha, você é igual ao seu irmão, um desgosto! – ele grita.

A imagem de meu pai some, se transforma em meu irmão mais novo, Mason. Ele grita alguma coisa, mas eu não o escuto, está mudo.

– Eu te odeio! – a voz dele se torna um barulho estrondoso – Você é a pior irmã do mundo... Uma decepção! Eu te odeio! – ele repete e eu fico desnorteada.

As lágrimas enchem meus olhos. Uma delas cai no chão e se transforma em um tsunami. Afogo-me.

Acordo tossindo. As palmas de minhas mãos estão suadas e meu rosto está queimando. Seco as lágrimas, que realmente estão presentes. Pulo do beliche, torcendo para não acordar ninguém. Calço as botas que me foram dadas e saio dali.

Prendo meu cabelo em um rabo de cavalo, mas alguns dos fios caem sobre meu rosto. Me dirijo em direção ao abismo. Ando o longo corredor mal iluminado. Meus olhos ardem.

Chego e vejo um corpo sentado. Parker. Sento-me a seu lado, vendo a água cair. Ficamos em silencio por um bom tempo.

– Não conseguiu dormir? – ele pergunta e a voz rouca ecoa.

– Consegui, mas... – desisto de contar.

– Pesadelo! – ele completa – Por que a vergonha?

– Não sei! Talvez por que esta seja a Audácia! – digo e ele solta um leve riso.

– Não se preocupe... – ele respira fundo – Eu também tive!

Levanto a cabeça e o encaro. Seus olhos me remetem, novamente, ao campo de margaridas. Sorrio. Ele responde com os olhos. Outro arrepio. Parece regra ter um ao estar perto dele. Respiro fundo.

Resolvo voltar para a cama, já que, agora, o sono já é maior que o medo. Levanto-me e me despeço. Ele e eu seguimos caminhos opostos.

Passo a noite pensando no porque do garoto ter chamado tanto minha atenção e me lembrado de onde vim. Seus olhos são a última imagem que me vem a cabeça antes de adormecer novamente.