Além do Muro escrita por Ana C


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Agradecimentos especiais a uma pessoa muito importante, que me ajudou com a ideia e opinou em cada detalhe dessa história. Com certeza, isso não teria saído sem o auxílio dele.
E a você, que está aqui agora, desejo uma boa leitura!



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Berlim, primavera de 1971

Amado Wendell,

Já se passaram dez anos desde a última vez que nossos lábios se encontraram em um beijo apaixonado. Só Deus sabe o quão dolorosa foi, para mim, essa década! Cento e vinte meses sentindo sua falta. Quinhentas e vinte semanas tentando descobrir como está sua vida. Três mil, seiscentos e cinquenta dias de angústia.

Porém, todo esse tempo não foi suficiente para apagar sua imagem da minha memória. Ainda me lembro de cada detalhe do seu rosto... A cor dos seus olhos continua sendo a minha favorita e os seus cachos loiros ainda me lembram cabelos de anjo. Você ainda tem meu coração, mein liebster*.

Sei que há uma grande chance de você já estar casado, sendo o pai de uma família maravilhosa, como sonhávamos que a nossa fosse. Saiba que, se isso for verídico, estarei extremamente feliz por você! Mas eu... Eu não consegui dar esse passo. Ainda sou totalmente sua.

Continuo aqui, rezando para que tudo isso passe, pois quero te encontrar mais uma vez. Quando é pra ser, até o que tenta atrapalhar, ajuda. Esse grande empecilho que se formou entre nós, por exemplo, servirá apenas para nos aproximar. Mantenha a fé!

Sinto sua falta o tempo todo.

Alles Liebe**,

Evelyn

Evelyn recolocou a carta na gaveta e secou as lágrimas que insistiam em rolar pelo seu rosto. Durante muitos anos, culpou-se por nunca ter conseguido fazê-la chegar ao seu destinatário. Porém, dezoito anos após a escrita de tais palavras, sabia que não podia carregar para sempre aquela responsabilidade, afinal, não foi ela quem promoveu a construção de um muro entre a Berlim Oriental e a Ocidental.

Sentou-se com a cabeça apoiada na fria parede de seu quarto e pôs-se a pensar. O início da tragédia do muro de Berlim deu-se, paradoxalmente, em tempos de esperança: ao fim da Segunda Guerra Mundial. O mundo, sob o luto de milhões de mortos, acreditava que respiraria um pouco de paz. No entanto, algo deu errado e os quarenta e quatro anos seguintes foram marcados pela Guerra Fria, uma disputa entre a União Soviética e os Estados Unidos. Ambas as potências haviam sido parceiras e saído vitoriosas da guerra, mas eram grandes oponentes ideológicas: enquanto os norte-americanos pregavam o capitalismo, a URSS defendia o socialismo.

Com 155 quilômetros circundando a capital alemã, o muro de Berlim não apenas dividiu seu território em uma parte Ocidental e outra Oriental; separou, também, dois corações. A Cortina de Ferro apagou um dos mais bonitos romances de que se teria conhecimento: o amor de Wendell e Evelyn.

Era noite de oito de novembro de 1989 e Wendell sabia o que aconteceria no dia seguinte. Chovia lá fora e o frio o teria incomodado muito em outros tempos, mas não naquele momento. Dentro de sua casa, frente à lareira, seu único pensamento estava longe dali, mais especificamente na imagem da doce Evelyn. Levantou-se, chegando perto da janela. Sua vista era demarcada por um muro imenso, espesso. “Maldito muro!” Pensou, mas logo esqueceu que aquilo era ruim. O que importava era que, no dia seguinte, aquela muralha seria derrubada e ele ajudaria a fazer isso com as próprias mãos.

– Wendell, feche essa janela. Está frio e você pode pegar um resfriado. – Heidi, sua irmã mais velha, ordenou.

– Heidi, você não está feliz? – Wendell questionou, ignorando por completo o mandamento da irmã.

– Feliz por quê? – Heidi inquiriu, mas o caçula apenas sorriu. Eram poucos os osis*** que sabiam sobre a queda do muro e ele se orgulhava por ser um deles. Apesar da pergunta sugestiva, Wendell tinha no rosto uma expressão triste. Incomodada com o silêncio, Heidi aproximou-se e apoiou a mão direita no ombro esquerdo do homem. Em seguida, emendou – Você ainda sente falta dela, não é, meu irmão?

O homem, de agora quarenta e oito anos, assentiu. O tempo passou, mas Wendell ainda se sentia como o jovem de vinte primaveras que era no último encontro com sua amada. Em geral, não gostava de falar sobre Evelyn, mas aquele era um dia especial: o último em que estariam separados pelo muro. Por isso, iniciou o assunto.

– Heidi, eu não devia estar falando isso, mas não consigo esconder nada de você. Esse vai ser o meu último dia triste. O último longe de Evelyn. – Wendell bradou, com uma euforia mal disfarçada. A senhora fez cara de dúvida e ele apressou-se em explicar, mas ela foi mais rápida.

– Ah, não diga que vai fugir. Não se lembra do rapaz que tentou atravessar para o outro lado e foi assassinado pela polícia no início do ano? Wendell, eu não me perdoaria nunca se o mesmo acontecesse com você, pois prometi para die Mama**** que nenhum mal te atingiria... – Heidi, aflita, buscava tirar aquela ideia da cabeça do irmão, pois sabia que havia inúmeros finais trágicos para ele. – Além disso, você não tem notícias de Evelyn há quase três décadas. Ela já pode ter se casado, Deus sabe se não teve também filhos.

Heidi não tinha entendido o que Wendell planejava para a noite seguinte, mas o mais novo perdeu a vontade de explicar ao ouvir as palavras proferidas. Doía pensar que tivesse sido estúpido a ponto de criar expectativas para um outro encontro com Evelyn, sem saber se esta queria também encontrá-lo. Seu coração quebrou-se em vários pedaços quando ele imaginou sua amada com uma família sem ser ao lado dele. Mas, caso isso tivesse ocorrido, ele estaria exultante pelo simples fato de vê-la feliz.

– Vou dormir. Boa noite, Heidi. – Wendell murmurou, quase ininteligível. A mulher fez menção de pedir, novamente, para que o irmão desistisse da ideia, mas hesitou. Sabia que ele era teimoso e, a ela, cabia apenas rezar para que nada acontecesse.

Entrou em seu quarto e, por todos os lados, encontrava lembranças de Evelyn. Não queria acreditar que a linda moça tinha conseguido passar por cima do passado e desacreditado do futuro que teriam lado a lado, mas sabia que iria sofrer bem mais se descartasse essa possibilidade e ela fosse real. Deitou-se e fechou os olhos. Não queria pensar nela. Pelo menos não naquele momento.

Do outro lado do muro, Evelyn travava uma grande luta: precisava dormir, mas não tinha sono. Sua cama era fria demais e ela não conseguia parar de imaginar como seria mais confortável se Wendell estivesse ali para aquecê-la. Diversas lembranças boas do amado foram se formando em sua mente e, contra sua vontade, chorou como criança durante a maior parte da noite. Mal sabia ela que seus dias de tristeza aproximavam-se do fim...

O dia seguinte amanheceu especialmente frio. Wendell levantou-se com uma incômoda dor de cabeça, mas decidiu ignorá-la por completo, como fez com o que ouviu da irmã na noite anterior. As nuvens tinham adquirido um tom escuro, como se previssem o que aconteceria adiante. O homem olhou para o céu e imaginou que não tardaria a cair uma forte pancada d’água, por isso, pegou um guarda-chuva preto e velho que estava esquecido havia dias em seu armário e saiu de seu lar, encaminhando-se ao velho casebre em que os osis reuniam-se semanalmente.

Enquanto caminhava, Wendell não conseguia desviar os olhos da enorme muralha ao seu lado e sua mente tentava constantemente descobrir o que se passava do outro lado. Sobretudo, ele pensava em como era o cotidiano de Evelyn. Embora quisesse afastar de si aquele pensamento, era óbvio que, em sua cabeça, encontravam-se as mais diversas questões sobre a vida de sua amada.

Guten Morgen!***** – Wendell murmurou após fazer ecoar o rangido da velha porta do cômodo em que já estavam reunidos os demais rapazes que, com o tempo, tornaram-se seus amigos, pois compartilhavam a vontade de derrubar aquele muro que apenas os atrapalhava. Entretanto, a história de nenhum deles era marcada por uma paixão que foi separada pela enorme construção de concreto. Todos os homens ali reunidos tinham interesses exclusivamente políticos e econômicos, exceto Wendell que sempre foi um romântico incorrigível.

– Wendell! Que bom que já chegou! Junte-se a nós. – o mais velho exclamou, em meio às risadas do restante. Observou que, mesmo ainda sendo muito cedo, cada um deles segurava um copo de bebida alcoólica nas mãos. Uniu-se aos demais e, em poucos minutos, já acompanhava-os nas gargalhadas e no licor.

Evelyn, longe dali, levantou-se atrasada. Continuava perturbada com o frio que lhe importunou durante a noite anterior, mas, àquele dia, acordou sentindo algo que há tempos não sentia. Não soube distinguir o que era, mas com certeza era um bom presságio. Adiantou-se em vestir alguma coisa que lhe mantivesse quente durante o trajeto e correu para o hospital em que trabalhava havia quase uma década.

Quando começou a escurecer e a Lua despontou no céu, os berlinenses puderam ouvir o confuso comunicado via rádio sobre a possibilidade de os cidadãos da Alemanha Oriental viajarem, ainda naquele dia, para a parte Ocidental do país.

Com uma euforia contida por vinte e oito anos, os homens, que ficaram reunidos no velho casebre durante todo o dia, ansiando pelo aviso que sabiam que aconteceria, correram em direção às cancelas que permitiam a passagem pelo Muro de Berlim. Logo, a concentração de pessoas foi aumentando e, apesar do frio e do medo, toda a população da capital alemã, motivada pela sensação de liberdade e união que ficou omitida por muito tempo, gritava repetidamente: “Nós somos o povo!”.

As cancelas que separavam as duas Alemanhas foram abertas. Mas aquilo não era suficiente: era necessário que a muralha caísse por terra. Assim, algumas brechas foram abertas no paredão e os cidadãos, sobretudo os osis, encarregaram-se de terminar a derrubada daquilo que lhes causou tanto sofrimento. Não estavam munidos de nenhuma arma ou fúria, somente embriagados pelo total sentimento de satisfação ao ver a Alemanha voltando a ser apenas uma.

Wendell não seria capaz de descrever a emoção que sentiu ao pisar em solo Ocidental. Mas sua comoção ainda não estava completa: ele precisava encontrar-se com Evelyn. Procurou-a por todos os lados, mas foi em vão. Ela certamente não estaria ali, pois desde muito jovem fugia de coisas em que pudesse haver violência e ele sabia bem que a uma raposa velha não se ensina novos hábitos.

Queria afastar-se daquele alvoroço, afinal, ser testemunha de milhares de abraços cheios de saudades e reencontros não estava lhe fazendo bem. Talvez ele nem pudesse sentir novamente o calor do corpo da pessoa que foi o motivo de sua luta para chegar até aquele lado, a sua doce e adorável Evelyn. Além disso, a dor de cabeça que sentiu no início da manhã aumentava gradativamente.

Entretanto, se quisesse encontrar-se com Evelyn, Wendell teria que procurá-la. Por isso, caminhou por entre as pessoas, esbarrando na maioria delas e sem se dar ao trabalho de desculpar-se. Apenas olhava para todos os rostos femininos que se encontravam ali, mas sabia que nenhuma delas possuiria feições tão agradáveis quanto às de Evelyn. Isso durou tempo suficiente para a noite cair por completo e ficar tarde demais para estender sua busca. Mas aquilo não importava, afinal, Wendell tinha o resto de sua vida para procurá-la... E alguma coisa lhe dizia que a encontraria logo.

Evelyn nem acreditou quando se deu conta de que o muro havia sido derrubado. A porta para seu encontro com Wendell que, por anos, foi apenas uma utopia, estava finalmente aberta. Bastava um pouco de fé e não tardaria para que o sonho se tornasse real. Àquela noite, conseguiu dormir bem, apesar do frio.

Como na noite anterior, Wendell encostou-se na janela da sala e olhou para fora. A vista era a mesma, com uma única diferença: o imenso muro que, antes não permitia que sua visão se estendesse por toda a cidade, agora não existia mais. Sorriu e, só então, lembrou-se de agradecer a Deus antes de dormir.

Passaram-se dois dias de incessantes buscas de ambas as partes. Mas nenhum deles obteve sucesso: Wendell, que foi procurar por Evelyn na casa em que ela morava antes da construção do muro, ficou sabendo que ela não era mais a proprietária da casa e o novo dono nem chegou a conhecê-la, pois a comprou de terceiros. Evelyn, por sua vez, não era capaz de lembrar-se onde Wendell costumava morar. Mesmo assim, fez o que pode para tentar encontrá-lo.

Ao fim do segundo dia, Wendell chegou à sua casa sentindo-se extremamente cansado: seu corpo todo doía, sentia um frio terrível, tossia sem parar e sua cabeça latejava. Sabia que, caso queixasse-se com a irmã mais velha, receberia uma represália, afinal, nos dois dias, ele saiu de sua residência contra a vontade dela e, pior, pouco agasalhado. Mesmo assim, precisava falar com Heidi, já que não sabia onde ficavam guardados os remédios e não suportaria aquela dor sem o auxílio de uma aspirina.

Heidi apareceu assim que ouviu a primeira crise de tosse de Wendell.

– Vou te levar ao pronto-socorro agora. – a mais velha comunicou, vendo o estado do irmão.

– Heidi, não tem necessidade. Eu estou bem. – Wendell tentou mentir, mas fez uma expressão de dor assim que terminou a frase.

Heidi apenas deu um sorriso de canto. Ela sabia que a distância entre um simples mal-estar e uma grave doença era muito pequena e, como prometeu para a mãe que cuidaria do caçula da melhor forma possível, não podia deixar que nada ruim lhe acontecesse. A mulher chamou o marido que, sabendo da promessa que a esposa fez para a sogra, pegou as chaves do seu Trabant****** e ajudou o cunhado a chegar até o automóvel.

Passaram na frente do hospital mais próximo, que, pela força do destino, estava fechado. Seguiram até encontrar um que estivesse com as portas abertas. Entraram rapidamente e, ainda na sala de espera, um enfermeiro foi aferir a pressão e medir a temperatura de Wendell. Ele estava com uma febre muito alta, por isso, encaminharam-no para um quarto, juntamente com outros pacientes.

Wendell foi medicado, mas precisaria ficar internado já que, devido ao excesso de frio a que foi exposto, ele havia sido vítima de uma hipotermia. Heidi e o marido deixaram o hospital depois de terem ouvido, de uma série de médicos, que nenhuma tragédia aconteceria com o homem naquele local e que seria melhor irem descansar.

Já era madrugada e, mesmo sob o efeito de remédios de diversos tipos, Wendell não tinha sono. Pensou que aquela seria mais uma das costumeiras noites passadas em claro, olhando para as rachaduras do teto. No entanto, o teto do hospital não tinha rachaduras e a única coisa que ele podia fazer era fechar os olhos e pensar em Evelyn. Foi então que a enfermeira plantonista adentrou o quarto, a fim de checar se todos os pacientes estavam bem. Mesmo sendo extremamente discreta, Wendell pode ouvir o barulho que a enfermeira fez ao entrar. Abriu os olhos para vê-la e, para sua infinita surpresa, era Evelyn! Ela estava mais velha, era verdade, e um pouco mais gorda, mas seu rosto angelical continuava o mesmo.

Evelyn olhou de relance para os pacientes e observou que um deles estava acordado. Aproximou-se dele, para ver se ele estava passando bem. Ele sorria com uma felicidade que ela nunca tinha visto. Olhou-o com atenção e... Era Wendell! Seu amado e tão esperado Wendell! Evelyn não podia se ver, mas tinha absoluta certeza de que seu sorriso parecia tão grande e tão feliz quanto o dele.

Ambos sabiam que era loucura se unirem em um abraço naquele momento, mas não puderam hesitar. Enfim, seus corpos estavam próximos novamente. Wendell sentiu-se livre de toda a dor que o incomodava até aquele instante. Talvez fossem os remédios fazendo efeito, mas preferia acreditar que era o poder que sua amada Evelyn exercia sobre ele. Ela foi invadida por um sentimento tão bom, prazeroso e imenso que não fazia ideia do lugar de onde ele pudesse estar saindo.

Desvencilharam-se e ficaram por longos instantes contemplando-se mutuamente: o tempo passou para ambos, é claro que passaria, mas o amor e a paixão, não se afastaram deles em momento algum. Nem mesmo um muro de concreto foi capaz de mantê-los distantes, pois aquele amor era para acontecer.

Relembrando as palavras do poeta Rainer Maria Rilke, o tempo não é uma medida. Um ano não conta, dez anos não representam coisa alguma. Viver é crescer como a árvore que não apressa a sua seiva e resiste, tranquila, aos grandes ventos da primavera, sem medo de que o verão possa não vir. O verão há de vir. Mas só vem para aqueles que sabem esperar, tão serenos como se tivessem a eternidade à sua frente. Agora, eles tinham a eternidade, o para sempre. Amar-se-iam além do amor, viveriam além da vida. E fariam tudo isso juntos, afinal, precisavam compensar os vinte e oito anos que passaram distantes.


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Notas finais do capítulo

Como eu usei algumas palavras e expressões em alemão para dar mais vivacidade à história, segue um vocabulário:
* Meu amado
** Com todo o meu amor
*** Na época em que a história se passou, com a Alemanha dividida, os alemães orientais eram chamados de "osis".
**** A mamãe
***** Bom dia!
****** O carro típico dos alemães da época, carinhosamente apelidado de "Trabi".
Usei como base para a parte teórica alguns sites com reportagens sobre o Muro de Berlim.
E à você, que chegou até aqui, meu muito obrigada. Espero que tenha gostado!