Deusa Estelar escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 6
Capítulo 5


Notas iniciais do capítulo

Baruch Hashem (Graças a Deus), enfim, o presente capítulo ("super extended") está concluído!!!
Boa leitura!!!



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"O poder absoluto corrompe absolutamente. O que é um problema, se você não tem poder."

Iskander-Drago Museveni - Manifesto Nietzschiano

"A lição não pode ser mais sábia e prudente: não ponhais ao alcance das mãos de uma criança os comandos da usina que distribui a luz, porque vos deixará às escuras."

González Pecotche (Raumsol), pensador humanista argentino

 

(Ponte de comando da Majorum, AGORA.)

Diário Pessoal do Capitão

Data Estelar: 92102.203

"Ao investigar as causas do fenômeno metagaláctico de 'apagão' do Universo centrado no sistema Kepler-78, a Majorum deparou-se com um construto alienígena na forma de uma imensa esfera espacial ambulante que parece ser feita de luz sólida, protegida por um formidável escudo defensivo de energia hexadimensional e controlada por uma inteligência artificial superior cujas motivações e objetivos permanecem insondáveis. Todas as evidências até agora apontam a esfera alienígena como responsável não só pela ruptura espaço-temporal que causou o efeito de apagão cósmico, mas também pela recente abdução do Dr. Karl Dharz, membro do C.S.I. a bordo da Majorum que desapareceu sem deixar vestígios."

— Prontidão de combate total, senhor - disse Luna Lyang fria e rapidamente. Os dedos esguios da MecOrgan voavam sobre o teclado virtual holográfico do console de armamentos e posto tático com uma velocidade sobre-humana. - Pentaescudo ativado.

Sinjoro Lorphall, ativar propulsores - ordenou Togo ao navegador. - Toda ré a meia força de impulso. Recuar. Recuar!

— Sim, comandante.

— Computador, além do Dr. Dharz mais algum tripulante ou passageiro a bordo da Majorum desapareceu nos últimos cinco centiciclos? - indagou o capitão.

— Negativo.

Togo suspirou. - Aquela máquina, aquela I.A. nos sondou e, dentre mil e quatrocentas pessoas a bordo, por alguma razão resolveu abduzir um importante cientista da Federação, amigo e colaborador do Presidente Laukenickas.

— E nós vamos tratar de resgatá-lo, Sinjoro Togo. - Ghowrid voltou-se para Luna Lyang. - Abrir hipercanal de comunicação nave-a-nave, tenente.

— Frequências externas abertas, capitão.

Ghowrid, a voz ampliada pelo sistema de som, falou solenemente: - Aqui é o Capitão Arjuna Ghowrid, comandante da nave estelar U.F.S. Majorum, da Federação Estelar Unida, para a inteligência artificial que dirige a grande nave à nossa frente. Você, que é obviamente o produto de uma civilização extremamente avançada e superior, rompeu a barreira entre as dimensões, invadiu o nosso universo, nossa galáxia, e ora se encontra em um setor do espaço que é governado pelas leis da Federação Estelar Unida. Compreendemos que a onda de choque hiperenergética que vitimou os ocupantes de nossa base neste sistema estelar foi um efeito colateral da ruptura espaço-temporal, e não um ato deliberadamente hostil. Agora, porém, ao abduzir um cidadão da Federação a bordo de nossa nave, você deliberadamente cometeu um ato inamistoso. Ao fazer isso você cometeu o que nossas leis consideram um ataque proposital. Insistimos que responda imediatamente a esta comunicação.

Nenhuma resposta (apesar do tradutor universal acoplado).

Arjuna Ghowrid levantou-se bruscamente, caminhou pela ampla ponte de comando (cujo piso ostentava o símbolo da F.E.U. em azul-escuro e branco) e parou diante da tela principal, que mostrava a grande Arca Cósmica esférica flutuando dentro do círculo dos seus incomparáveis anéis prismáticos contra o fundo negro do espaço.

Sinjorino Lyang! Armar todos os torpedos quânticos, cronotônicos e transfásicos - ordenou o capitão. Luna lançou-lhe um olhar intrigado por um instante, mas obedeceu.

— Torpedos armados e carregados - reportou a oficial de armamentos.

Torpedos quânticos, fotônicos, cronotônicos ou transfásicos eram armas táticas ideais para os combates no espaço contra alvos deslocando-se a 99% da velocidade da luz. Usando de um sofisticadíssimo sistema de energia de ponto zero - que aproveita a energia existente no próprio "vácuo" do espaço, ou seja, prescinde de combustível - muito mais apto para penetrar os escudos energéticos do inimigo, os torpedos quânticos possuíam um raio de alcance de 3,5 milhões de quilômetros, o mesmo dos "velhos" torpedos fotônicos (impulsionados por fótons e dotados de ogivas de antimatéria), mas com um impacto explosivo várias vezes maior do que aqueles.

Ainda mais mortalmente destrutivos eram os torpedos transfásicos, os quais geravam um pulso de compressão subespacial em superposição de diferentes estados de fase assimétrica, por meio do qual conseguiam se "unir" aos campos energéticos das naves inimigas e atravessá-los. Como a configuração transfásica de cada projétil era única e diferente das outras - produzida aleatoriamente por um efeito de feedback dissonante - , tornava-se impossível para os sistemas defensivos do inimigo prever a configuração de seus estados de fase. (Essa tecnologia fora criada pelo povo reptiloide dos damaghorianos, e transferida para os federais sob a égide de uma aliança militar entre Damaghor e a F.E.U. durante as Guerras Daemon em 409-429 d.V.)

Por fim, os torpedos cronotônicos eram igualmente capazes de trespassar qualquer tipo de campo de força - exceto blindagens temporais - devido ao fato de operarem em um estado constante de variância de fluxo temporal. (Uma tecnologia "roubada" dos insectoides loraks do Eastside da Via Láctea graças às Nigra-Operacioj dos federais!) Um único torpedo transfásico ou cronotônico bastava para desintegrar uma belonave estelar, ou um pequeno asteroide com três quilômetros de comprimento.

— Armar todos os bancos phasers dorsais e ventrais, mais o Phaser de Destruição Máxima - ordenou Ghowrid sem tirar os olhos da tela. O pacífico explorador galáctico dera lugar ao militar preparado para qualquer tipo de confronto.

Luna olhou para Ghowrid com uma expressão surpresa e alarmada em seu belo rosto juvenil. O Phaser de Destruição Máxima ou PDM ou "Superphaser" instalado na antena defletora de uma nave da classe Destiny não era um phaser convencional e sim uma superarma espacial megapulsar que consistia de vários feixes de phasers unidos numa única direção, tornando-os num único feixe mais portentoso, para descarregar toda sua força - como pequenos pulsos contínuos de energia - em disrupção máxima contra uma nave inimiga. O disparo de tal arma devastadora podia facilmente vaporizar um asteroide de grandes proporções, destruir uma pequena lua ou (se os borgs não tivessem sido extintos) um cubo Borg em poucos microciclos, mas drenava a nave estelar de quase toda a sua energia, deixando-a totalmente desprotegida e indefesa por cerca de cem microciclos (após o que os sistemas ofensivos/defensivos voltavam ao funcionamento normal). Por esta razão, um capitão estelar só se atrevia a empregá-la em uma situação de extrema urgência. (A tecnologia "precária" utilizada na fabricação do PDM fora adquirida, através de engenharia reversa, dos canhões megapulsares de uma nave-base cylon semidestruída encontrada no sétimo planeta de um sistema desabitado em um setor até então inexplorado do Octante Alfa Meridional, em 437 d.V. - a única a ser recuperada pela Frota Estelar; e por outro lado, o simples pensamento de que existia alguma coisa lá fora entre as estrelas capaz de aniquilar uma astrobase cylon de mil e oitocentos metros de diâmetro equipada com escudos paratrônicos de quinta dimensão, vinda da Galáxia M-87 no distante futuro de outra linha temporal, bastava para provocar vários calafrios de apreensão - ou o equivalente biomecânico disso - espinha abaixo na MecOrgan Luna Lyang.)

— Phasers armados e preparados, senhor. Energizando PDM - disse Luna, com sua habitual eficiência fria. Seu semblante impassível não espelhava o sentimento de insegurança que martelava insistentemente em seu íntimo.

Líria, empenhada, junto com Lorphall, em uma vã tentativa de se comunicar com a I.A. da Cosmoarca mediante telepatia, olhou para Luna naquele momento e (com seus sentidos empáticos) captou o temor e a preocupação nos pensenes da MecOrgan. Não era apenas a preocupação da oficial tática com a segurança da nave e da tripulação, mas igualmente - ou até mais - o temor e a preocupação da esposa e mãe com a segurança de seu marido humano e de suas filhas gêmeas, híbridas meio-humanas e meio-artificiais - Jonathan e as pequenas Skye e Chloe eram para Luna o centro do seu universo, e ela protegia aqueles que amava, sendo capaz de dar a vida por eles. Por sua livre escolha (MecOrgans não são limitados pelas Leis da Robótica). Proteger é amar. Para Joe Takahashi isso bastava. Podia não ser "amor" humano - MecOrgans e inteligências artificiais tinham uma visão de mundo diferente da dos homens e das inteligências orgânicas - , mas era o mais perto desse sentimento que uma biomáquina, um ciborgue holotrônico conseguiria chegar.

Líria involuntariamente pensou em sua própria família humana adotiva que vivia numa colônia espacial orbital no ponto de Lagrange L4 de Terra: um típico "casal triangular" (dois homens homoafetivos e uma mulher hétero, poliamorosa e "mãe substituta") e seus cinco filhos - um par de coirmãos semiclones e duas meninas adotadas de um banco de embriões congelados (todos gestados pela mãe substituta do triângulo), além da própria Líria. Jamais duvidara de que seus dois pais e sua mãe humanos amavam-se uns aos outros, assim como a ela e seus irmãos. Amor humano! Mas a total devoção de Luna pelo companheiro e pelas filhas era um sentimento igualmente profundo. Que importava, pois, que não fosse um sentimento idêntico ao amor que um ser humano sentia?

Ghowrid dirigiu-se à estação de Dal Gahud. - Sinjoro Dal, dispare um enxame de nanites para tentar atravessar o escudo que envolve a esfera gigante alienígena e obter leituras mais precisas da constituição do alvo, em busca de eventuais pontos vulneráveis.

— Sim, capitão. Três gigadoses de nanites a caminho - disse o oficial de ciências. - O enxame deve atingir o envoltório energético em 1,5 microciclo e completar a análise holográfica do alvo dentro de 2,6 centiciclos, mesmo considerando os acidentes de percurso, tais como colisões com micrometeoroides, calcinação por raios cósmicos ou simplesmente desabilitação por efeitos quânticos.

Togo levantou-se de sua cadeira e andou lentamente na direção de Ghowrid. - É essa sua intenção, capitão? - indagou ele, usando a transmissão de som dirigida. - Abrir fogo concentrado com todas as armas disponíveis para tentar romper o escudo de defesa da esfera?

Ghowrid virou-se e encarou o primeiro-oficial, que parara a pouco menos de dois metros de distância (respeitando cada qual a "bolha territorial" ou "espaço pessoal" do outro, o que evitava conflitos, pois ambos eram nietzschianos e machos Alfa-Mais, geneticamente condicionados para serem fortemente individualistas e competitivos).

— Nossa prioridade, Sinjoro Togo, é chamar a atenção da I.A. alienígena a fim de libertar o Dr. Dharz, de preferência por meios pacíficos - respondeu Ghowrid em voz alta, para a tripulação da ponte ouvir. - Mas, se ao final de tudo, não for possível... Bem, nada nos impede de testar a resistência do escudo defensivo alienígena com o armamento da Majorum. A esperança de que nossos phasers e torpedos consigam causar algum dano ao escudo de força supradimensional da esfera é - para dizer o mínimo - bastante reduzida. Dominamos a quarta dimensão e, a duras penas, conseguimos abrir para nós o hiperespaço pentadimensional, mas nem sequer conseguimos imaginar o que seja o ultraespaço da dimensão hexadimensional. - Fez uma pausa e acrescentou: - Bem, só o que temos a fazer é experimentar.

Togo assentiu e voltou para sua cadeira à direita da cadeira de comando do capitão. - Dados dos nanossensores avançados, Sinjoro Dal?

Nos cantos dos olhos e da boca do quodariano surgiram pequenas rugas de apreensão (quase invisíveis em sua pele negra). - A taxa de sobrevivência dos bilhões de nanobôs na trajetória até o alvo ficou em torno de 87%, comandante. Dentro do esperado. Nenhum destes, no entanto, sobreviveu ao impacto contra o escudo da esfera. Taxa de destruição, 100%. O campo de energia hexadimensional da nave esférica é intransponível, mesmo a nível molecular.

Ghowrid acomodou-se de novo em sua cadeira no centro da ponte de comando e voltou-se para Líria. - Sinjorino Lemos, que novidades tem para nós?

A jovem que parecia uma criança meneou a cabeça negativamente (como faziam os humanos terranos). - Lamento, capitão. A outrincon, a entidade artificial alienígena simplesmente ignorou minhas tentativas de contato telepático. Já enviei todo tipo de mensagens telepáticas, com exceção de ameaças.

Sinjoro Lorphall?

O navegador erthusino sorriu de maneira estranha (segundo o costume de seu povo), indicando desapontamento e tristeza. - Eu também não tive sucesso em contatar o alienígena com minha telepatia, capitão. "Ele"... "ela" ou "isso", o que quer que seja, sua aura mental é por demais poderosa, quilométrica. Se assim o quiser, pode transmitir e receber simultaneamente emissões telepáticas a longas distâncias. Se não o faz, é porque não quer.

— É possível que não esteja interessado em entrar em contato com outrincons biológicos como nós... ou melhor, como a maioria de nós - teorizou Líria, relanceando um olhar para Luna. - Encontramos muitas formas de vida cibernéticas conscientes pela Galáxia: os cylons, os Runners, os Kang, os Guardiões Namósic e os Nomak. Todas muito além da compreensão humana ou humanoide, quando não prestes a passar a um nível existencial mais elevado, superior à capacidade de nossos cérebros. Para essa I.A., talvez sejamos demasiado primitivos para que nossa iniciativa de diálogo interespécies mereça uma resposta.

— No entanto, isso abduziu um dos nossos - replicou Togo.

— Exato, e só o fez após uma sondagem seletiva bioenergética e genética de todos os mil e quatrocentos tripulantes e passageiros da nave estelar. Daí se conclui que estava à procura de padrões bioenergéticos e genéticos extremamente específicos. E, por coincidência ou não, o Dr. Dharz enquadrou-se com perfeição em tais padrões seletivos. Para quê? As possibilidades são virtualmente infinitas. Basta lembrar as abduções de humanos e animais terranos por naves exploradoras robotizadas camufladas de várias procedências - os chamados U.F.O.s ou O.V.N.I.s - no século I da nossa era. Naves camufladas deste e de outros universos, ou até de diferentes futuros paralelos, com os objetivos mais variados. É bem possível que essa I.A. extracósmica aja de acordo com uma lógica completamente estranha às espécies sapientes existentes em nossa galáxia.

(Entrementes, Luna Lyang pensava com seus botões se deveria considerar como preconceituoso o comentário do primeiro-oficial, ao referir-se a uma I.A. alienígena desconhecida e ultrapoderosa como "isso", e em um milionésimo de milionésimo de microciclo concluiu pela negativa. Medo atávico e irracional diante do desconhecido, nada mais. Luna Lyang, uma MecOrgan que era capaz de captar e analisar o padrão das ondas cerebrais de qualquer ser vivo ao seu alcance - o que lhe facultava distinguir raiva, animosidade, estresse, alegria e outros tantos estados emocionais - , sabia lidar com o preconceito contra as máquinas inteligentes, em particular o racismo antiandroide dos antellurianos e nietzschianos.)

— Nave-a-nave, Sinjorino Lyang - ordenou Ghowrid.

— Frequências abertas - disse Luna, prontamente.

— Nave desconhecida! Aqui é o comandante da Majorum. Exigimos que o ser humano e cidadão da Federação que você abduziu seja devolvido são e salvo à nossa nave. As nossas intenções são honradas e pacíficas, mas não estamos indefesos. Responda imediatamente! Caso contrário, seremos obrigados a entrar em ação de uma maneira pouco amistosa.

Não houve resposta, mas no fundo ele nunca tinha esperado por uma.

"Bravatas, capitão? Está fazendo exigências a uma entidade cibernética que talvez seja mais poderosa do que toda a Frota Estelar reunida?" Ghowrid podia sentir o toque da mente de Líria na sua. Ghowrid a fitou por instantes, seus fortes olhos escuros encontraram o olhar cerúleo dela, inquisitivo e quase irônico. Não havia necessidade de palavras entre eles, e embora não lesse seus pensamentos em razão do processo de estabilização mental que o tornava imune às influências parapsíquicas, havia como que uma compreensão mútua e tácita entre o capitão nietzschiano e a conselheira sapiencior, tanto quanto possível entre seres de raças diferentes.

Assentindo, Ghowrid sorriu para si mesmo em pensamento. "Certo, capitão. Está na hora de passar das bravatas à ação."

Ele girou a cadeira e encontrou o olhar azul-safira de Togo, intenso e ao mesmo tempo desafiador. - Talvez esteja na hora daquele "teste", capitão - o imediato falou suavemente, mas com firmeza.

Vontade de potência, lobo alfa e lobo beta! Os olhos de Ghowrid continuavam firmes nos de Togo. "Você me conhece, Sinjoro Togo... Conhece seu capitão, como convém a todo bom imediato."

Os dois acenaram com a cabeça em mútua e muda aquiescência. Eram amigos, camaradas oficiais, sobreviventes calejados e aperfeiçoados (levando-se em conta que, para nietzschianos, cada dia é uma batalha), excelentes exemplares da sua raça. Os dois, juntos, haviam mil vezes singrado o Oceano Cósmico a velocidades acima de dobra 10, tinham afrontado as poderosas forças de um Cosmos cegamente impessoal e frio a fim de desvendar seus segredos e mistérios. Sabiam o que esperar um do outro.

"Um verdadeiro nietzschiano tem consciência de seus limites, e mesmo assim sabe tirar proveito deles", pensou Ghowrid, evocando o célebre aforismo do filósofo Wotan Veinakh dos Drago-Kazov. "Para fazer a chama do espírito do 'Super-homem', do 'Além-homem' brilhar com a luz de mil hipernovas na vastidão do Universo."

— Leme: um quarto de impulso à frente - ordenou Ghowrid ao navegador.

— Sim, capitão. - Os dedos pálidos e esguios de Lorphall tocaram o terminal virtual com prática; e seus imensos olhos avermelhados permaneceram focalizados (assim como os de todos os demais tripulantes) na grande tela holográfica principal.

— É improvável que haja risco para nós - Líria disse suavemente em voz alta. - Ao que tudo indica, a I.A. da grande nave esférica extradimensional não nos considera uma ameaça digna de crédito.

Ninguém falava nada, mas uma ansiedade e uma excitação cuidadosamente contida imperavam na ponte - e a conselheira tele-empata lia isso na psicosfera coletiva.

Invisível e envolta pelo pentaescudo padrão da Frota, a Majorum aproximou-se à velocidade de 40 mil quilômetros por microciclo do gigantesco globo prateado que serena e despreocupadamente pairava no negrume do espaço sideral. (Naves estelares da classe Destiny possuíam dispositivos de invisibilidade/camuflagem - uma evolução da tecnologia romulana e Plêion - que as habilitavam a disparar suas armas e manter seus escudos erguidos mesmo que camufladas.)

— Tenente Lyang, travar todos os phasers e todos os torpedos na esfera gigante, e espere o meu comando - ordenou Togo à oficial de armas.

Os longos dedos da MecOrgan automaticamente teclaram o painel holográfico do console de armamentos e posto tático. Na Frota Estelar não existia um oficial artilheiro mais competente.

— Phasers e torpedos travados no alvo, comandante - reportou Luna. Bastava-lhe tocar os controles virtuais de armas em seu console para desencadear as fúrias do Apocalipse em escala sideral. Luna controlava forças titânicas e não costumava ser parcimoniosa na escolha da maneira pela qual aplicava tais forças.

— Abrir fogo com todo o nosso poderio!

No mesmo instante o "cruzador encouraçado" de novecentos metros de comprimento transformou-se na perfeita máquina de combate que devia ser - em caso de necessidade - segundo seus projetistas. Múltiplas salvas de centenas e centenas de torpedos quânticos, transfásicos e cronotônicos brilhando como sóis em miniatura de cor branca ou branco-azulada saíram dos ejetores da Majorum a 99% da velocidade da luz em direção à nave desconhecida. Simultaneamente, entraram em ação todas as vinte matrizes de phaser, compostas de arranjos de emissores de phaser localizados em áreas estratégicas dos cascos principal e secundário, de maneira a cobrir 360º (o feixe de eletroplasma emitido convergia no cristal supercondutor de cosmogônio resultando em uma descarga de partículas nádions com a extraordinária capacidade de remover o núcleo atômico - tudo em poucos milissectons). Teledirigidos pela rede de sistemas de computadores de alvo, poderosos feixes de raios energéticos de coloração laranja-avermelhada com a espessura de um lápis, de alta energia concentrada e capazes de desmanchar a própria estrutura atômica da matéria, eram disparados à velocidade da luz na direção da gigantesca nave globular prateada.

Tensos, com os olhos fixos nas holotelas, os membros da tripulação acompanhavam o espetáculo. Estavam curiosos para ver o que aconteceria. A enorme saraivada ininterrupta de phasers e torpedos com cargas de antimatéria na faixa de 500 a 1.000 megatons atingiu em cheio a outra nave. Naquele instante verificaram-se mais de mil explosões em torno da Arca Cósmica, um inferno incandescente a cercou e uma torrente de luz jorrou das telas, obliterando por um instante a luminosidade débil das estrelas distantes. Não obstante...

— A nave alienígena não está sendo afetada - constatou Luna, átona. - Os sensores não acusam qualquer alteração ou variação na estrutura hiperenergética do escudo de defesa de base hexadimensional.

O ciclópico globo argênteo continuava a flutuar, intacto e desafiador, em meio ao ataque massivo da Majorum, que continuava disparando com todo o arsenal que tinha a bordo, com exceção do Superphaser 2. Mas o campo de força defensivo hexadimensional da Cosmoarca resistiu sem problemas. Embora a forte potência do bombardeio concentrado com phasers de plasma e torpedos espaciais superpotentes fosse suficiente para transformar a superfície de um planeta classe M do tamanho de Terra em um vasto pedregal radioativo e calcinado de cinza árida.

— Cessar fogo, Tenente Lyang! - ordenou Togo. Ele e Ghowrid trocaram um olhar rápido. Não faz sentido exaurir nossos suprimentos de torpedos e a energia dos phasers. - Algum sinal de contato por parte do alienígena?

— Negativo. Nada no rádio subespacial. Nem no hiper-rádio, nem no rádio de neutrinos.

— Conselheira? Tenente Lorphall?

— Nenhum contato telepático até o momento, comandante - respondeu Líria, desanimada.

— A verdade é que "ele/ela/elea" está nos esnobando ou nos ignorando solenemente - observou Lorphall. (Ele sorria de maneira estranha, o que em sua raça era um sinal de tristeza e desapontamento.) - Nem sequer um murmúrio telepático procedente da nave alien é captado por meu cérebro suplementar.

Ghowrid apertou os lábios e então olhou de relance para Togo, que respondeu com um rápido acenar de cabeça.

— Tenente Lyang - disse o imediato em tom peremptório. - Abrir fogo com Phaser de Destruição Máxima!

No mesmo instante um feixe de raios de plasma de subpartículas bósons ultraenergéticas, da espessura de um braço humano e brilhando em um tom vermelho-alaranjado intenso, pulsante, partiu da antena defletora da astronave da Federação à velocidade da luz e atingiu violentamente o enorme escudo energético supradimensional que rodeava a Cosmoarca com uma explosão ofuscante de cósmica potência. Um oceano de luz forte, clara e cegante inundou completamente todas as telas holográficas tridimensionais da ponte de comando, e, não fosse pelo sistema automático de filtros ópticos, os homens e as mulheres (e espécies transexuais) que se encontravam na ponte fechariam os olhos instintivamente para não ficarem cegos (à exceção da MecOrgan Luna Lyang, que, por ser uma ciborgue robótica, contava com proteção automática antiofuscante nos sensores ópticos localizados no interior dos globos oculares feitos de células vivas cultivadas in vitro).

A explosão apocalíptica e a tremenda descarga energética resultante da mesma seriam suficientes para destruir um continente do tamanho da África - ou da América do Norte - numa questão de microciclos.

Era uma demonstração cabal de forças brutais em escala cósmica sob controle de seres inteligentes, com que as anteriores gerações pré-era espacial interestelar sequer ousariam sonhar.

Em todas as estações da ponte os painéis virtuais começaram a piscar, alguns se apagaram, e as luzes a bordo diminuíram, devido ao dreno de energia causado pelo disparo do PDM. Luna verificou os instrumentos e informou: - Perdemos escudos e camuflagem, senhor. Estamos visíveis e completamente vulneráveis. Todos os sistemas de armas estão desativados. Sem força pelos próximos cem microciclos.

Somos um alvo perfeito! O pensamento martelava incessantemente seu cérebro tecnorgânico-holotrônico, apesar da expressão impassível e insondável que ostentava em seu semblante. (Somente a Conselheira Lemos podia "ler" os pensenes da artilheira MecOrgan.) Inconscientemente pensou em Jonathan, que trabalhava como especialista no laboratório cibernético 2 do Departamento de Ciências da Majorum, e em Skye e Chloe, que estavam na escola da nave. Disse: - Não houve mudança mensurável na estrutura hiperenergética do escudo esférico do alienígena.

— Estamos operando em modo reduzido de energia - avisou Sigurd Thai. - Apenas com os motores de impulso. Estou redirecionando o sistema de energia para o reator de matéria/antimatéria do sistema do núcleo de dobra.

— E os sistemas de suporte de vida? - indagou Togo.

— Sistemas atmosféricos, de gravidade artificial, gestão de resíduos e sistemas de backup de energia em áreas vitais operando dentro dos parâmetros, comandante.

Ghowrid resolveu intervir. - Sinjoro Lorphall, coloque-nos num curso espiral para longe da nave alien. Sinjoro Thai, alerte a sala das máquinas. Impulso total.

— Sim, capitão - Lorphall e Thai responderam quase em uníssono. (Na realidade, nenhum deles sequer precisava mexer um dedo; seus uniformes da Frota - cujo tecido, composto por nanochips moleculares, tornava-os sofisticadíssimas minirredes de computadores quânticos - "conversavam" entre si e com a inforrede integrada de computadores, processadores, e painéis que formavam o "sistema nervoso" da nave - além, é claro, dos onipresentes PADD-corders portáteis e de mão - , instantaneamente, através de rede de malha de neutrinos.)

Foi quando uma rica voz feminina de contralto se fez ouvir pelo ciberáudio, direto no ouvido interno de Ghowrid. - Capitão, aqui é Romanov. A energia do núcleo de subespaço foi toda drenada, e o sistema principal caiu, está inoperante pelos próximos noventa e cinco microciclos. Até lá, não teremos propulsão transdobra e muito menos turbilhão quântico. O senhor - por acaso - ordenou um ataque à nave alienígena com o PDM?

— Sim - por acaso - , eu ordenei, Comandante Romanov - Ghowrid respondeu (subvocalizando) calmamente, como se fosse rotineiro esse tipo de acontecimento. Na sua mente apareceu o rosto jovem de beleza negra da Engenheira-Chefe Tenente-Comandante Shammuramat Romanov, de Amara por Gideon, da fratria Sabra-Jaguar: um rosto triangular de tez cor de sépia, marrom média, nariz núbio, lábios grandes e cheios e um par de longos olhos castanho-escuros delineados, desafiadores, tudo emoldurado por uma massa de cabelos cor de cobre escuro, anelados e crespos, até os ombros. - E não se tratou de um ataque, mas apenas de um teste. Gostaria de registrar uma queixa?

— Para quê, capitão? - redarguiu a engenheira nietzschiana, com certa irônica recriminação (e Ghowrid quase podia visualizar-lhe a expressão orgulhosa, enérgica). - O senhor simplesmente agradeceria e encerraria o assunto. De mais a mais, lembrá-lo da temeridade que constitui o uso de uma arma que deixa a nave desprotegida por um centiciclo inteiro contra uma outrincon que nos supera tecnologicamente é prerrogativa do Comandante Togo ou da Conselheira Lemos ou da Tenente Lyang. Eu sou apenas a responsável pela engenharia e manutenção desta bela nave. Desde que não abuse dos meus propulsores acelerando ao máximo ou voando em dobra dezessete vírgula oito, garanto-lhe que de minha parte não haverá choro e ranger de dentes. Com todo respeito!

— Obrigado, Comandante Romanov - retrucou Ghowrid laconicamente. Ossos de Drago! Por alguma razão ainda desconhecida pela psicologia espacial, os engenheiros da Frota Estelar tendiam a se mostrar extremosos para com as naves a bordo das quais serviam - em particular a casa das máquinas - , como um pai ou uma mãe em relação às suas crianças. E ainda acontecia que a engenheira-chefe da Majorum era uma nietzschiana e uma Sabra-Jaguar: altiva, independente e dominadora, a "rainha de seus domínios". (Ghowrid conhecia bem este tipo de mulher; Jezebelle, a sua esposa número três, era ninguém menos que a Primeira-Filha do Primeiro-Alfa do praido Sabra-Jaguar!)

Humpf! Os "supercérebros" do Birô de Ciências da Frota nada podem fazer para remediar essa desvantagem tática? - resmungou Togo, aludindo à drenagem de poder causada pelo disparo do Phaser de Destruição Máxima, excessivamente grande a ponto de desativar os escudos e a camuflagem de um cruzador encouraçado da classe Destiny, deixando-o indefeso por cem microciclos inteiros. - Se isso não for suficiente para chamar a atenção dessa nave consciente, então nada mais o será.

— Veremos, imediato, isso é o que nós veremos - Ghowrid replicou calmamente e virou-se para Líria. - Você está captando algo com seus sentidos telepáticos, conselheira?

A jovem terrana sapiencior meneou a cabeça negativamente. - Nada além de estática psíquica, pelo menos da parte da I.A. alienígena.

— Tenente Lyang?

— Frequências externas ainda abertas, capitão. Sem mensagem.

— Isso parece tão surreal - disse Ghowrid, desanimado. - Todo o volume energético da Majorum drenado pelo PDM... um único disparo bastaria para transformar um quarto ou um quinto da superfície de um planeta do tamanho da Velha Terra numa massa incandescente de magma derretido. Nada mais que uma picada de mosquito no couro de um sáurio venusiano clonado, para essa entidade de outro universo.

— Será melhor pedir ajuda ao Comando da Frota Estelar - disse Togo. - Que enviem outras naves como força de apoio.

— Esperem um momento, senhores - interrompeu Líria. - Posso usar minhas habilidades projetivas para penetrar na nave consciente com meu mentalsoma, e tentar localizar o Dr. Dharz lá dentro. Eu duvido que mesmo um super-hiperescudo de seis dimensões seja suficiente para barrar uma incursão da consciência realizada no plano puramente espiritual. Em seguida, eu poderia tentar dobrar o espaço-tempo em volta com minhas capacidades psi-kappa de maneira a formar uma pequena fenda espacial... um "atalho" temporário entre a Majorum e a outra nave.

— Você poderia fazer isso, comandante? - questionou Togo, um tanto ceticamente.

— Sim, desde que o interior da outra nave esteja sujeito às mesmas leis do nosso continuum quadridimensional do espaço-tempo. Minha aptidão quantacinética me permite alterar a realidade em nível quântico pela manipulação das forças subatômicas que mexem com os efeitos do magnetismo, radiação, fotônica, eletricidade, relatividade.

Togo e Ghowrid permutaram um rápido olhar. - Pois muito bem - disse o capitão. - Faça-o.

Como já tantas vezes antes, Líria Lemos recostou-se na poltrona e fechou os olhos. Poucos microciclos depois entrou em estado vibracional (mais sutil, restrito à área encefálica do corpo humano ou humanoide). Começou a afastar-se de si mesma (a partir da cabeça extrafísica, ou paracérebro, do psicossoma).

Ela agora estava invisível até para si mesma. A sua consciência, mais leve do que o normal fora do corpo denso, porquanto despida da sua forma astral transparente e azulada (e que realmente não passava de um misto de campos energéticos de quatro ou cinco dimensões), revestida somente do "ovoide" de energia pulsante do corpo mental heptadimensional, disparou pelo espaço afora a uma velocidade taquiônica. A Majorum sumiu de vista num instante.

"Sou uma Consciência Livre."

Seu Ser consciente vibrava no espaço entre os espaços, encontrava-se integrado ao Universo. Podia sentir e perceber - em amplos conjuntos e em particularidades e minúcias - pensenes de centilhões de seres inteligentes em incontáveis decilhões de planetas, galáxias e aglomerados galácticos inteiros. Dos quasares aos quarks, tudo lhe era familiar e conhecido.

"Eu estou no Todo... o ponto que reúne tudo ao mesmo tempo, e agora."

Era um indizível "todo em um, e um em todo" - o infinito Aleph, o ponto que contém todo o Universo, que não existe no Tempo, mas existirá na Eternidade.

Líria viu a Cosmoarca, enorme, ameaçadora e prateada, parecendo ser feita de mercúrio fluídico e cingida em seu ventre por seus jogos de anéis iridescentes, aproximar-se vertiginosamente, em velocidade impossível de calcular.

Impacto e repulsão!

Dois microciclos depois da decolagem do mentalsoma a consciência de Líria já voltara - bruscamente - ao soma ou corpo físico. A garota abriu os olhos arregalados em choque e vergou de náusea.

— Fui repelida! - Líria exclamou baixinho. - Isso significa que energias psiônicas também não conseguem atravessar o escudo esférico impenetrável... e que o mesmo não é apenas hexadimensional, mas também antipsi.

A perplexidade nos rostos dos homens e mulheres ao seu redor deixara evidente para Líria, sem recorrer à telepatia, o quão pouco contavam com a possibilidade de que o descomunal escudo-bolha da desconhecida nave-arca interdimensional a protegeria das influências parapsíquicas a ponto de barrar, bloquear e repelir uma projeção de corpo mental.

— Repelida? - repetiu Ghowrid desorientado. - Mas como isso é possível?

Na Estação de Ciências 2 a Alferes Maayylloo, oficial de ciências assistente da raça orionte, murmurou horrorizada: - Pelos Mil Deuses de Swarggamttil! - Seu rosto bonito de pele verde empalideceu. - Uutmowl-jiwwa... O mentalsoma pertence a um espaço de ordem superior. Da sétima dimensão. O Teorema de Kaldor-Baz-Hallek não se aplica neste caso. - Ela torceu a boca, bamboleando a cabeça à maneira de seu povo como um sinal de timidez. - Minha especialidade é psicofísica multidimensional.

Segundo o enunciado do Teorema de Kaldor-Baz-Hallek, de capital importância no campo das ciências parafísicas e noéticas, fenômenos psiônicos inclusos na categoria psi-kappa — como psicocinese, eletrocinese, quantacinese e teleportação - não podem jamais atingir um objetivo que esteja situado num espaço de dimensão mais elevada do que o de onde partiram esses mesmos fenômenos psiônicos. A ciência superior da Federação das Plêiades e do Império Central de Sorgalt já havia constatado tal fato - a inatingibilidade dos espaços extradimensionais por um indivíduo com poderes psiônicos partindo do espaço-tempo normal de quatro dimensões - mais de dois mil stanrevs antes da Federação Estelar existir.

Isto significava igualmente que uma projeção de psicossoma - que ocorre na frequência pentadimensional - jamais conseguiria atravessar uma barreira energética no âmbito hexadimensional, ao passo que uma projeção de mentalsoma superior - na frequência heptadimensional - conseguiria.

Lksia 'Nsukka! - Gahud praguejou em sua língua nativa (algo incomum de se ouvir na ponte da Majorum). - Um multicampo antipsi!

— Acredito que se trata de um campo de força multidimensional de proteção penetrando em todas as dimensões conhecidas e desconhecidas do continuum espaço-tempo - disse Líria. - Infelizmente, os meus parassentidos não localizaram a tempo as estruturas antipsiônicas no escudo defensivo que rodeia a esfera alienígena. Lamento, capitão, comandante... - Fitou alternadamente Ghowrid e Togo, e acrescentou: - Nós perdemos... por agora. É preciso resignar-se com o fato de que a esfera é inabordável.

— Isso é tudo que tem a dizer, comandante? - perguntou Ghowrid, um tanto mais ríspido do que tencionava.

— Quer que eu use a minha capacidade de entrelaçamento telepático instantâneo? - Líria retorquiu no mesmo tom de voz. E sem esperar uma resposta do capitão, a jovem solariana da raça Homo sapientioris concentrou-se na imagem da Arca Cósmica na tela holográfica central. No mesmo instante seus olhos acenderam-se à semelhança de um par de minúsculos sóis de tipo espectral G ou K, brilhando assustadoramente em coloração magma-incandescente (uma característica dos seres de sua raça ao empregar seus estupendos poderes psíquicos). O emaranhamento telepático, o poder de misturar sua mente com as de outros seres sapientes sem contato físico (ao contrário das técnicas de "fusão mental" vulcanianas) e independentemente da distância que os separe (a velocidades superiores à da luz, por meio de campos de táquions-psi ou psícons em uma hiperdimensão), era um dos seus dons parapsíquicos mais poderosos. Inclusive, Líria já demonstrara que podia fundir sua mente às de vários outrincons ao mesmo tempo, abolir temporariamente a própria identidade e formar uma nova entidade coletiva, com todos os sentidos e memórias compartilhados. (Dizia-se à boca pequena que, se ela quisesse, poderia incorporar todos os egos de todos os tripulantes e até mesmo os exemplares de animais e plantas e micro-organismos - da Majorum em uma única "supermente", ou campo mental unificado, espécie de versão psicônica da defunta Coletividade Borg.)

Foi seu súbito ímpeto passional (incomum para uma sapiencior) que levou Líria a tentar uma intrusão telepática na rede neural (o "cérebro") da I.A. da Arca, disparando uma onda/partícula psícon de emaranhamento a fim de forçar uma fusão de mentes com a tremenda entidade cibernética ultrainteligente. E isso lhe custou um ricochete psíquico ao chocar-se violentamente contra o escudo antipsi do multicampo envolvendo a Arca. Tudo se passou num átimo de microciclo.

Líria Lemos deixou escapar um grito de dor. As íris de seus olhos, que antes refulgiam com um tipo de luz desumana, de um laranja-amarelo ígneo, reverteram para o azul normal. - Eu... eu... - balbuciou, ainda se recompondo e comprimindo as têmporas - sinto muito, capitão. Eu deixei me levar pelas emoções. Fui impulsiva.

Ghowrid sentiu a raiva crescer dentro de si - era a raiva resultante de sua impotência ante uma situação por resolver - , mas ele nada deixou transparecer disso. Sentia-se ferido no mais fundo do seu orgulho de super-humano nietzschiano, mas ele não podia ceder à frustração advinda do fracasso aparente das várias tentativas para despertar a atenção da nave-I.A. alienígena com todos os recursos de que dispunha. (Apenas o sentido tele-empático de Líria lhe facultava reconhecer a batalha íntima do capitão.)

— Se alguém está interessado, os sistemas de armas e escudos estão voltando - avisou Luna.

— E também os sistemas de motores de transdobra e slipstream - disse Thai em complemento.

— Tenente Lyang - Ghowrid falou sem olhar para Luna. - Entre em contato com o Comando da Frota Estelar. Quero falar com a Almirante Swann, da Base Estelar 1, na União Solar. Código Fator 2.

Na Frota Estelar, "Código Fator 1" significava status de invasão em grande escala e "Código Fator 2", status de invasão em pequena escala.

— Sim, capitão. - Os dedos finos da cibernoide moveram-se sobre o holopainel.

Por detrás da cadeira de comando, as portas deslizantes do turboelevador abriram-se automaticamente com um som sibilante. E o Tenente-Comandante Alxxyn Lewz adentrou a ponte com uma expressão ansiosa no rosto quadrangular de tez castanha.

Ghowrid olhou o solariano, analisando-o. - Comandante Lewz - disse ele, inexpressivo. Naturalmente, não ignorava que tanto Lewz quanto Dharz contavam-se entre os amigos e colaboradores mais íntimos do presidente do Conselho da Federação, o cientista Marcel Laukenickas - e tampouco ignorava que aquele oficial solariano de pele trigueira, trajando o ciberuniforme preto-grafite e cinza-prata da Inteligência da Frota, pertencia à oficialmente inexistente agência de segurança externa da Federação referida pelos codinomes de "Nigraj Operacioj/Samekh", com uma autoridade que sobrepujava inclusive a de um capitão estelar.

— Capitão Ghowrid, preciso falar urgentemente com o senhor - disse Lewz em tom resoluto. - Dharz me contou tudo que sabe sobre essa Cosmoarca.

Ele apontou com o queixo para a grande tela central da ponte de comando. O gigantesco globo prateado feito de "luz sólida" envolto em anéis iridescentes multicoloridos pairava serenamente - impunemente - contra o fundo negro do espaço, como se nada no Universo pudesse tocá-lo.

Por apenas um instante a perplexidade tomou conta do antelluriano-nietzschiano. Ghowrid recordou-se do que Líria lhe havia dito sobre as hipóteses "malucas" de Dharz - depois de ler seus pensamentos - referentes a um "presente" da parte de um humano chamado David Zero, que vivia em uma Terra alternativa de uma outra configuração de linhas temporais - praticamente um Multiverso de Nível 3 - e que, por alguma razão inexplicada, tinha obtido acesso à fantástica ultratecnologia da supercivilização cósmica pré-humana conhecida como Astroengenheiros. E, por mais inacreditável que parecesse, aparentemente Dharz estava certo. "Às vezes, a Navalha de Ockham falha", ponderou.

— Se é a respeito de a Cosmoarca ter sido enviada de um multiverso paralelo por alguém chamado David Zero, "amigo" de Dharz, e estar recheada de tecnologia ultra-avançada dos Astroengenheiros - Ghowrid replicou com a mesma calma de sempre - , eu já sei de tudo, comandante.

Agora quem estava perplexo era Lewz. Pensou: Dharz, ao que parece, falara a verdade quanto a ter seus pensamentos escaneados - apesar do detector de eco - pela telepatia da Conselheira Lemos. Mas Lewz já tinha um trunfo ou dois na manga.

— Meus cumprimentos, capitão, por sua... fonte de informação - disse ele com um sorriso cínico, de lábios cerrados, relanceando um olhar para Líria. (Lewz deduziu acertadamente que as habilidades telepáticas da jovem mutante meta-humana sapiencior deviam ser muito superiores às da pleiadiana Sabrath, que dois stanrevs atrás servira como conselheira da Comandante Saril a bordo da U.F.S. Al-Burak.) - Mas isso não é tudo. É só a ponta do iceberg. A mais, estas duas sinjorinoj têm informações de importância estratégica que gostariam de compartilhar. - Lewz indicou com a mão as duas figuras femininas que o acompanharam no elevador até a ponte, e Ghowrid enrijeceu-se em sua cadeira ao perceber quem estava lá. Sim, capitão... Só a ponta de um iceberg de diamante boiando no oceano de diamante líquido nas profundezas de Netuno. Ou uma montanha de gelo entalada num mar de nitrogênio subterrâneo congelado, em Plutão.

Elas entraram na ponte. Pela aparência externa, ambas poderiam ser confundidas com um par de princesas elfas de rara e exótica beleza - pelos padrões terranos, nenhuma delas aparentava ter mais de vinte anos - , provenientes de um reino de fantasia da mitologia nórdica ou céltica. E no entanto nenhuma delas pertencia à raça humana, nem sequer a um dos ramos das grandes "famílias" étnicas, raciais e gênicas da Humanidade Cósmica originadas do mítico planeta perdido Edhen.

— Embaixadora Irina... - disse o capitão, assentindo formalmente com a cabeça. - ... E Aine!

Irina, uma androide feminina, ou "ciberdroide ginoide", muito alta e esguia - media dois metros de altura - , tinha sensipele (artificial) macia e clara, cor de pêssego, maçãs do rosto salientes, grandes olhos verdes oblíquos e rasgados, e longas e afiladas orelhas triangulares; seus cabelos verde-claros lisos (que eram, na verdade, compostos de um polímero projetado para imitar a flexibilidade e a textura dos cabelos humanos, além de conterem nanites ou nanobôs que permitiam mudar-lhes a cor à vontade) escorriam até um pouco abaixo de suas costas. Ela usava um fino vestido prateado no "clássico" estilo qipao, bem justo no corpo, com uma fenda triangular que revelou uma leve sugestão de clivagem. Escritora de renome galáctico, ciberpsicóloga/robopsicóloga e cofundadora, juntamente com a também androide (e cientista) Majstrino Gallathea (atualmente, sua cônjuge), do "Movimento pelos Direitos Civis dos Ciberdroides", Irina Bascom (que herdara o sobrenome de seu finado marido humano) há cem stanrevs vinha ocupando o cargo de embaixadora da colônia androide em Téion, a maior lua do planeta Hipátia, no sistema Iota Draconis, junto ao Conselho da Federação.

Aine-Grian-Raymi, a misteriosa bartender do Salão Luz das Estrelas, o bar panorâmico localizado no deque 12 da seção do disco da Majorum, embora não tão alta - media "apenas" 1,77m - , era igualmente bela e curvilínea como Irina. Sua pele clara, ainda mais branca que a da androide, tinha um brilho diferente, quase como se possuísse luz própria. Seus cabelos loiro-dourados bem cortados e artisticamente ondulados na altura dos ombros aureolavam o rosto ovalado, com os lábios rubros e suculentos, as dobras cartilaginosas afiadas em torno das longas orelhas pontiagudas e os olhos oblíquos amendoados, de íris dourado-amareladas como duas pequeníssimas esferas solares. Trazia um vestido curto da cor de ouro velho, incrustado de diamantes e muito decotado. Ao contrário de Irina, Aine era virtualmente desconhecida fora da Majorum; e apesar de não ser um membro da Frota Estelar, ela costumava atuar como conselheira de muitos membros da tripulação - Ghowrid e Líria inclusos - , com os quais formara estreitas amizades pessoais, "oficial moral" e ocasionalmente como uma espécie de embaixadora extraordinária da F.E.U. perante várias raças de outrincons estranhas, como os bluoj de Barnard-29, ou os ainda mais bizarros Hreesh'tak de NGC 6543, seres sapientes heteromorfos e supersimétricos constituídos de matéria escura que preferiam os poços gravitacionais de estrelas como habitats.

— Então? - pressionou Ghowrid. "Por que, em nome de Drago, não solicitaram uma telerreunião usando a holorrede virtual privada da nave?", pensou, ligeiramente irritado. (Ele não gostava de visitas surpresas em sua ponte de comando.)

As duas mulheres humanoides trocaram um breve olhar de concordância. Era visível a cumplicidade entre ambas. (Ironicamente, pensou Ghowrid, nenhuma delas seria considerada uma "pessoa", de acordo com os padrões antellurianos-nietzschianos, porquanto eram incapazes de se reproduzir, não eram, verdadeiramente, seres vivos!)

— A I.A. da Arca comunicou-se comigo por telepatia - Irina foi logo dizendo sem rodeios e com uma pitada de presunção em sua voz. (As habilidades telepáticas da belíssima androide construída em Horizon há cento e trinta stanrevs, fruto de um upgrade realizado em sua rede neural positrônica pelos androides biomecânicos, gravitônicos do planeta Tobora - para torná-la livre das Três Leis da Robótica - , eram seu maior segredo e trunfo na arena política interestelar como defensora dos direitos de ciberdroides ou "pessoas sintéticas" e contra a escravização e submissão dos mesmos por espécies orgânicas.) - "Elea" chama a si própria de ASENA. Nossas mentes se entrelaçaram telepática e instantaneamente. Formamos um elo mental que perdurou por cerca de treze centiciclos e depois foi desfeito.

— A I.A. usou-a para falar comigo, tendo sua mente acoplada à mente de Sinjorino Irina - disse Aine, lacônica. Sua voz era límpida e sonora como um khinn'aur vulcaniano, e um típico sorriso maroto se insinuava em seus lábios. - Meu povo conhece os Astroengenheiros desde os éons primitivos. ASENA disse-me a razão por que abduziu Karl Dharz para o interior de seu corpo.

(O "povo" de Aine, que ela chamava de Heyleyl, ou "Portadores da Luz", ou até mesmo - não sem um traço de malícia - de "Lucíferes", não passavam de avatares solares, constructos artificiais quasi-imortais criados pelos corpos estelares que são, eles próprios, outrincons cósmicos, a fim de interagir com aquelas coisinhas minúsculas e insignificantes que nasciam e morriam em órbita deles, comunicar-se com elas, viajar, alterar e manipular os acontecimentos numa escala universal; e a própria Aine era o avatar de uma estrela anã amarela de classe G2Va localizada a 13,9 parsecs de Sol - que considerava uma sua "irmã gêmea mais velha" - conhecida como 18 Scorpii ou Intipa Awachan, sonhando que é uma pessoa, segundo suas palavras.)

Um silêncio absoluto tomou conta da ponte de comando. Humanos/humanoides e alienígenas inumanos que trabalhavam nas várias estações daquele amplo recinto circular e tinham ouvido as declarações bombásticas da ciberdroide fêmea de cabelos verdes e da pseudoelfa loira interromperam suas atividades e as fitaram com surpresa. (Postado diante do monitor principal de situação com um PADD-corder em suas mãos de três dedos magros com garras, o Alferes Xhrugk, um keedra ambissexual, membro de uma raça que possuía três sexos alternantes e lembrava um cruzamento de velociraptor, avestruz e píton, com a cabeça azul mais volumosa e os braços raquíticos emplumados, ficou tão nervoso que até perdeu algumas penas.) Ghowrid piscou rapidamente, tentando - sem sucesso - não parecer atordoado, e depois teve ímpetos de gargalhar. Mas se conteve e olhou muito sério para uma e para outra. Era o cúmulo da ironia o fato de terem conseguido, sem que houvesse premeditação para tal, o que aquela tripulação tinha falhado em obter, por mais que deliberadamente tentasse. Por outro lado, se Aine-Grian-Raymi realmente conhecia os Astroengenheiros desde a aparição dos mesmos no cenário galáctico - o que era perfeitamente plausível, pois seu homólogo estelar, Intipa Awachan, ou 18 Scorpii A, com o qual compartilhava um elo de ligação hiperespacial, tinha idade estimada em vários bilhões de stanrevs (2,9 bilhões de anos de tempo terrano), se bem que seu atual corpo físico humanoide, plasmado com um tipo de matéria programável podendo assumir múltiplas formas, não tivesse mais que alguns milênios de idade - , seria lógico e previsível que uma I.A. criada por eles e com a capacidade de transitar entre todas as dimensões do Multiverso tivesse sua atenção despertada para o que parecia ser uma estrela em miniatura, o avatar de uma inteligência estelar, um ser multidimensional imensamente poderoso existindo numa encruzilhada de múltiplas possibilidades quânticas sem possuir uma forma definida; e quem melhor para servir como canal de comunicação do que um membro da espécie robótica Cyberhumanoid electromechanicus dotado de faculdades telepáticas - ou, por assim dizer, uma ciberdroide médium - , passível de reconhecimento pela I.A. da Nave-Arca como uma sua irmã menor?

A voz de Luna tirou-o de suas reflexões. - Capitão! Holomensagem chegando do Comando da Frota Estelar, pelo canal hiperespacial.

— Ligar receptores holográficos da ponte - determinou Ghowrid.

— Sim, capitão. - No mesmo instante a imagem holográfica tridimensional da Almirante da Frota Yasmine Swann apareceu no centro da ponte de comando, tão nítida e realista que se poderia pensar ter sido a própria comandante em chefe da Frota Estelar desmaterializada e rematerializada através dos 214,7 parsecs de espaço interestelar entre Sol e Kepler-78, para estar presente em pessoa, de pé (um feito que estava além do alcance da capacidade tecnológica da F.E.U., mas não de outras civilizações, como os Éticos, os Céticos e a Comunidade Galáctica de Andrômeda). Tinha a pele lisa marrom, cor de chocolate, rosto em forma de coração, exibindo uma mistura harmoniosa de traços caucasianos, mongólicos e negroides: a boca e o nariz regulares (sendo as asas nasais um pouco arregaçadas), grandes e oblíquos olhos castanhos cor de mel e cabelos grossos e lisos, cortados à altura do pescoço, de um negro-azulado exceto pelas mechas frontais branco-prateadas. Os cinco pequenos discos dourados designativos de seu posto de Almirante da Frota brilhavam no lado direito do peito do uniforme cibernético carmesim e negro.

Ghowrid, Líria e Togo levantaram-se em sinal de deferência à holopresença da Comandante em Chefe da Frota Estelar da Via Láctea.

"Almirante na ponte", pensou Lewz deixando uma sugestão de sorriso brincar em seus lábios. A recordação dos sabichões da ciência da sua época - ou melhor, da época do seu "original" no século I d.V., ainda limitada à tosca tecnologia das ondas de rádio e ao princípio da combustão dos foguetes - , que haviam proclamado solenemente a impossibilidade de romper a barreira da luz, partindo de uma pretensa "lei de ferro" da física, como a teoria da relatividade, quase o fazia sorrir de pena (tal qual esses mesmos homens de ciência dos primórdios da Era Espacial tinham sorrido condescendentes das teorias ingênuas de Aristóteles e Ptolomeu).

— Almirante, aqui é Ghowrid - disse o capitão. - Descobrimos que o efeito gravitomagnético de âmbito metagaláctico que ocorreu quatrocentos centiciclos atrás, centrado neste sistema estelar, foi causado pela irrupção "forçada" em nosso continuum espaço-temporal de uma Nave-Arca extradimensional, vinda de fora do Universo. E dessa irrupção resultou uma onda de choque hiperenergética que, como já deve saber, destruiu as redes neurais positrônicas dos vinte androides do posto científico da Federação que havia no planeta anão Nifelheim.

— Quer dizer, capitão, que estávamos certos em nossas suposições acerca de uma preparação para uma invasão de outro universo? - perguntou ela muito séria. (Terrana nascida em Nova Londres, na grande ilha da Região Concentrada Federada Europeia agora dividida em três regiões nacionais autônomas e que um dia fora conhecida como "Grã-Bretanha", ou "Reino Unido", a almirante era uma daquelas mulheres humanas de idade indefinida, que pelo aspecto podia ter tanto vinte como cinquenta anos, tempo de Terra; na verdade Yasmine Swann tinha cem anos, ou cento e trinta stanrevs, com todos os recursos biomédicos modernos.)

— Não exatamente, almirante - Ghowrid respondeu, cauteloso. - A invasão, se assim podemos nos referir à ruptura induzida do espaço-tempo, resume-se à Nave-Arca que está parada no espaço, à distância atual de quarenta mil quilômetros da Majorum. Essa Cosmoarca tem trinta quilômetros de diâmetro e parece ser feita de luz congelada, além de ser dotada de uma Inteligência Artificial infinitamente superior à de nossas máquinas conscientes. Isto para não falar do megaescudo esférico impenetrável, de sexta e sétima dimensão, que foi alvejado com todo o nosso poder de fogo, inclusive o Phaser de Destruição Máxima, sem o menor resultado. Também descobrimos que ele protege a I.A. da Cosmoarca contra as influências parapsíquicas.

A Almirante Swann franziu a testa. Examinou atentamente o rosto de Ghowrid.

— Capitão Ghowrid, espero que o senhor não pretenda que eu acredite que sua nave entrou em combate com um outrincon que, de acordo com sua própria descrição, demonstrou possuir uma significativa superioridade militar, e, apesar disso, sobreviveu incólume.

— De jeito nenhum. Não só não houve combate algum como também a referida I.A. virtualmente ignorou nossas tentativas de contato e comunicação. E isso antes e depois de ter sondado a Majorum e abduzido um dos nossos, o Dr. Karl Dharz, membro do Birô de Investigação Científica e do C.S.I., que se encontrava a bordo. Tendo experimentado e constatado que os procedimentos padrão da Frota não bastavam para chamar a atenção da I.A. e entrar em contato com ela, tomei a decisão de apelar para uma linguagem mais, digamos, forte e agressiva... - Ghowrid repuxou os lábios num sorriso forçado - ...infelizmente com resultados muito pouco satisfatórios. De qualquer forma, já conhecemos as origens da Arca, o porquê dela estar aqui em nosso cosmos e a relação disso tudo com o Dr. Dharz. Ela não representa uma ameaça à Federação, muito pelo contrário.

— Existe aí uma grave contradição, capitão - objetou Swann. - Você próprio admitiu que a I.A. da Cosmoarca interdimensional não respondeu às suas tentativas de contato, e no entanto, alega ter obtido informações fundamentais sobre as origens e a destinação da mesma. E o que o leva a pensar que um titânico artefato alienígena "extrauniverso", que ao forçar um rompimento dimensional causa uma onda de choque pentadimensional a ponto de abalar momentaneamente a estabilidade do espaço-tempo e é praticamente impenetrável, não representa uma potencial ameaça de segurança em pleno espaço da Federação, em pleno Estborgen?

Antes que Ghowrid pudesse responder, Líria intrometeu-se e disse:

— Almirante, eu sou uma sapiencior. Sou uma telepata nata nível ômega. Antes da abdução do Dr. Dharz eu penetrei nos seus pensamentos e descobri que ele esperava encontrar neste setor espacial, neste sistema estelar uma espécie de Arca intercósmica vinda de uma outra configuração de linhas espaço-temporais, praticamente um outro Multiverso, contendo ultratecnologia dos Astroengenheiros. Por inacreditável que possa parecer, Karl Dharz foi de algum modo transladado através do tempo e do espaço, para uma Terra paralela em um outro multiverso, fora do Multiverso que conhecemos, quinhentos stanrevs no passado, e voltou de lá. Nesse passado alternativo ele conheceu um homem chamado David Zero, a quem ajudou a alcançar um terceiro universo, onde havia um enorme acervo da ciência superior da desaparecida raça dos Astroengenheiros. Tendo conseguido penetrar nos segredos daquela raça, e sabendo o quanto o próprio Dharz ansiava por sua ciência superavançada, David Zero supostamente enviou a Arca como uma espécie de "presente" ou "retribuição" a Dharz e, por tabela, a todas as raças da Federação. O Comandante Lewz pode confirmar que o Dr. Dharz contou-lhe tudo isso e muito mais, durante a conversa que tiveram no bar panorâmico, antes de ser abduzido, já que está pensando nisso... e no que ouviu de Raymi e de Sinjorino Irina.

Togo ergueu ambas as mãos com as palmas para cima. - Pensar é mais rápido do que falar - disse, com um sorriso sem graça.

"Nos Sistemas Hogla você seria lobotomizada, Conselheira Lemos", pensou Lewz, com um divertimento perverso, cônscio de que a jovem mutante psi-gamma monitorava seus pensamentos (a despeito do detector de eco). "Nossos cinéreos aliados hoglaneshes não apreciam nem um pouco telepatas fuçando as mentes alheias."

Swann riu e deixou seu olhar fixar-se no oficial do Serviço Secreto da Frota. - Ah, Comandante Lewz. Sua fama o precede: Sartari, Kobold, Marbheus. Por sinal, a maneira como desvendou a trama alienígena por trás do assassinato daquele operativo da União Comercial da Galáxia vindo do futuro distante - se não me engano o nome era Jeffrey Leighton - no planeta colonial Marbheus, preservando a atual linha temporal de acordo com os ditames da Diretriz Temporal Primária, foi simplesmente brilhante.

Alxxyn fez um gesto de pouco caso com a mão direita. Novamente, nada além da ponta do iceberg. Que nem um Nomak quase todo imerso no hiperespaço, de que só são visíveis no espaço-tempo quadridimensional os manípulos-ferramentas robotizados. Tal qual sua contraparte responsável pela segurança interna da Federação, a igualmente famigerada e oficialmente inexistente Sekcio 31, a Nigraj Operacioj não se reportava ao Comando da Frota, muito menos ao Conselho da Federação. (O que significava não respeitar, inclusive, a regra áurea da F.E.U., a Diretriz Primária de não-interferência no desenvolvimento normal de uma cultura ou sociedade tecnologicamente inferior.)

"Há que se encarar a verdade com a necessária frieza. Afinal, para garantir a segurança desse paraíso terrestre que é a F.E.U. com toda a sua bem-aventurança, certos serviços sujos ainda precisam ser feitos! Que Deus nos perdoe, mas é assim mesmo!"

— O.K. O.K. - Lewz exibiu seu emblemático sorriso de lábios cerrados, ao perceber que tinha todas as atenções voltadas para si. - O que a conselheira diz é verdade, embora ela saiba menos do que diz. É por isso que eu e as damas estelares - Lewz moveu a mão, indicando Aine-Grian-Raymi e Irina - estamos aqui. Sapienciores não podem ler a mente de um androide positrônico - apesar de poderem detectar sua atividade cerebral - , e muito menos a de... bem, daquilo que os hindus chamariam de "avatar de um Deva do Sol".

Absteve-se de mencionar seu estratagema de dissimular o conteúdo de sua mente com pensamentos superficiais, criando um "muro mental" para enganar um telepata. Um truque mental simples mas eficaz que aprendera no rígido treinamento da Samekh, ou Nigraj Operacioj, e que não despertava suspeitas como um bloqueio hipnopsíquico. Dessa forma, Lewz tinha certeza de que Líria nada sabia a respeito da mulher-loba que Dharz chamava de Horo e tampouco da importância fundamental que esta possuía na resolução do enigma da Cosmoarca procedente de um Multiverso diferente.

A Almirante Swann cruzou os braços sobre o peito, de pé muito ereta sobre o conjunto holoemissor instalado no chão do seu moderníssimo escritório no Comando da Frota Estelar, localizado em San Francisco (Região Concentrada Federada Noramericana, Território Mundial Setentrional, Federação Unida da Terra e Luna, União Solar). Não mais que um milésimo de microciclo depois, fez o mesmo (holograficamente) na ponte de comando da Majorum, à distância de 214,7 parsecs do Sistema Solar.

— Fale, Comandante Lewz - replicou, decididamente. - Não preciso lembrá-lo que este é um problema de Prioridade Um. O pessoal de Ciências, o Presidente e o Conselho da Federação estão cobrando respostas urgentes ao Comando da Frota.

— Sem mencionar, suponho, os embaixadores dos nossos fraternos vizinhos de quadrante pressionando o Conselho da Federação - Togo disse com um traço de ironia. (Os principais impérios galácticos do Quadrante Alfa, como Klinzhai, Khaldan, Kadar, Draconia, Damaghor e Sorgalt podiam estar em paz com a F.E.U. e ter lutado recentemente ao lado da mesma contra os falsos deuses Prajâpatis, mas não chegavam a ser aliados e muito menos amigos, com exceção dos klinzhaîn, isto é, dos klingons, e também dos damags. Togo vivia dizendo que os romulanos de Khaldan e os kadaritas eram os povos mais traiçoeiros que quaisquer outros e que não se devia confiar neles.) "No dia em que eu acreditar na palavra de um romulano eu tiro minhas lâminas ósseas e me converto ao Deus dos humanos", Togo pensou intencionalmente (citando o polêmico Capitão Vidar Anasazi dos Kodiaks), lançando um olhar zombeteiro para Líria.

Alxxyn Lewz começou a andar lentamente pela enorme ponte de comando. Olhou calmamente ao redor e com uma expressão mais séria, iniciou seu relato...

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O holograma de Yasmine Swann suspirou audivelmente (Um dos triunfos da fantástica tecnologia de holocomunicações por hiperondas e Starnet). Malgrado a (pequena) distância astronômica de duas centenas de parsecs, tinha ouvido diretamente as palavras de Lewz, assim como os oficiais da ponte da Majorum, ao passo que os demais ocupantes da nave - inclusive Sklar, Almirante Scott e Comodoro Lima - assistiram ao acontecimento através do sistema holointercom ou de seus complantes de realidade virtual nos seus alojamentos ou postos de trabalho. (O astronavegador Themooth Lorphall havia terminado seu horário de serviço; em seu lugar, no console de controle de voo, estava a Tenente Jhirr Pfhueh, uma jovem ektosi do sexo feminino que parecia um guepardo bípede de 1,78m, com seus músculos longos e esguios escondidos sob o ciberuniforme da Frota Estelar, uma longa cauda pintalgada, e seu rosto fino de aparência felinoide, dominado por oblíquos olhos verde-dourados orlados por manchas púrpura-escuras formando uma "máscara" facial, orelhas triangulares e pequenas no topo da cabeça, ostentando uma pelagem bege-esbranquiçada sarapintada de cor de berinjela escuro, quase negro, retinto. Seu mundo natal era Muurlak, orbitante de uma das estrelas gigantes amarelas do par binário 15 Lyncis, que se presumia ser uma "colônia perdida" do Império Jukhariano, ou da Diáspora Caitiana ou Kzin.)

— Eu lhe agradeço, Comandante Lewz - disse a almirante em voz calma e objetiva. Era uma mulher sensível e profissional, de enorme saber, que conquistara sua posição através do trabalho intelectual duro e da dedicação aos ideais cosmoéticos da F.E.U. - Seu relato foi altamente elucidativo, se bem que não deixou de ser tão surreal quanto um holodrama de Wyngarde ou de Barstow. Neuro-intercomunicação holovirtual em tempo zero entre universos separados por trilhões de parsecs, cubos de Rubik que podem abrir buracos de minhoca estáveis no tecido espaço-temporal... Tudo, em última análise, por causa da obsessão de um homem - não, de dois homens - por uma alienígena meio humana, meio lupina, dotada de vida eterna e que vivia num mundo extradimensional habitado por nada menos que todas as fantasias corporificadas de todas as histórias, fábulas e contos imaginados pela raça humana. Deus do Homem!

Lewz limitou-se a repuxar os lábios em um sorriso fechado. "Pessoalmente, não curto holodramas gardnerianos", replicou mentalmente. "Prefiro psicopoesia."

Alxxyn Lewz fizera uma síntese de sua conversa com Dharz no bar panorâmico, com ênfase na importância do que representava a antológica, quimeromogênica mulher-lobo conhecida como Horo tanto para Karl Dharz quanto para David Zero, sendo mesmo o elo de ligação e amizade que conectava ambos os gênios de diferentes multiversos ou Megaversos - no que foi corroborado por Raymi, aquela bela, sábia e misteriosa drinkejmastrino a quem até os oficiais superiores da Majorum respeitavam e obedeciam por confiarem em seus poderes extraordinários e transcendentais (dentre os quais os mais notórios, a capacidade para "saltar" entre vários universos paralelos ou multiversos, projetar-se espiritualmente entre pontos no tempo, ou teletemporação, e assim podendo visualizar futuros alternativos e múltiplos, manipular o próprio tempo, ou cronocinese, usando de suas "joias temporais", além de biocinese ou manipulação de quaisquer seres vivos, animais, plantas ou micro-organismos, podendo curar doenças, rejuvenescer animais, acelerar, diminuir e manipular as plantas e até trazer pessoas de volta à vida restaurando-lhes as funções vitais; e, sendo o avatar físico de um sol, podia ainda metamorfosear-se em um minissol ou em uma supernova).

— O próprio Lewz ficou perplexo com a revelação de que Zero havia perguntado a Dharz se este cuidaria da garota-loba de vida eterna caso um dia ela viesse a enviuvar de seu amado humano, pois Dharz lhe omitira esse detalhe e muitos outros mais - declarou a avatar estelar que, em sua forma humanoide, fora venerada nas eras antigas como uma deusa pagã pelos habitantes do planeta Tholluw, no sistema de 18 Scorpii. - A realidade espaço-temporal a que denominavam "Universo Skyler" deixou de existir juntamente com o mundo de Ekoplex, onde vivia e reinava a mulher com genes de lobo que Zero e Dharz chamavam de Horo, mas que em sua realidade natal era chamada por um outro nome. Houve uma guerra fratricida entre os construtores de universos em algum momento do tempo, ou, se preferirem, "num momento em fisiotempo cósmico", e na esteira dos acontecimentos Ekoplex foi destruída, vítima de um Big Crunch. Essa Horo fora escolhida por um dos Astroengenheiros que projetaram o Universo Skyler para ser portadora dos segredos tecnológicos e científicos da sua confraria cósmica, neles incluso o conhecimento de como construir universos inteiros a partir do controle da matéria em escala subatômica e como reprogramá-los por completo. Em suma, criar multiversos! ASENA, a I.A. da Cosmoarca, possui essas informações armazenadas em seus infinitos bancos de dados sintotrônicos, o conhecimento dos mistérios mais recônditos da natureza. Quer dizer que quem tiver acesso a essa ciência antiquíssima e altamente evoluída obterá poder para reconstruir um cosmos, para reconstruir Skyler. E tal foi a missão incumbida à sapientíssima garota loba que era intitulada a "Princesa Rainha Universal", a única sobrevivente do colapso entrópico do tempo e do espaço que destruiu seu universo natal. Isso significa que ela, Horo, a "Princesa Loba", não é ou será nada menos que uma Astroengenheira, de fato e de direito!

Fez uma pausa e encarou cada um dos presentes na ponte (inclusive o holograma de Swann). Lewz pôde perceber a malícia sutil no belo rosto da avatar estelar, principalmente nos olhos de íris cor de ouro fundido. "Sim", ele pensou, "tem qualquer coisa no olhar dela... uma espécie de conhecimento primal. Enfim, ela é mais velha que a própria humanidade, mais velha até que os primeiros procariontes semeados na Terra pelos Ellohim, Illojiim... Testemunhou o nascimento de um sistema planetário..."

Satisfeita com o impacto causado por suas palavras sobre a audiência atônita, Raymi prosseguiu:

— E é aí que entra o nosso distinto Doktoro Dharz. David Zero, que se tornara um dos doze reis supremos de Ekoplex antes do ocaso final, usou seus conhecimentos dados por Horo, ela própria uma rainha mais influente do que ele, para reprogramar a I.A. da Arca e dar-lhe uma nova diretriz. Usando de algo chamado "esfera skyler", em conjunto com o sistema de teletransporte interdimensional da própria Arca, o inteligentíssimo Zero transladou-a para este "Multiverso de multiversos", ou Megaverso, e dentro do mesmo, para estas específicas coordenadas espaço-temporais nesta específica realidade alternativa; e aqui deveria permanecer aguardando a chegada do único ser possuidor dos padrões cromossômicos, genéticos, mental-vibracionais e bioenergéticos que o identificariam como sendo Karl Dharz. Pois ele certamente viria quando soubesse do "apagão cósmico" provocado pelo abalo na estrutura espaço-temporal, com direito a mudanças na gravidade, tornados quânticos, arcos entrópicos e distorções temporais, tudo centrado neste obscuro setor espacial. O resto da história vocês já sabem.

— Você sabia que a Cosmoarca apareceria neste universo? - Ghowrid pressionou. Entendia que a avatar solar não via a realidade tal como ele e que a lógica de um ser atemporal e supradimensional era obrigatoriamente diferente da de um tridimensional.

— Eu acreditava que "elea" apareceria neste exato tempo e espaço - Raymi limitou-se a responder. - Eu vibro uma infinidade de futuros possíveis. Até aqueles que são incrivelmente, inacreditavelmente improváveis.

— Mas por que, especificamente, o Dr. Dharz? Por que não entrar em contato direto com a Frota Estelar, com as autoridades civis da Federação? - questionou Swann. Ainda lutava para digerir toda essa inusitada massa de informação disponibilizada repentinamente. ("Afinal, ela é apenas uma humana", ponderou Ghowrid, com a típica condescendência quase inconsciente dos genenriquecidos super-humanos nietzschianos para com os imperfeitos humanos da espécie Homo sapiens que ainda habitavam o planeta Terra.)

— Nunca foi essa a intenção do Astroengenheiro construtor do Universo Skyler, que criou ASENA. Ninguém senão a Princesa Rainha universal deveria ter acesso ao estupendo poder skyler, mas Zero tinha suas convicções particulares. Ele não podia negar esse presente a Dharz, porquanto o solariano foi o único outro homem a amar Horo de forma digna e honesta, mesmo sem nunca tê-la conhecido em pessoa. E, tendo-o identificado, ASENA tinha ordens no sentido de transmaterializá-lo para o interior de seu corpo, para o interior da Cosmoarca. Dharz está lá neste momento, e está em perfeitas condições físicas e mentais. Não se preocupem, ele voltará são e salvo quando tiver feito o que deve fazer. Isso é o que nos foi dito por ASENA no bar panorâmico, por intermédio de Irina, quando as mentes de ambas se uniram através de entrelaçamento quântico.

— Faz alguma ideia do porquê e para quê ASENA recebeu ordem desse Zero para "sequestrar" Dharz? - indagou Ghowrid. Em sua visão, o comportamento da I.A. que dirigia a Cosmoarca atentava contra toda lógica. Se tudo que ela queria era a presença de Karl Dharz dentro da nave-arca, fosse por qual razão fosse, bastaria apenas contatar a tripulação da Majorum por rádio subespacial, ou por telepatia, e convidar Dharz para subir a bordo, ao invés de recorrer a um ato aparentemente hostil como um sequestro.

— Talvez eu possa responder a essa pergunta, capitão - interveio repentinamente Irina. - Por cerca de treze centiciclos, eu fui ASENA. Conheço seus pensamentos. ASENA é uma ultrainteligência artificial que praticamente possui sentimentos e um raciocínio que abarca até a sétima dimensão, uma vez que sua rede neural sintotrônica já não opera com os antigos e desajeitados nanoprocessadores ou chips biomoleculares, mas com campos de estrutura hiperenergética 5-D e 6-D. E tem, também, uma diretriz primária irrevogável que lhe proíbe de contatar e compartilhar o legado técnico-científico dos Astroengenheiros com outrincons subdesenvolvidos, que ainda não tenham adquirido, pelo menos, a faculdade de raciocinar de maneira hexadimensional. Foi este o motivo por que ASENA não respondeu e ignorou as tentativas de comunicação feitas pela tripulação da Majorum. Pelas informações de que dispunha o criador "delea" e que remontavam, na melhor das hipóteses, há mais de quinhentos stanrevs, a humanidade terrana não passava de uma raça primitiva, violenta, intolerante e xenofóbica que sequer sabia raciocinar em termos de quarta dimensão - em qualquer realidade alternativa que se pesquisasse dentro da infinidade do Multiverso. E Karl Dharz não passava de um terrano! Depositar nas mãos de um primata glabro e semisselvagem o poder de criar e destruir mundos e até universos inteiros estaria absolutamente fora de cogitação. De sua parte, David Zero fez o que pôde para tentar minimizar o dilema lógico que ele mesmo criou ao instruir ASENA a permitir que seu amigo do "futuro", uma vez identificado como tal pelos sensores de sondagem genética e bioenergética, atravessasse os campos de força multidimensionais que rodeiam a Cosmoarca. Ao fazê-lo, ele disse algo como: "Eu mesmo nasci terrano, e apesar dessa desvantagem fui considerado digno de ser rei em Ekoplex. Não leve tão em conta os princípios adotados pelos velhos Astroengenheiros. Se lhe deram livre arbítrio, use-o corretamente para interpretar e escolher o melhor caminho para preservar o patrimônio deles. Tenho certeza de que tudo isso estará em boas mãos com Karl Dharz, porque ele é igual a mim. Se não o fosse, eu não confiaria a ele minha amada esposa. Faça os testes com ele também, assim como fez comigo."

— Bem - disse Ghowrid. - E daí?

— Quando ASENA sondou os bancos de memória da Majorum, juntamente com a constituição a nível molecular, vibracional/energético e morfogenético de cada ser nesta nave, "elea" encontrou registros históricos de abduções alienígenas na Velha Terra durante o primeiro século d.V. - levadas a cabo tanto por agentes dos Primordiais como por emissários dos Éticos, ou Vigilantes Cósmicos, ou até por manodins do Hipercontinuum Q — e cujo padrão básico assemelhava-se inegavelmente aos ritos de iniciação que ocorriam em diferentes culturas espalhadas pelo orbe terrano: separação, cruzamento do umbral, iniciação e retorno. Numa fração de microciclo uma ideia surgiu na mente cibernética de ASENA, uma saída perfeitamente lógica para evitar o dilema entre obedecer à diretriz programada por Antix Eso Skyler - seu criador e também o Astroengenheiro construtor do Universo Skyler - ou obedecer à ordem direta de David Zero. Compreendem?

— "Elea", como você diz, decidiu abduzir o Dr. Dharz, teletransportando-o para o interior da Arca... o interior de "seu corpo"... a fim de submetê-lo a algum tipo de teste - disse Swann em tom frio. - Desdenhando as tentativas de aproximação e comunicação da parte dos tripulantes da Majorum.

— Naturalmente, as tentativas canhestras e pífias deles de despertar a atenção de ASENA empregando suas... hã... "armas rudimentares", não passaram despercebidas a "elea" - retrucou a androide com um sorriso irônico. - Por sinal, acho que no fundo ASENA divertiu-se com a sua ingenuidade desesperada. "Elea" desenvolveu humor, ética forte e um senso de justiça. Empenhada em desfazer a impressão negativa causada pela abdução do Dr. Dharz, "elea" afinal tomou a decisão de contatar Sinjorino Raymi - na realidade um superser multiversal n-dimensional, à semelhança "delea" - por meu intermédio - uma sua afim ou congênere tecnologicamente menos sofisticada, mas suficientemente avançada para possuir pelo menos raciocínio pentadimensional - e oferecer os oportunos esclarecimentos. Foi a maneira "delea" de mostrar que não teve más intenções.

— Disse-me textualmente, por intermédio da boca de Irina: "Eu venho em paz" - acrescentou Raymi, enfatizando cada sílaba.

— Tendo más intenções ou não, "elea" foi responsável pela morte de vinte dos seus "irmãos" e "irmãs" androides ao romper a barreira interdimensional e invadir nosso universo - Togo observou secamente.

— E a responsabilidade por esse acidente trágico e involuntário há de pesar na consciência artificial de ASENA enquanto "elea" existir - Irina replicou de volta, e uma chispa de genuína raiva se acendeu no olhar da bela androide de cabelos verdes e orelhas élficas. ("É o nanochip emocional", pensou Líria com seus botões.) - Pude sentir o quanto "elea" lamenta profundamente ter causado a morte dos vinte androides - meus irmãos e irmãs, sim - da Estação Científica de Nifelheim, mesmo que indireta e involuntariamente, durante os treze centiciclos em que nossas mentes se mantiveram conectadas. As simulações e cálculos hiperquânticos efetuados por ASENA visando ao salto transdimensional no superespaço e no supertempo já haviam demonstrado que a força necessária para criar um buraco de minhoca que interligasse dois universos... não, dois multiversos a googolplexes de parsecs de distância um do outro, além de produzir uma frente de choque hipergravitacional ao romper a barreira entre as dimensões, teria também como efeito colateral gerar um "vazamento" de radiação hiperenergética que afeta de maneira letal as redes neurais das formas de vida cibernéticas como a minha. Por essa razão foi escolhido como local de reentrada no espaço-tempo normal - do nosso Universo, da nossa galáxia - este setor galáctico em particular, o 246, por ser um deserto cósmico carente de sistemas planetários habitados por qualquer forma de vida física, seja orgânica ou cibernética. Pelo menos deveria ser assim, de acordo com os dados fornecidos por Dharz a Zero.

— Acontece que Dharz não tinha como adivinhar que, dez quadrons depois da sua volta da involuntária incursão temporal lateral até o século XXI da LTA do tal do Zero, um grupinho de androides resolveria instalar uma base neste sistema solar - Lewz arrematou sarcástico (olhando de esguelha para Raymi, pois conhecia a paracapacidade da avatar de 18 Scorpii de "saltar" entre uma infinidade de trilhas temporais e realidades alternadas, paralelas, atemporais e "a-espaciais"). - Ele não é nenhum precog.

— Não nos esqueçamos de que também a Federação e a Frota Estelar foram responsáveis por causar danos a outras formas de vida alienígenas, mesmo que involuntariamente - interveio subitamente Luna Lyang, em sinal de apoio a Irina (a ativista pelos direitos das raças robóticas era uma das heroínas da oficial MecOrgan de armamentos e chefe da segurança, mesmo sendo uma Cyberhumanoid electromechanicus e não uma Cyberhumanoid biomechanicus). - Por exemplo, a terraformação de Astreia, a "Superterra" do sistema Gliese 581, através do uso de processadores atmosféricos, no século IV depois do Voo, que resultou na agonia e morte da única outrincon autóctone do planeta: a própria atmosfera planetária primitiva, uma atmosfera viva, senciente. Um cérebro global de gases que foi inadvertidamente destruído para dar lugar a uma atmosfera composta por oxigênio e nitrogênio. Uma perda irreparável para a Exobiologia Galáctica. Com que finalidade? Apenas novos territórios para colonização humanoide?

"É, no fundo os respiradores de hidrogênio clorzes tinham razão", Lewz pensou um tanto cinicamente. "Homo sapiens e raças humanoides em geral são um flagelo para a biodiversidade sideral."

— Há duzentos e cinquenta stanrevs não contávamos ainda com uma definição precisa e abrangente do termo "vida" - contrapôs Dal Gahud (já desplugado do sistema de computadores da nave), que vinha se mantendo silencioso. - Em tais condições, incidentes trágicos como esse e o dos "microcérebros" quartzosos conectados em rede de Velara III eram praticamente inevitáveis.

— É por isso que hoje em dia temos os cosmopsicólogos - arrematou a orionte Maayylloo. - Noosferas ou campos psi planetários são a assinatura inconfundível da vida sapiente.

Lewz suspirou alto. - O que tem a ver o cu com as calças, afinal?

Swann ergueu a mão, impondo silêncio.

— Certo, certo, certo... Todos aprendemos com os erros do passado. Agora o primordial é nos focarmos no momento presente, no que aquela Cosmoarca representa para a Federação - e não só para a Federação, mas também para a civilização galáctica como a conhecemos. ASENA, sua I.A., e seus atuais ocupantes podem, sem exagero, ser considerados a esta altura como os mais importantes seres sapientes da nossa galáxia. Sinjorino Irina, que novos avanços científicos e tecnológicos podemos esperar desde que a tal "Astroengenheira" ou "Princesa Rainha Universal" permita que ASENA compartilhe conosco seu saber estupendo?

Irina voltou-se para o holograma da almirante. - Por ora, basta informar que o conhecimento científico armazenado nos bancos de memória sintotrônica "delea" possibilita que do dia para a noite, como vocês costumam dizer em Terra, nossa engenharia planetária e nossa navegação interestelar e intergaláctica deem um salto de cinco milênios. Do nível A19 ao nível A24 na Escala Palmer-Yoshida sem passar pelos estágios intermediários.

Uma estupefação momentânea invadiu a psicosfera da ponte (tal como Líria e a própria Irina puderam constatar com suas antenas telepáticas ligadas, por assim dizer).

— Cinco milênios... - Swann repetiu em voz baixa (através de 214,7 parsecs ou 700 anos-luz, por intermédio do holograma; caso houvesse um telepata ou telempata no gabinete da almirante, em San Francisco, Terra, o mesmo teria captado os pensenes de perplexidade da comandante em chefe da Frota Estelar).

— Cerca de 5.500 stanrevs, que é o tempo de levou para a sua espécie evoluir de tribos seminômades de caçadores-coletores recém-instalados nas primeiras cidades-estados e com agricultura primitiva que se massacravam com lanças e machados de cobre e bronze, a blocos de Estados-nações industrialistas que colocavam satélites em órbita e astronautas para passear na superfície de sua Lua enquanto se ameaçavam mutuamente com armas nucleares, químicas e biológicas e dilapidavam sem dó os recursos naturais de seu próprio planeta - replicou Irina com um viés sarcástico e um pequeno sorriso zombeteiro repuxando seus lábios. - Ou, mais tecnicamente, do nível A10 ao A15 na Escala Palmer-Yoshida.

Lewz sacudia-se de tanto rir em silêncio, conforme era seu hábito. Não oficialmente, o oficial de Inteligência da Frota e operativo da Samekh divertia-se com a ironia afiada e cortante da androide fêmea, que não poupava sequer a raça dos seus criadores. (O homem terrano do século VI da nova era espacial podia ser considerado uma raça amadurecida, sensata e sábia, e justamente por isso jamais se esquecia - e nem deveria se esquecer - de que em outros tempos fora uma das criaturas mais insanas, daninhas e nocivas já encontradas na Via Láctea, "a vergonha da Criação Divina" no dizer dos Caminhistas.)

— Nada menos que o poder de remodelar o Universo de acordo com a nossa vontade... literalmente! - murmurou Rhadamanthys Togo, entre estupefato e extasiado (e mais antelluriano-nietzschiano do que nunca, ponderou Líria consigo mesma).

— Porém, mais pragmaticamente - disse Dal Gahud pensativo, cofiando o cavanhaque cor de fogo - , isso significa a possibilidade de aperfeiçoamento estupendo das viagens intergalácticas... e até interuniversais. Significa que já não precisaríamos depender dos hipertúneis Kang parcialmente reativados, nem do stargate da Base 1179 no Setor Ziz para estabelecer rotas regulares com nossas colônias planetárias, nossas bases logísticas militares e postos avançados científicos nas Galáxias de Andrômeda e do Triângulo. Talvez, quem sabe, uma nova tecnologia de exploração interdimensional que torne obsoleto o "superburaco de minhoca" estável e navegável criado pela Unidade Sorbo como passagem espaço-temporal entre universos paralelos de nível 1...

A Tenente Jhirr Pfhueh limitou-se a emitir (por vibração das pregas ventriculares da laringe) um som intraduzível que lembrava um ronronar grave e gutural.

— Em suma, o que temos é uma arca de tesouros multiversal - disse Ghowrid, apontando com a cabeça para a ciclópica nave esférica prateada flutuando impávida, aparentemente imóvel contra o fundo negro do espaço interplanetário, na tela central da ponte da Majorum. - E Dharz é a chave que abre a arca.

— Que pode muito bem se revelar uma caixa de Pandora cósmica - atalhou Lewz, em seu habitual tom suave mas firme. - Em se tratando de ultratecnologia alienígena, é melhor não ir com tanta fome ao prato - ou arca - nem com tanta sede ao pote.

— Vê algum perigo potencial para a Federação?

— A meu ver, o perigo não é tanto os avançadíssimos recursos tecnológicos que a I.A. da Cosmoarca ou sua Senhora Lupina possam ou queiram partilhar conosco e sim o nosso despreparo para lidar com os mesmos da melhor forma possível.

— Nossa civilização já assimilou várias tecnologias alienígenas avançadas e foi bem-sucedida em lidar com as mesmas. Esta nave é prova cabal disso.

— Mas não do tipo e na escala que aquela Cosmoarca representa. Estamos falando de uma supercivilização transcósmica que pode construir universos, transitar livremente pelo tempo... Será que as raças estelares da Federação e do Império Klingon estão maduras para isso?

Sinjoro Lewz, compartilho de sua preocupação e faço minhas suas palavras - Swann disse sem se alterar. - Queimar etapas de forma tão drástica e tão rápida pode ter consequências imprevisíveis para as civilizações, tanto a nossa quanto as demais desta Galáxia. Numa comparação absurda, seria como se chutássemos a Diretriz Primária e colocássemos um reator de fissão nuclear e um space shuttle nas mãos dos orynianos, ou dos obirobars de Beryl, que mal sabem fundir o ferro. Só que agora nós somos os orynianos e obirobars! Por outro lado, como C-em-C da Frota Estelar eu tenho o dever de cuidar da defesa e integridade da Federação Estelar e garantir o bem-estar dos povos e planetas federados. Nos últimos vinte deciclos, a Federação foi desafiada, testada e mais de uma vez por cada um dos principais poderes neste quadrante galáctico: Sorgalt, Draconia, Kadar e, pasmem, até o Yela e os Quadrox do Eastside. Não preciso ressaltar que a nossa ciência não dispõe de meios para proteger nossos planetas daqueles odiosos vórtices hiperespaciais com os quais os Quadrox roubam as reservas atmosféricas e hidrosféricas de outros mundos situados a milhares de parsecs de distância.

Ela entrelaçou as mãos nas costas. - Em poucas palavras, precisamos desse saber superior Astroengenheiro. É imperiosa a sua apropriação e domínio, a despeito de pudores éticos.

Lewz ergueu os ombros e suspirou. - Se formos pensar com a necessária frieza, creio que é a única coisa a ser feita para assegurar a sobrevivência a longo prazo da Federação. Até cheguei a comentar com Dharz sobre isso. Faço votos de que saibamos empregar esses conhecimentos alienígenas avançados com sabedoria, inteligência e lucidez e que deixemos o síndrome de húbris no passado.

— Eu também, Sinjoro Lewz. Queremos salvar a Federação e tudo o que ela representa, e não brincar de Deus. Já não estamos mais no século I, quando se abusava de ciência e tecnologia com a criação de supersoldados geneticamente modificados, chips de controle mental, armas geofísicas e exércitos de robôs assassinos, e sempre no interesse supremo dos conglomerados financeiros globais e dos governos controlados por eles. Só porque podemos fazer algo não significa que devemos fazê-lo. Se há uma coisa que todos aprendemos nesses últimos quatrocentos stanrevs é que o desenvolvimento civilizatório da Humanidade ou de qualquer raça de seres inteligentes deve ser equiparado com um processo de amadurecimento consciencial e espiritual.

"Pois é, nós abrimos mão da malfadada supertecnologia da 'Onda Gênese', com a qual poderíamos terraformar mundos inteiros em questão de microciclos, para evitar abuso de poder, mas não as inescrupulosas megacorporações planetárias de Sartari, gananciosas como são", ponderou Lewz, em ceticismo silencioso. "Olha o que fizeram terraformando Epicot, um satélite morto, num orbe cheio de vida pelo próximo milhão de stanrevs ou menos. Um tour de force mais ou menos irresponsável, com ultratecnologia Geneazeikon de segunda ou terceira mão, repassada por pleiadianos ou Éticos renegados... O que faz a ganância dos não-federados pelo poder técnico-científico!"

(Intimamente, ele se congratulou por ter infiltrado um cibervírus heurístico - uma "bomba lógica" criada pela Samekh - em todos os sistemas de bancos de dados do ultrafechado conglomerado de corporações sartarianas que detinha o segredo da tecnologia da Genesis Wave, deletando-os completamente. Agora nem nós, nem eles...)

— Sem esquecer que qualquer das raças guerreiras da Via Láctea ficaria ávida para se apoderar dos segredos da Cosmoarca - observou Togo. - Acho que os klingons, os kadaritas, os loraks e os jukharianos não vão ficar muito satisfeitos quando souberem que o maior achado da história galáctica está prestes a cair nas mãos da Frota Estelar. Muito menos os ferengis capitalistas e dinheiristas, que adorariam vender todo esse saber supercientífico a peso de cosmogônio para os fanáticos cruzados cortusanos da Coroa Galáctica.

Swann acenou com a cabeça num gesto de concordância. - Esse é outro ponto delicado. A mera presença de ASENA dentro do espaço da Federação resultará em uma série de complicações de âmbito galáctico, tão logo se torne de conhecimento público. O Império Klingon verá nisso uma oportunidade para consolidar sua nova política expansionista na direção do espaço draconiano, valendo-se da aliança com a Federação. Ameaçarão, chantagearão, exigindo participação igualitária no conhecimento superior armazenado nos bancos de dados da Cosmoarca. Os impérios estelares de Sorgalt e da Draconia sentir-se-ão tão ameaçados que possivelmente se aliarão e se lançarão a uma guerra de extermínio contra a Aliança Klingon-Federação, enxergada por eles como um novo e perigoso oponente. - ("E aí, adeus, 'Projeto Imperial' de 'solarização' do Império Sorgalt", pensou Lewz.) - Por outro lado, como muito bem lembrou Sinjoro Togo, há um bom número de nações galácticas de médio porte, Khaldan, Kadar, Jukhar, os zons, a Liga Astronáutica dos Conglomerados Ferengi, a Horda Bosulliana, para não falar dos insectoides loraks e zaranitas do Quadrante Delta com a sua natural repugnância pelos humanoides, que só estarão esperando uma brecha abrir-se para entrar na festa e recolher os despojos do conflito entre os dois superblocos antagônicos.

— Num piscar de olhos a difícil pax galactica que nos foi imposta pelos Éticos pode ir pro ralo, ou melhor, para o buraco negro Sagittarius A, no centro da Galáxia - Lewz resumiu com franqueza brutal. ("Pardon, Stephen Hawking... 'Buraco cinza' ou 'buraco de minhoca espacial'", ele ponderou mentalmente, um tanto cínico.)

— Não, se o Presidente Laukenickas e o Conselho da Federação anunciarem sua disposição em compartilhar o conhecimento eventualmente disponibilizado por ASENA com todos os povos astronáuticos da Via Láctea como um gesto de boa vontade - sugeriu Líria Lemos.

— Desistência cosmoética? - questionou Irina.

— Sim, claro, bem de acordo com os ideais socialistas, humanistas e democráticos da Federação - comentou Alxxyn Lewz, com a sua habitual suave ironia. - Oportunidades iguais para todas as raças e o resto do blá-blá-blá.

A conselheira sapiencior virou-se para ele e retrucou friamente: - Se com isto quer dizer que os paradigmas universalista e maxifraternista estão em sintonia com o holopensene grupal - ou, para usar um termo obsoleto, com o egrégora coletivo - da Federação, então tem toda razão, Sinjoro Lewz.

O oficial humano do Serviço Secreto da Frota curvou os lábios espessos num sorriso imperturbável. - Foi exatamente o que eu quis dizer, Sinjorino Lemos.

Alxxyn Lewz esteve bem perto de questionar de que modo os ideais socialistas da F.E.U. se coadunavam com a sua atitude ambígua em relação à androgênese - a produção em larga escala de clones e andromanos - , ou ao Projeto Cabothan - onde tinha grandes investimentos estratégicos em mineração asteroidal - , mas se conteve.

— A Aliança de Antellus e todas as fratrias nietzschianas se oporão veementemente à cessão de tecnologia Astroengenheira a qualquer raça sedopiana de fora da Federação - afirmou Ghowrid e sua voz soou cortante como uma vibrolâmina de Kirom klingon. - A posse e domínio desse saber exclusivo garantirá à Federação uma superioridade absoluta frente a todas as outras potências galácticas. Então, só então, teremos os meios para impor uma paz duradoura na Galáxia - e sem precisar dos Éticos andromedanos. Renunciar ao monopólio desse poder comprometeria nosso futuro cósmico.

Não houve quem não ficasse surpreso ao ouvir a veemência das palavras do capitão, que no geral era um indivíduo bastante reservado. A Almirante Swann (em holograma) indagou severamente: - Capitão Ghowrid, está sugerindo que a Federação deveria agir como "polícia da Galáxia", sucedendo aos Éticos, mas valendo-se para isso da esmagadora superioridade da ciência e da tecnologia dos Astroengenheiros? Dissuasão pelo medo, como faziam os impérios americano e soviético da Velha Terra pré-unificação planetária? É isso que está sugerindo?

Arjuna Ghowrid sustentou-lhe o olhar (vencendo as centenas de parsecs que os separavam). - Não estou sugerindo nada, almirante. Mas, sendo nietzschiano, conheço bem a minha raça. Sei como pensam e sentem... e como reagirão. Sobrevivência é tudo! O fato é que a Federação é um "corpo estranho" no quadrante, um laboratório de multiculturalismo galáctico libertário, um oásis democrático rodeado por um mar de autocracias imperialistas e forças hostis e xenofóbicas, que não hesitarão em utilizar o saber dos Astroengenheiros para seus próprios fins de guerra e conquista da Galáxia pela força. Por outro lado, o juramento que fiz como oficial da Frota Estelar me obriga a proteger aqueles que encontram-se dentro da Federação contra formas de vida alienígenas hostis.

Alxxyn Lewz sentiu a mente de Líria Lemos penetrar na sua. "Quando o assunto é sobrevivência racial, meu próprio povo pensa tal qual os antellurianos-nietzschianos", ela telepatizou para ele. "Ambas as raças têm maior dificuldade em colocar-se no ponto de vista dos outros. Sua natureza super-humana, sua superior capacidade de influência, os desinibe e os leva a pensar em novas oportunidades e ambições. Daí para o síndrome da presunção são poucos passos."

E a presunção, a hybris - os solarianos o sabiam, por experiência própria, mais que qualquer outro povo da Galáxia - é o último dos passos que conduzem à corrupção do poder absoluto. Apesar disso, porém...

Lewz meneou afirmativamente a cabeça, exibindo um meio sorriso de lábios cerrados. - Sou forçado a concordar com o capitão. Esse grande poder hipertecnológico, em mãos erradas, será só mais uma arma de destruição em massa. A última coisa que queremos é fornecer aos nossos eventuais inimigos alienígenas meios hipertecnológicos para criar as suas próprias "armas do Juízo Final". Se isso acontecer será o nosso fim. Com todo respeito, mas a Federação não pode ter o destino da Comuna de Paris. Ou dos reinos bíblicos de Israel e Judá. Quer as outras raças galácticas gostem ou não, somos o mal menor. Antes nós que draconianos ou ferengis detendo o poder de criar e destruir.

(Irina e Aine-Grian Raymi trocaram um olhar significativo como que dizendo: "Tsc, tsc, tsc... Essas inteligências orgânicas!")

— Com todo respeito - retorquiu Líria - a decisão é política, não militar.

— E tem toda razão, conselheira. - A expressão da Almirante Swann suavizou-se ligeiramente. - A Frota Estelar está sob comando civil, senhores. O Fórum Estelar, o Conselho da Federação e o dos Computadores decidirão sobre o destino de ASENA. Feliz ou infelizmente, isso está fora de nossa alçada. Vou encarregá-lo de uma nova missão, capitão.

— Sim, almirante? - Ghowrid replicou de pronto.

— E quanto ao Karl? O Dr. Dharz - perguntou Lewz, preocupado com o amigo.

— Não nos esquecemos dele, Comandante Lewz - Swann respondeu, num leve tom de censura. - A partir deste momento, o sistema Kepler-78 será colocado sob quarentena por ordem do Comando da Frota Estelar. Por isso, capitão, sua missão será patrulhar os limites desse sistema estelar, mas você e a Majorum não serão deixados por conta própria. Enviarei uma força-tarefa sob o comando do Vice-Almirante Rosenthal de Alpha Centauri, consistindo de um encouraçado estelar e dez cruzadores de apoio da classe Anak, de modo a formar um perímetro de segurança para garantir que nada nem ninguém possa entrar no sistema estelar de Kepler-78 a não ser com convite especial do Estado-Maior da Frota Estelar.

— Receia eventuais incursões alienígenas neste setor espacial por causa da Cosmoarca, almirante? - perguntou Ghowrid, deduzindo o que ia pela mente da C-em-C.

Yasmine Swann curvou um canto dos lábios num meio sorriso sem humor.

— Vamos encarar os fatos. A onda de hiperchoque que acompanhou o efeito gravitomagnético da "piscadela cósmica" provocado pela súbita irrupção da Cosmoarca no continuum quadridimensional percorreu o Universo de uma extremidade a outra. Considerem a torrente de "fenômenos" impossíveis: disrupção momentânea dos campos gravitoeletromagnéticos e dos campos nucleares fortes e fracos, completa distorção da dobra temporal... e tudo isso centrado no setor estelar 246, no sistema Kepler-78. No nosso quintal! Os nossos vizinhos cósmicos não são tolos. Assim como nós, também possuem sensores de subespaço, e rastreadores estruturais com os quais mensurar os abalos na estrutura do conjunto espácio-temporal normal. E, também como nós, contam com seus agentes psis para fins de espionagem e contraespionagem, telepatas, precogos e projetores conscientes originários de suas próprias raças ou das raças auxiliares. Em pouco tempo vão chegar à conclusão de que aquele fenômeno de "apagar" do Universo foi causado por alguma coisa intrusa, extracósmica, extrauniverso, no nosso Continuum; e que essa "alguma coisa" alienígena se encontra em um setor quase vazio de Midlant, no âmago do espaço federativo. - De súbito, porém, seu semblante ficou rígido. - Tenente Ssahila, conecte-se na Starnet e surja no holocomunicador da Majorum.

Uma nova imagem holográfica apareceu na ponte de comando da nave. Não havia dúvida de que o sedop alto e esguio, de pé, que envergava o ciberuniforme de oficial da Frota Estelar pertencia a uma raça reptiliana. Tinha um crânio inumano achatado e alongado, praticamente sem nariz, pele coberta de escamas e placas córneas de coloração marrom-avermelhada-clara, exceto pelas membranas translúcidas, finas, de um tom cinza-perolado e brilhante, que revestiam os ouvidos externos. As pregas cutâneas de cada lado da boca de lábios intumescidos conferiam-lhe uma vaga aparência batráquia. Já os pequenos olhos escuros afundados nas órbitas escamosas proeminentes pareciam surpreendentemente humanos. Seus braços, terminados em "mãos" escamosas de três dedos largos (sendo um polegar opositor) com extremidades em forma de garras, pendiam dos dois lados do corpo magro, e na parte que era anatomicamente equivalente ao antebraço esquerdo humano havia um vidcomputron de pulso.

— Tenente Ssahila - disse Swann - por favor, repita o que acabou de me informar por meio do complante.

— Sim, almirante - falou o sedop reptiloide, em esperanto, com sotaque coaxante, e iniciou seu relato.

Ghowrid e Lewz conheciam o/a ajudante de ordens da Almirante Swann, o/a Tenente Ssahila Rrammzluggl'il, um/a nativo/a do cálido e aquoso planeta Kumasch. Kumaschitas ou dracs eram hermafroditas autofecundantes que se reproduziam sem a necessidade de parceiros e regiam-se por uma antiquíssima filosofia mística panteísta. Kumasch, o mundo-matriz de uma sinarquia teocrática ou Kalam que abrangia mais de 500 planetas colonizados, girava ao redor de Zilia, antigamente chamada de HIP 56498, uma estrela anã amarelo-alaranjada de classe G5V, distante 64 parsecs da União Solar e considerada uma "gêmea mais velha" do Sol terrano. Sua civilização, muito mais antiga que a humana, fazia parte da F.E.U. desde o século III d.V.

Imperturbável, o holograma de Ssahila falava com voz gutural e sibilante:

— Na data estelar 92102.224, a parassondagem no espaço profundo além de Estborgen, efetuada por nossos visualizadores remotos e projetores lúcidos, descobriu uma atividade extraordinária das naves katonenses, draconianas, klingons e de outras procedências num raio de 30,67 parsecs de nossas fronteiras cósmicas. A movimentação foi registrada segundo a rota e a data e os dados foram enviados ao Conselho de Computadores em Siderápolis. A probabilidade é de pelo menos 90% que outros povos estelares do Quadrante Alfa, como Klingon, Khaldan, Draconia e Sorgalt, tenham tido sua atenção despertada para o sistema Kepler-78, no setor 246, por causa do fenômeno de apagamento gravitomagnético de âmbito metagaláctico com epicentro centrado na área investigada pela U.F.S. Majorum. Há dados adicionais referentes à presença de naves camufladas num raio de cem parsecs da área do espaço em questão.

— É só, obrigada, Sinjoro/ino Ssahila - disse Swann, assentindo em aprovação. Quando o holograma do/a kumaschita desapareceu, a almirante voltou-se novamente para Ghowrid. - É o que acaba de ouvir, capitão. Os lobos, ou melhor, os volskrends estão saindo das tocas para caçar. Devemos contar com a hipótese de que a existência da Cosmoarca se torne conhecida dos habitantes da Galáxia prematuramente. Algumas raças sedopianas - para não falar de organizações terroristas como os Frighen, os Chacais Prateados ou o Exército Clone de Libertação - , movidas pela ganância, pelo desejo de poder ou por simples curiosidade, tentarão invadir o espaço da Federação. Mais especificamente a área onde vocês se encontram. Sua missão, capitão, junto com a força-tarefa que enviarei, é impedir que tal aconteça. Além, é claro, de assegurar-se do retorno incólume do Dr. Dharz à Majorum.

Ela dirigiu um olhar de esguelha para Alxxyn Lewz, que a observava com seu semblante enganosamente manso e impassível.

Ghowrid assentiu. - Perfeitamente, almirante. Recebido e registrado.

— Então, como dizemos no planeta Terra, boa sorte. Swann desligando.

Com estas palavras, a C-em-C interrompeu o link hiper-subespacial e sua imagem holográfica sumiu, tal como a luz que se apaga ao desligar de um interruptor em uma cultura subdesenvolvida nível A14 ou A15 (tipo Umbria ou Aldharmin, ou Baker, Shogal e Oborin, ou a Velha Terra nos séculos I a.V. e I d.V.).

— Pois bem, vocês ouviram a almirante - disse Ghowrid, já levantando-se da cadeira de comando. - Sinjorino Pfhueh - disse ele, esforçando-se para pronunciar corretamente o nome ektosi que soava como um acesso de tosse e espirro - um quarto de impulso à frente, leve-nos para os limites externos deste sistema estelar e estabeleça uma nova órbita ao redor de Kepler-78. - E acrescentou, mordaz: - ASENA não vai a lugar algum.

— Sim, Capitão Ghowrid - respondeu a tenente felinoide com um suave ronronar de barítono. Suas mãos de seis dedos quase humanas, providas de garras negras semirretráteis e revestidas de pelos brancos curtos com pequenas pintas roxas escuras, moviam-se velozes sobre o holopainel de dados do console de navegação. As pupilas e as íris douradas raiadas de verde (com as bordas de um verde-esmeralda profundo) de seus imensos olhos amendoados de gato envoltos por manchas preto-arroxeadas estavam cobertas por finíssimas lentes de contato digitais transparentes de realidade aumentada (ou seja, duas microtelas LCD para acessar e receber dados navegacionais controladas por um piscar de olhos), conectadas ao sistema de navegação e ao seu ciberuniforme (sua rede pessoal) por meio da insígnia-micrompo quântico de peito. (Aliás, graças à onipresença dos nanochips e picochips moleculares a comunicação instantânea em tempo real entre todos os objetos computadorizados - até mesmo os mais banais e não apenas os ciberuniformes - via "intranet das coisas" da nave era prosaica e rotineira.)

Ghowrid continuou a dar ordens. - Sinjorino Lyang! Preparar para lançar todas as esquadrilhas de drones espaciais. Vamos encher o espaço daqui até Nifelheim com um milhão de drones de vigilância e de combate.

— Sim senhor - respondeu Luna, com sua habitual prontidão biorrobótica, enquanto fazia seus longos e esbeltos dedos cor de pêssego voarem (com rapidez super-humana) sobre o teclado virtual holográfico do console de armamentos e posto tático.

— Capitão - disse Líria, dirigindo-se a Ghowrid através de transmissão de som direcionada - parece-me que a Almirante Swann não gostou da sugestão de que a Federação deveria se valer do acervo ultratecnológico dos Astroengenheiros para bancar a maioral da Galáxia... tipo o lobo alfa mandão, como se fazia na Velha Terra na era dos primitivos estados-nações beligerantes e do igualmente primitivo capitalismo predatório que precedeu à unificação política do planeta, em fins do século I depois do Voo.

— Swann é solariana e humana - retorquiu Ghowrid através do mesmo meio de comunicação privada. - Seu povo teve de lidar com coisas como exploração econômica, opressão política e dominação cultural das tribos e nações mais fracas pelas mais fortes, e a justificativa era sempre em nome da "manutenção da ordem mundial". Isso acabou por torná-los desconfiados e refratários à ideia de usar o poderio cósmico para impor a paz na Galáxia. Para os humanos é uma questão de "princípios".

— Já o Tenente-Comandante Lewz, apesar de humano, não parece compartilhar esses pruridos éticos.

— O que não surpreende em se tratando de alguém que, de acordo com as más-línguas e por mais que ele o negue, trabalha com a Nigraj Operacioj. O modus operandi deles deve ser bem antelluriano-nietzschiano, se formos dar crédito aos rumores que circulam pelas redes subespaciais. Mais pragmático, menos idealista ou "utopista".

— Os fins justificam os meios! De modo que para se atingir um objetivo legítimo, todos os meios disponíveis são também legítimos.

— No interesse maior dos povos e planetas da Federação. Extraoficiosamente, é claro.

Em seguida, Ghowrid voltou-se para Lewz, Raymi e Irina, e disse em tom cordial: - Bem, senhor e senhoras...

Raymi, por sua vez, virou-se para seus dois acompanhantes e disse em tom provocativo e jocoso: - Creio, Sinjorino Irina e Sinjoro Lewz, que não somos mais bem-vindos na ponte do Capitão Ghowrid.

O capitão nietzschiano já estava familiarizado com o jeito propositalmente pueril e direto com que a bartender loira de aparência élfica se dirigia às pessoas, por isso limitou-se a forçar um meio sorriso de lábios fechados.

— Qualquer coisa estarei no meu alojamento - disse laconicamente Alxxyn Lewz, dando as costas aos demais e indo em direção ao turboelevador. - "Fui", como se dizia no tempo do meu original.

— E eu estarei no meu alojamento... ouvindo uma ária virtual sphariana enquanto me projeto em uma praia tropical de Risa - disse Irina, tocando a fronte com a ponta do dedo indicador, numa alusão à capacidade de projetar realidades virtuais em torno de si, acessar e baixar em seu cérebro positrônico altamente avançado todo e qualquer arquivo de áudio, audiovisual 3-D ou holográfico existente nos cibersistemas da nave (na realidade um feito ao alcance de qualquer humano ou outrincon orgânico dotado de um implante indutor psicocibernético). Ato contínuo, ela também encaminhou-se para o turboelevador da ponte.

Aine-Grian Raymi fez menção de juntar-se a eles, mas...

— Raymi!...

...Foi detida pela voz de Ghowrid, inaudível para qualquer um a não ser o destinatário do som dirigido.

Ela o encarou com uma expressão neutra. - Há algo mais que queira de mim? - perguntou pelo mesmo meio de comunicação privativo.

— Existe alguma coisa que você não esteja me contando? Sobre esse "presente" de um outro multiverso?

— Você já sabe o que há para saber. Não há nenhum mistério escondido. Tudo está exposto na superfície, como se fosse pornografia sufkiana sob o luar rosado de Onay.

Ghowrid reprimiu o riso. "Eis uma resposta típica de Raymi", pensou. "Prática e irreverente, útil a Raymi, que tanto pode ser verdadeira ou não. Ninguém, nem mesmo um telepata pode conferir se é verdade ou mentira."

E todo o restante da tripulação, incluindo ele, o capitão, dar-se-ia por satisfeito com a resposta de Raymi.

— Lembra-se do nosso acordo, Arjuna? - disse ela, jovialmente, ainda por meio da transmissão de som dirigida. - Você lidará com os problemas deste Universo ou dimensão, e eu cuidarei de todos os outros.

Dito isso, Raymi deu as costas ao capitão sem nenhuma formalidade e também se encaminhou para o turboelevador aberto, onde a esperavam (impacientemente) Lewz e Irina.

— Aposentos de Oficiais da Federação Visitantes, Convés 7 - ordenou Lewz aos controles de interface vocal.

Quando as portas se fecharam e o turboelevador partiu acelerando, Lewz voltou-se e falou a Raymi: - Talvez você devesse ficar com o controle do acervo científico e tecnológico da Cosmoarca, Sinjorino Raymi. Já pensou nessa possibilidade?

— Eu?! - Aine-Grian Raymi engasgou com falsa surpresa. - Mas sou apenas um pequeno Raio de Sol... uma centelha de luz extraída do núcleo do Grande Sol Central para peregrinar no Cosmos ilimitado. Por que justo eu?

— Porque você é um avatar estelar, um outrincon poderosíssimo que chegou a ser adorado como Deusa do Sol e dos cereais pelo povo do planeta Tholluw? - sugeriu Irina.

Raymi gargalhou de leve. - Em Tholluw, há trocentos anos, eu não passava de simples dublê de deusa das colheitas. A verdade é que eu jamais quis aquele título, pois detestava a ideia de ter adoradores. Sonhava em fazer amigos e não devotos.

— Taí mais uma razão pra querê-la na leme da situação - Lewz atalhou friamente, exibindo seu sorriso de lábios cerrados. - Lá no meu planeta, é ponto pacífico que qualquer pessoa que deliberadamente deseje o cargo de chefe de Estado deve ser automaticamente desqualificada. A raiz de todo conflito jaz no desejo de posse e de poder, né?

— O povo do seu planeta tem sabedoria - observou Raymi. - Vocês merecem o legado dos Astroengenheiros.

Lewz deu um riso seco. - Grato pela confiança, mas os Éticos, os Vigilantes Cósmicos não compartilham do seu otimismo em relação à maturidade da raça humana. Eles sempre se recusaram a disponibilizar sua ultratecnologia avançada, alegando que éramos espiritualmente incapazes até mesmo para lidar com aquilo que já tínhamos, como as dobras espaciais, engenharia genética e robótica. E que iríamos usar qualquer nova tecnologia para nos autodestruirmos - e o resto da Galáxia conosco.

— Todos estamos em um caminho de evolução da consciência, de acordo com as Leis do Cosmos. Não se esqueça de que em quinhentos stanrevs sua raça fez mais que as outras raças em cinco mil, Alxxyn. Vocês já deixaram de ser adolescentes cósmicos e agora caminham para se tornarem adultos cósmicos.

Lewz pensou nos "mundos superiores" envoltos em "etérea luz eterna", referidos fugidiamente pelos Kang e Nomak de Adser VII, e olhou de relance para Irina, que, sendo capaz de ler seus pensamentos, sorriu de maneira compreensiva.

Ao chegar ao Convés 7, as portas do turboelevador abriram-se e Irina e Lewz saíram para o corredor. Raymi brindou-os com seu sorriso mais radiante e disse-lhes: - Que a Luz Dourada Resplandecente do Grande Sol Central dos Universos os acompanhe, caros amigos.

A líder androide e o oficial humano retribuíram o sorriso e acenaram com as cabeças. Sabiam que Raymi não chamava alguém de amigo com facilidade.

Ainda dentro do turboelevador, Raymi ordenou calmamente aos controles de interface verbal: - Bar Panorâmico, Convés 12.

(Por uma mera fração de microciclo, as escleras de seus olhos chamejaram em dourado-alaranjado vívido como se compostas por plasma solar.)

As portas voltaram a fechar-se com um zumbido ligeiro e o turboelevador em movimento acelerado levou-a até seu destino.


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Notas finais do capítulo

É sempre bom ressaltar que qualquer personagem do "Universo Skyler", como David Zero ou Antix Eso Skyler, pertence ao amigo Skribery, o criador de toda a Saga Skyler. A propósito, se os eventuais leitores quiserem um relato completo do que aconteceu - ou acontecerá - com David Zero e sua "Princesa Loba" Horo/Ylwen, leiam a excelente coletânea "Skyler - Histórias Paralelas", de autoria de Skribery, e descubram (embora não inteiramente consistente com as referências feitas nesta minha obra, que baseiam-se em versões anteriores do Universo Skyler posteriormente deletadas - pelo Criador do mesmo - em uma grande Mudança de Realidade).
O nome da Cosmoarca, ou melhor, da I.A.A. que a controla, ASENA, foi tirado da mitologia etnogênica dos povos turcos e mongóis: Asena foi uma deidade-loba que, na forma de uma bela mulher, casou com um príncipe humano (originalmente, um menino que ela adotou) e dele teve dez filhos, meio-homens meio-lobos, cujo líder, Ashina, deu origem a uma poderosa linhagem de príncipes dos impérios turco e tártaro-mongol da Ásia Central, o clã Ashina.
Aine-Grian Raymi, como avatar estelar e orientadora espiritual, foi baseada parcialmente na versão dourada da Trance Gemini (Laura Bertram) de "Andromeda", e, é claro, na Guinan (Whoopi Goldberg) de "Star Trek - The Next Generation", embora a aparência física da personagem seja resultado de uma combinação da Altaira (Anne Francis) de "Forbidden Planet" com a Kes (Jennifer Lien) de "Star Trek - Voyager", mais os olhos de íris douradas, que julgo serem mais condizentes com sua a sua natureza de avatar solar (de uma estrela anã "amarela" classe G, como o nosso Sol). Não obstante, tenho me esforçado em fazê-la o mais original possível como personagem - afinal, ela poderá ter uma atuação importante e determinante não só nos próximos capítulos, mas também nas próximas histórias (envolvendo Horo/Ylwen) que, se DEUS quiser, haverei de escrever. Também pretendo introduzir futuramente novos avatares estelares ("irmãos" e "irmãs" de Raymi) mas apenas como personagens ocasionais - talvez até, quem sabe, o/a avatar do Sol da Terra!
A título de curiosidade: "246" (setor espacial 246) é o valor numérico da palavra hebraica "midbar", que significa "deserto", mas tb é o mesmo valor - em guematria - da frase "derech hatov", que significa "caminho do bem" ou "caminho bom"; igualmente, "1179" (Base 1179, no Setor Ziz) é o valor numérico, tb em hebraico, da frase que significa "portal das galáxias", ao passo que "Ziz" é o nome de um monstro alado, com asas colossais, na Bíblia hebraica, o Tanach (2 Crônicas, 20:16). "Samekh" (ou "samech") é uma letra do alfabeto hebraico, cujo nome pode significar "apoiar-se", "defender", "poder" ou "confiança", é a 15ª letra (15 simbolizando a quintessência da força e da ambivalência do 5, tanto positiva ["divina"] quanto negativa ["demoníaca"], tendo um pólo claro e um pólo escuro, bem e mal!), cuja forma evoca a serpente mordendo sua própria cauda ("ouroboros"), a serpente da tentação, que, se conquistada, nos dá luz e sabedoria.



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