Um sonho de Futebol escrita por Hey Anon


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Bom espero que gostem.
A palavra chave utilizada foi Guarda-chuva.E se passa no Brasil .



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Congelantes e dolorosos eram os pingos de chuvas que caiam. O garoto observava com desejo o guarda-chuva na mão da senhora. A vestimenta composta por um casaco roxo de veludo emplumado, junto de uma calça preta de seda e uma bota de couro eram, na verdade, só mais jeito de ganhar um bom status. Olhou para o menino maltrapilho que a observava e expressou nojo. Ele já estava acostumado com isso, conhecia bem o seu lugar, felizmente sonhar condena, mas também salva.

Apalpou o bolso da calça, de tecido já puído, certificando-se de que seu maior e único pertence, com exceção da roupa do corpo, estava com ele. Os pés descalços e calejados colocaram-se a andar aumentando o ritmo gradativamente até que finalmente estavam correndo. Percorreu as ruas estreitas já conhecidas e adentrou a comunidade. Observou os barracos... Eram tortos, mal construídos, frágeis e feios, mas eram lares. O rapazinho só não podia entender porque um nome tão desconecto com a realidade. Vila da paz... Aquela era uma fazenda nada pacífica ou bonita, mas afinal o que isso importava?

Chegando ao seu “próprio lar” escalou as paredes maquinalmente e gatunamente. Talvez aquela fosse umas das únicas construções ali digna de ser chamada de casa. Era muito melhor estruturada que as outras e mais firme. Talvez pelo fato que o construtor e dono da mesma era um arquiteto mal sucedido. Sentou-se no telhado da casa sobre um papelão, na parte protegida pelo telhado do andar superior da casa.Esticou o pescoço até seus olhos acalcarem a televisão, pela janela do barraco na frente.

Não é a toa que o Brasil é chamado de país do futebol. A família, dona da TV a qual o garoto via discretamente, estava assistindo ao jogo. A Copa do mundo FIFA, sediada esse ano no Brasil, deixava a todos animados, incluído o rapaz. Nunca teve dinheiro para comprar uma bola, camisetas, chuteira nem nada do tipo, entretanto, quando se usa a imaginação uma tampinha de garrafa faz o lugar da bola, o chão sujo e barrento vira o gramado de um grande estádio, e dois gravetos cravados no chão se tornam o gol. Às vezes jogava com os outros garotos da comunidade, às vezes jogava sozinho. Driblava o vento, confundia o goleiro inexistente e comemorava o gol. Ouvia as vozes chamando seu nome. ”Gabriel! Gabriel! Gabriel!” elas diziam na mente do pobre menino que nem ao menos tinha um sobrenome.

Seus pais morreram em meio a um tiroteio, seis anos atrás e agora, com quatorze anos o garoto já sabia como sobreviver sem a ajuda de ninguém. Não é como se ele fosse um ladrão, só seguia as leis da selvagem cidade.

Deixou de sonhar e voltou sua atenção para o jogo. Brasil versus México. O ganhador disputaria com a Holanda dali três dias no estádio do Corinthians. Todos os moradores da Vila da Paz comemoravam por estarem em um lugar estratégico. Nenhum deles tinha condições de comprar um ingresso, mas dariam um jeito de participar da Copa. É comum um garoto brasileiro, onde os esportes são desvalorizados com exceção do futebol sonhar em ser um jogador, contudo para Gabriel aquilo era sua esperança. Ele não tinha nada além de seus sonhos. E ele acreditava!Acreditava que seria o craque da seleção brasileiro. Iria ser rico, ter roupas confortáveis, comida todos os dias, uma TV, uma casa e que poderia tomar banho todos os dias.

Ensopado e tremendo, adormeceu.

Acordou no dia seguinte com os primeiros raios quentes de sol. Não que fossem muitos, afinal as construções irregulares e a poluição servia de bloqueio para luz solar. Coçou os olhos e logo se levantou. Desceu do telhado deixando que seus pés entrassem em contato direto com o chão mais uma vez. Não ia à escola, passava os dias andando pelas ruas movimentadas e perigosas. Tinha dias que pedia esmola e arrecadava o suficiente para comprar um lanche na padaria e tinha dias que não ganhava nem para um pirulito. Às vezes roubava comida e às vezes revirava-se de dor, causada pelo estomago vazio. Tirava a sede nas torneiras públicas.

Hoje era um dia como qualquer outro tirado o fato que o garoto ansiava para saber o resultado do jogo de ontem. Parou em frente a uma padaria e ficou em silêncio tentando ouvir a conversa entre o padeiro e o cliente. Era silenciosamente também que torcia. Queria tanto ouvir que seu país foi glorioso mais uma vez.

— Viu o jogo ontem? — comentou o dono do estabelecimento.

— Ah sim. Mas é claro! — respondeu o comprador.

— É. Foi um jogo difícil... Mas como o esperado, nós vencemos!

— Ah, mas a vitória já estava certa. Estávamos bem mais preparados.

— Com certeza! E agora o jogo vai ser aqui perto? Não é ótimo?

— Maravilhoso! É melhor você se preparar. Vai estar cheio de gringo por aqui.

— Oh sim. Já estou preparado. Fiz questão de aprender inglês esse ano e já coloquei o telão na padaria. — disse apontando para a televisão pendurada em cima de algumas mesas. —Enfim. Obrigado pela compra. Volte sempre!

— Obrigado digo eu — disse o cliente, cordial.

O menino, do outro lado da parede pulou de alegria. Sim! Sim! Seus ídolos estariam ali, pertinho dele! E foi meio da felicidade e comemoração que o garoto acabou por pisotear uma garrafa largada no chão. Soltou uma exclamação de dor, olhou para o pé, ferido, e assustou-se com o sangue. Mancando, entrou na padaria e pediu ajuda.

— Olha seu moço! — chamou. — Posso usar o banheiro, por favor?

— Está louco?! Sai já daqui! Onde já se viu?! Um mendigo na minha padaria — exclamou o homem, furioso.

— Mas seu moço! Eu machuquei o pé! Por favor! — o jovem maltrapilho implorou com lagrimas nos olhos.

— Já mandei sair! Está sujando todo o chão. Vamos, saia já ou eu mesmo te coloco para fora! Vai espantar os clientes — reclamou, sem mínima piedade.

Gabriel não tinha escolha se não fugir dali antes que fosse agredido. Saiu correndo, mancando, sangrando e chorando. Desejou tem uma casa, não, menos que isso, desejou ter um sapato. Um simples calçado, algo banal. Quem não tinha um sapato? Ele era um ser humano afinal, ou não era? Sim, ele era. Então porque era tratado como uma besta selvagem? Ele vivia nessa sociedade, e ainda sim era como se não fosse parte dela. O garoto não tinha direitos ou cuidados. Por que ninguém o procurou e acolheu quando seus pais morreram em meio aquele tiroteio? Porque a morte de seus pais foi ignorada? Eles eram inocentes afinal! Não eram santos, cometeram erros e algumas vezes infringiram a lei, e porque foram obrigados. As pessoas são jogadas num beco sem saída, onde morrer sendo honestas, ou morrem sendo criminosas. Não havia para onde fugir.

Derramando lágrimas e mais lágrimas, continuou a correr, até um córrego dentro da sua comunidade. Colocou o pé dentro da água, mas afinal não sabia se o estava limpando-o ou sujando-o mais. Foi quando ouviu vozes pouco mais adiante.

Olhou temerosamente e não pode segurar o grito de terror.Não era como se fosse a primeira vez que teve contato com a morte, entretanto como poderia se acostumar com ela? Saberemos que nos tornamos monstros quando virmos um homem cair morto ao nosso lado e não sentirmos nada. Os homens que jogavam o cadáver na água imunda agora fitavam o garoto com raiva. Foi tudo muito confuso. Não foram ouvidas palavras. Por míseros centímetros o garoto não foi atingido. Deu-se inicio a uma cena de fuga e perseguição. Gabriel corria rápido cortando o vento e os homens gritavam.

— Pega o garoto, porra!

— Seu vagabundo! Corre!

— Ah, o chefe não vai gostar disso!

Finalmente o garoto virou em uma das vielas e despistou os criminosos. Sentou no chão, escondido em um canto escuro. Seu coração batia tão rápido que parecia querer pular para fora de seu peito. Um ódio destruidor se alojou no garoto. Dessa vez ele não chorou. Ele jurou! Jurou que um dia seria famoso e rico. Quando ele fosse um jogador famoso, ah! Seria ele quem estaria no topo do mundo! E olharia para os outros da mesma forma que o olharam. Não seria humilhado novamente. Não seria agredido novamente. Não seria subestimado novamente.

Passou um bom tempo escondido, com o coração batendo desesperadamente. Só quando mais calmo e seguro saiu do esconderijo. Era já por volta de três da tarde e o garoto rumou para o campo improvisado da comunidade. Na verdade não passava de um terreno vazio e irregular onde os garotos afundaram no chão quatro pedaços de pau; dois em cada ponta do campo formando o gol. O garoto queria relaxar. Foi um dia difícil, ou melhor, um dia mais difícil. Como de costume o lugar não estava vazio e assim que os outros garotos avistaram Gabriel acenaram.

— Ei Gabriel. Que bom que tu chegou! Temo uma coisa pra te falar — o menino o qual falou isso parou a bola no pé, deu uma cuspida no chão e foi até o amigo. — Depois de amanhã, no jogo sabe? Então, a gente tá combinando de ir assim tudo junto, todo pessoal daqui sabe? Então e daí invadir lá, o estádio! Tu topa?

O garoto que acabou de ganhar tal convite tão indevido parou para pensar. Sabia que era errado, e ele não gostava de fazer coisas erradas, apesar de tudo. Mas... Ele nunca teve chance de nada, nada... E afinal o que tinha a perder? Nada também.

— Sim eu topo!

E assim ficou tudo combinado.

Os garotos jogaram até anoitecer e então cada um voltou para seus devidos “lares”. Assim se passaram o dia seguinte como costumavam. Alguns até tinham o costume de ir à escola, mas... Brasil, o país do futebol... É claro que daria folga aos alunos para aproveitar a Copa. É claro que as crianças ficaram felizes, mas... Afinal de contas a escola publica não ensinava muita coisa. Perdidos em um labirinto sem saída... Sem educação ou saúde, sonhos como se tornar um traficante poderoso eram comuns. Pobres crianças... Logo que ingressavam no ramo do tráfico, não passando por meros carregadores, eram mortos. Por inimigos ou pela policia.

Todos aguardavam ansiosamente pelo dia do jogo. A comunidade inteira. Nem podia se falar em Gabriel. Ele vibrava. Será que conseguiria ver os jogadores de perto? Conseguiria um autógrafo talvez? Ele sabia que estava correndo riscos, mas era sua chance. O Brasil país do futebol e mesmo assim, como sempre, os jogos ao vivo eram restritos aos que tinha tinham dinheiro. O que é que não gira ao redor do dinheiro?

O garoto ligou seu radinho em uma estação qualquer. Já era de tarde e o sol estava se pondo. Ficou sentado no telhado olhado os lugares. O céu escurecia, mas nunca ficava realmente escuro. Luzes e mais luzes, de todos os lugares. Pessoas e carros. Como seria viver em um lugar onde não houvesse pessoas dormindo em telhados, carros a incomodar e a luz que ilumina o céu fosse as estrelas? Olhou para o pé machucado. Como seria viver em um lugar onde não houvesse garrafas de vidro no chão, e quando alguém se machucasse, independe de quem fosse, todos a ajudariam? E se ninguém passasse fome? Como seria isso?
Gabriel colocou a mão sobre a barriga que doía pela fome. Não havia comido nada hoje... Mas quem liga? Amanhã seria um dia inesquecível. Deitou-se, desligou o rádio e adormeceu.

Ele tinha as bolas nós pés. Driblou um, dois, três e quatro! Quatro! É agora! Ele chuta e gol! A partida foi fechada com chave de ouro! Gol do craque! Gabriel! Foi tudo que Gabriel lembrou-se do sonho. Mas o que importava um sonho? Hoje seria um grande dia.

O menino foi se encontrar com o resto do pessoal. Todos estavam ansiosos. Os garotos ficavam conversando em um canto e os adultos em outro. É verdade que ali não era o lugar mais seguro do mundo e a população não era assim tão unida, mas havia uma coisa inegavelmente boa na Copa. Todos se juntavam para torcer por um mesmo time.

O jogo seria na hora do almoço, portanto não demorou muito e começou-se a ouvir o barulho da torcida no estádio. Todos vibrando pela emoção, marcharam em direção à arena.
A grande porta, a aglomeração de gente, as barracas de comida... Aquele cheiro delicioso que entrava peças narinas de Gabriel e fazia seu estomago roncar. Chacoalhou a cabeça. Não era hora para pensar em comida. O hino nacional começou a ser cantado e logo foi reconhecido por aqueles do lado de fora, mas pouco podia se entender dele, afinal milhares de pessoas cantando sem sincronia não produziam nada além de barulho.

O pessoal da comunidade foi se juntando em um bolo de gente na frente do portão, protegido por guardas. De repente o primeiro fanático começou a correr contra o portão. Obviamente foi barrado com facilidade, mas foi nesse momento que a confusão deu início. Todos corriam e jogavam-se contra o portão forçando-o, ao mesmo tempo em que tentavam se livrar dos seguranças. Nenhum dos lados tinha piedade. Alguns foram abatidos, e não demorou a que a polícia agisse com as balas de borracha e bombas de gás.
Gabriel por outro lado se sentia perdido. Queria voltar atrás, mas não tinha saída. Começou a chorar. Apesar de tudo era só uma criança, um humano. Tentou fugir da qualquer jeito e gritou, gritou e implorou para que abrissem passagem. Ninguém abriu. Viu rostos conhecidos, mas tudo se tornava disforme, irreconhecível.

De repente a gritaria cessou e tudo ficou calmo.

As pessoas se moviam em câmera lenta. Sentiu-se tonto. O sol no quente no rosto; a fome, a fraqueza, o medo, o desespero. Seus joelhos fraquejaram e o traíram.
O garoto desmaiou no chão. Inconsciente por míseros segundos. E quando abriu os olhos foi aterrorizador. Uma imensidade de pernas e pés passou por ele apressados, em fuga e perseguição. Alguns talvez não tivessem visto seu corpo e outros simplesmente não se preocuparam. Egoísmo é da natureza humana.

Tentou gritar, não foi capaz.

Pelo menos durou pouco o sofrimento.O garoto abriu os olhos lentamente e só depois de um tempo pode reparar no ambiente. Olhou para o homem sorridente que lhe estendia a mão e a mulher que o abraçava. Reparou também que ainda estava no estádio, mas agora dentro do vestiário. Apesar do ocorrido não sentia dor, e também não sentia fome. Olhou para si próprio. Não vestia mais as velhas roupas esfarrapadas. Vestia agora um uniforme oficial do Brasil. Abriu a boca e arriscou.

— Pai?

— Sim filho. — O homem a sua frente respondeu.

— Pai. Mãe... Isso é um sonho? — perguntou com os olhos lacrimejando.

A mulher sorriu e a única resposta que obteve do pai foi:

— Vamos. Estão te esperando no campo.

— E depois teremos um jantar especial para comemorar nossa vitória — acrescentou a mãe.

O garoto pegou a mão do pai e se levantou, sorrindo. No fundo, sabia que esse era um sonho, o tipo de sonho que duraria eternamente.

O corpo não foi identificado pela polícia, e logo dado como indigente, foi enterrado em um lugar qualquer. Não houve uma lágrima derramada por aquele garoto. Ninguém nem soube o que havia acontecido. E a vida dos vivos, continuou como sempre.


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