Deusa Estelar escrita por Carlos Abraham Duarte


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

Daqui a aproximadamente uns 480-500 anos, no século VI da Era Espacial (ou, pelo calendário antigo, a última década do século XXV)...



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"Para alguns escritores de ficção especulativa do passado pré-galáctico da Terra, entre os quais eu citaria Clifford D. Simak, H. P. Lovecraft e Marcelo Del Debbio, a humanidade não tem construído apenas com as mãos, durante todos os milhões de stanrevs de sua evolução, mas também com o pensamento, a imaginação. Dessa forma, parafraseando Jacques Bergier ao citar H. G. Wells, existiriam 'universos mais próximos de nós do que nossos pés e mãos', porém tais universos teriam sido criados a partir dos pensenes da raça humana e povoados por todos os seres fabulosos imaginados pelos seres humanos ao longo de sua história. Sabemos, por exemplo, que o grupopensene ou a concentração consciencial projetada por aquilo que antigamente se chamava de 'círculo de iniciados' tem o poder de fazer um morfopensene, uma 'forma-pensamento', no jargão arcaico, materializar-se, adquirir substância tangível. Poderíamos encarar essa nova forma de vida como uma nova forma de evolução que passara a existir no planeta desde o momento em que os seres humanos possuíram a capacidade de imaginar criativamente semelhantes entidades. Dessa forma, tais mundos de fantasia, em um outro segmento de tempo, ou 'universo paralelo', existiriam e seriam tão reais quanto o nosso, assim como os outrincons neles residentes - quer fossem o Diabo cristão, Dom Quixote e Sancho Pança, Sherlock Holmes, Batman e Robin, o Superman, o Saci-Pererê, o Pato Donald ou a Sábia Loba Horo - e que poderiam, inclusive, transportar-se ao nosso mundo, ou comunicar-se conosco através do estado consciencial intermediário entre o estado de vigília intrafísica e o sono a que chamamos 'sonho'."

— Trecho de uma palestra de Karl Dharz, em Lucerna, planeta Terra, União Solar, sobre multidimensionalidade consciencial e as novas formas de percepção do Universo.

"Tudo está conectado em uma Teia Cósmica. Tudo é relativo para a infinidade de 'eus'. Tudo na totalidade do Multiverso só existe porque cada indivíduo acredita em sua existência. Algo está lá porque nós imaginamos aquilo, e então confirmamos aquilo. Você existe porque eu e porque outros imaginam que você existe. Eu existo porque você e porque outros imaginam que eu existo. Acreditamos que o Multiverso é formado por uma realidade consensual e subjetiva. Agora considere: você cessará de existir se todos que sabem de sua existência se dispuserem a negá-la? Poderia você provar o contrário, a negação da negação de sua existência, negar a sua não-existência? E o que isso iria resultar?"

Raziel Kurosawa de Coronis - Superconsciência Cósmica

 

Karl levantou os olhos de sua mesa e viu - à luz da vela do castiçal - Horo ali em pé, fitando-o com um sorriso brincalhão, sem que sua aproximação tivesse sido ouvida. Ela usava apenas uma camisa longa de mangas compridas, cor de lavanda, estando nua da cintura para baixo. As orelhas de lobo estavam empinadas para frente, ao passo que a longa cauda felpuda de ponta branca balançava inquietamente de um lado para o outro. Em seu pescoço de marfim pendia a indefectível bolsa de couro com grãos de trigo em que - a se dar crédito ao que ela dizia - residia sua essência espiritual e divina.

— Quando você acordou? - ele exclamou, fingindo-se de surpreso.

— Oh! Trata-se do desenho de uma loja? - ela indagou, cheia de curiosidade, com as mãos sobre os ombros dele e mastigando um pedaço de pão suíço. No papel, via-se um esboço feito com tinta nanquim e pena, representando uma construção.

— A minha loja - disse ele. - Eu que desenhei.

— Estou genuinamente impressionada... É um belo desenho! - disse ela.

— Às vezes, existem situações em que você precisa desenhar para conseguir fazer negócios - Karl explicou. - Quando se viaja para um país estrangeiro cuja língua não se sabe falar. Por isso, a maioria dos comerciantes viajantes são bons desenhistas.

— Quer dizer que planejas abrir tua loja dentro em breve?

— Talvez eu possa - Karl encolheu os ombros - se o acordo de negócio com a Companhia Milone for bem sucedido. O que é quase uma certeza.

Ao ouvir isso, o semblante de Horo anuviou-se. Ela tomou alguns goles da água misturada com vinho na jarra em cima da mesa, depois foi sentar-se num canto da cama. Na lareira, o fogo amarelo-alaranjado crepitava, constituindo-se na única fonte de calor em meio à fria penumbra do aposento.

Kenrou Horo, a Sábia Loba de Yoitsu. Assim dizia chamar-se a linda jovem de uma beleza exótica e inumana que Karl Dharz encontrara escondida em sua carroça - entre as peles de marta que ele ia vender, e tão nua como a luz do luar - , enquanto visitava o pequeno vilarejo de Pasloe ou Pasroe para comprar trigo. A garota com cauda e orelhas de lobo alegara ser ninguém menos que a Deusa da colheita e que, por isso, tinha estado confinada nos campos de trigo do vilarejo, proporcionando boas safras agrícolas aos aldeões desde séculos e séculos sem conta. Agora, porém, com a chegada do Todo-Poderoso Deus da Igreja e das novas técnicas de cultivo da terra, as pessoas foram deixando de acreditar nos velhos espíritos pagãos, e ela, a deusa-loba, viu-se relegada ao esquecimento. Horo então implorara ajuda a Karl, pois há muito ansiava por voltar para sua terra natal, a Floresta Boreal de Yoitsu, que ficava no extremo norte gelado. Mas Karl conhecia as histórias antigas que narravam ter sido a cidade de Yoitsu - o lar dos imortais lupinos que pertenciam à raça de Horo - destruída há mais de seiscentos anos por uma monstruosa deidade-urso ancestral, o Urso Caçador da Lua.

Fora com pesar que Karl contara a Horo tudo que sabia sobre Yoitsu, e secara-lhe as lágrimas copiosas com seus dedos. Não obstante a tristeza que lhe enchia o coração, a garota-loba fizera um acordo com Karl, para o comerciante levá-la embora da aldeia junto com ele - Horo queria viajar à maneira dos piepowders, ver o quanto o mundo havia mudado enquanto ela permanecera isolada no meio dum campo de trigo por tantos séculos. Em troca, ela o ajudaria a aumentar seus lucros nos negócios, pois possuía um arsenal de sabedoria de mais de meio milênio.

Feito o contrato verbal, Karl Dharz e sua "sócia", a Sábia Loba Horo, fizeram-se à estrada, comprando e vendendo mercadorias de uma cidade para outra - mas, ao mesmo tempo, evitando chamar a atenção alheia, sobretudo da Inquisição da Igreja, para a cauda e as orelhas de lobo de Horo, dissimuladas sob roupas mais folgadas e amplas, um gorro, uma capa pesada ou um capuz. (Sua verdadeira forma, Karl o sabia, era a de uma gigantesca Loba supernatural que poderia engolir um homem inteiro, mas ele não tinha medo dela.)

— Sabe, Horo, ter um estabelecimento comercial é o sonho de todo mascate, e eu não sou exceção - disse Karl. No fundo, porém, ele não queria a loja; ele queria Horo.

— Entendo - disse ela. - Abrindo uma loja, tu podes tornar-te um membro da vida social de uma cidade.

Karl assentiu. - E ao contrário de um piepowder, posso fazer amigos se puder ficar no mesmo pedaço de terra por um longo tempo.

— Sem contar que encontrar uma esposa para envelhecerem juntos, à maneira dos mortais, se tornaria muito mais fácil - Horo observou, amuada.

Karl riu forçado. - Pra dizer a verdade, eu não quero uma esposa que envelheça junto comigo. Se um de nós já vai ficar velho, para quê os dois?

Horo explodiu numa sonora gargalhada.

— Falo sério - ele insistiu. "OK, isso foi um verde."

Oh-ho - fez a garota-loba. - Se tu chegaste mesmo ao ponto de esboçar um desenho de tua loja, e por isso deves tê-lo feito muitas vezes antes, tu deves ser capaz de começar teu próprio negócio.

— Quando eu desenho alguma coisa, eu sinto que não posso esperar até finalmente obter o que desenhei - disse o sorridente jovem humano, com o olhar sobre o papel em suas mãos. Seu pensamento, porém, estava dirigido para outro desenho, que ele não mostraria a ninguém, e que representava a Kenrou Horo na forma "humana", linda e nua, com a cauda e as orelhas lupinas, sob a luz da Lua cheia.

(Desde o início de sua jornada juntos, Horo e Karl brincavam de flertar um com o outro. Ele estava apaixonado por ela, porém ainda não o declarara, por não ter certeza de quando, ou se alguma vez, Horo iria aceitá-lo. Um reles ser humano, de vida curta!)

— Um artista andarilho que conheci há muitos e muitos anos (vários séculos, eu diria), falou algo similar - disse Horo, como se monologasse. - Que ele queria pintar todas as cenas que via diante de si. Ao pintar ou desenhar os campos, ele queria possuí-los. - Fez uma pausa e acrescentou: - Eu duvido que ainda agora o artista haveria de lograr realizar o seu sonho. O teu sonho, por outro lado, parece estar prestes a concretizar-se.

— De fato. Quando penso sobre isso, quase enlouqueço por ficar parado.

— Pois que então... Possa o teu sonho tornar-se realidade - ela riu levemente.

— Amém - replicou Karl alegremente, pegando a caneca de madeira e tomando um gole de vinho tinto. - Realizar sonhos é ótimo.

Horo permaneceu cabisbaixa, a voz abafada. - Hmm... Caso tu possuas uma loja, no entanto, há de ser ruim para mim. - Seu sorriso era triste. - Se abrires uma loja, não poderás mais sair, certo? E assim sendo, nada me restaria senão viajar sozinha, ou quiçá encontrar um novo companheiro.

"Eu sabia que diria isso, Horo", pensou Karl, sem conseguir evitar de se autorrecriminar por fazê-la sofrer ainda mais. E disse:

— Você está cansada de ficar sozinha, não é?

— Eu chorei por amigos pretéritos. Eis a prova de que já fui solitária! - desabafou a menina-loba, com o olhar baixo, perdido em pensamentos sombrios, enquanto balançava infantilmente as pernas nuas ao longo da borda da cama; seus delicados pés sequer tocavam o chão de tábuas largas do quarto da estalagem.

Ela, a imortal, a Sábia Loba de Yoitsu, capaz de viver por tempo indeterminado dentro do trigo numa forma etérea, que por séculos sem conta fora cumulada de honrarias e adorada como uma deusa pelos pagãos, que cuidava da terra e abençoava os agricultores com colheitas fartas e abundantes. Ela que em sua forma de Loba gigante pulverizava rochas com suas garras, dizimava legiões de homens armados e fazia tremer a terra inteira. E ainda assim, contudo, parecia tão pequena e desamparada à luz amarela e bruxuleante das velas acesas, que Karl teve vontade de tomá-la nos braços, de protegê-la contra o peito, acariciá-la e consolá-la.

— Horo, eu quero continuar viajando com você - disse Karl, enfatizando cada palavra. - De mais a mais, eu não preciso abrir uma loja de imediato, mesmo tendo o dinheiro na mão.

— Tu... Falas sério?

— Creia-me, Horo, eu prefiro continuar viajando com você do que ganhar mil, duas mil moedas de prata. Quero fazer a nossa viagem durar o máximo possível.

Ele sorriu ao ver o sorriso de alívio dela.

— Ainda que Yoitsu não esteja mais lá, eu quero voltar à minha terra natal - disse Horo com a voz embaraçada. - Quero voltar a ver o mundo de brancura e claridade, onde tudo brilha como prata. Mas não tenho o direito de te arrastar comigo... tenho?

Karl replicou, sem pestanejar: - Horo, eu não me importo de ir junto com você para o Norte... se for o que você quer.

Ela desviou o olhar. Suas orelhas lupinas estavam baixas, ao passo que sua ostentosa cauda longa e peluda pendia enrodilhada, despojada de todo orgulho, ao lado de seu corpo aparentemente frágil de menina humanoide.

Quando Karl se levantou, as hipersensíveis orelhas e cauda de Horo se mexeram levemente para acusar a aproximação repentina do humano. Sem encará-lo e sem falar nada, ela estendeu-lhe uma mão trêmula. Karl pegou-lhe a mão delicada e sentou-se ao lado da garota-loba. Em seguida, ele puxou-a para junto de si e, ainda segurando sua mão, colocou o outro braço no ombro dela gentilmente.

— Os seus olhos ainda estão inchados, minha meiga senhorita - disse Karl em tom suave. - Que tal me contar o que te aflige? Não fique escondendo as coisas. Não é do seu feitio.

E quão carinhosamente acariciou os fartos cabelos ruivo-acastanhados de Horo, que, soluçando, agarrou a camisa branca de Karl com a mão tremente.

— Minha raça... Podemos viver por séculos - Horo falou. - Por isso... por isso eu saí em uma jornada. Eu acreditei... eu acreditei que os reencontraria novamente. Yue, Inti, Paro e Myuri... Mas agora eu sei... Todos se foram, não há ninguém. Não há mais ninguém esperando por mim em casa... Eu não tenho mais um lar para onde retornar...

"Esta é a segunda vez que ela discorre sobre isso", pensou Karl, enquanto lhe acariciava a cabeça suavemente. - É apenas uma velha história que ouvi em uma pousada no norte. Muitas lendas não passam de mitos mal contados, fatos distorcidos pela imaginação popular, licença poética dos contadores, de geração em geração, até ficarem irreconhecíveis.

— Tu és realmente um menino atilado - disse Horo. - Mas como tu próprio admitiste, toda lenda contém um pouco de verdade e de mentira. Eu quero saber, eu necessito saber. Compreendes?

— Compreendo. Se você quiser, eu vou levá-la para Yoitsu. Mas, o que você fará depois que chegarmos lá?

Horo deitou a cabeça no peito de Karl, que continuou a acarinhá-la. - Não sei, de fato não sei... Mas eu estou tão assustada. E se a minha casa do Norte em toda sua pureza fria realmente foi-se, para todo o sempre? E se eu sou tudo o que resta da minha linhagem? - Lágrimas escorriam livremente de seus belos olhos vermelhos. - Eu estou farta, farta de estar sozinha... é cruel demais... Dói demais... estar sozinha...

Karl beijou o topo da cabeça de Horo. - Eu estou aqui, não estou? Nesse caso, vamos começar uma nova linhagem. Por que não? Existem muitas histórias de "deuses" pagãos e seres humanos formando pares. Se o seu lar se foi, eu construirei pra você um novo lar. Se a sua estirpe se foi, nós começaremos uma nova estirpe juntos.

Ela mirou-o com os olhos arregalados de surpresa e suas orelhas atentas. - Tu... Por que o fazes? Eu não pertenço à tua espécie, se bem que tenha, agora, a forma de uma mulher humana. Por que és tão terrivelmente gentil comigo?

Ele passou as pontas dos dedos nas bochechas dela. - Horo, eu preciso te contar. - Respirou fundo. - Eu senti isso desde a primeira vez que te vi. Eu te amo!

Ato contínuo, ele abaixou a cabeça e roçou de leve seu nariz no dela, ao modo dos lobos (algo análogo ao beijo dos humanos, segundo insinuações da própria Horo).

Houve um repentino silêncio. As bochechas de Horo estavam coradas de um vermelho tão vivo, tão rubro que nem um par de maçãs polacas. Karl a soltou e ela se sentou ereta na cama, ainda fungando, o nariz entupido e os olhos um pouco inchados.

— Isso é tão vergonhoso - disse Horo, com a voz baixa e calma. - Por duas vezes eu já chorei perante ti, desde a noite em que nos conhecemos. Já se vão várias centenas de anos desde a última vez em que assumi a forma humana. Minhas emoções estão fragilizadas. Eu sou Horo, uma Loba tão orgulhosa quanto sábia, eis o que sou. Mas, quando estou nesta forma, eu me torno apenas um esmaecido reflexo do que sou... como se esta Sábia Loba nada mais fosse do que uma pobre e fraca ovelha a ser protegida das garras dos predadores.

(Sua fala tendia a soar um tanto ou quanto arcaica a ouvidos mais modernos, mas Karl gostava dela.)

— Você não tem do que se envergonhar - Karl retrucou, suavemente. - Eu entendo seus sentimentos. Mercadores viajantes também choram de solidão de vez em quando, sabe. Solidão pra mim era um tipo de sentimento corriqueiro antes de você entrar na minha vida, a tal ponto que às vezes eu queria que o cavalo que puxa a carroça pudesse falar; e ocasionalmente, eu fazia de conta que ele falava comigo. Então, você apareceu e tudo começou a mudar... pra melhor, melhor e melhor.

Horo soltou uma risada melódica. Naquele instante, voltara a ser a bela e engraçadinha menina-loba que Karl conhecera.

— Seu rostinho tão lindo está todo molhado. Espere um pouco - disse Karl, que se levantou e pegou de cima da mesa o papel no qual tinha desenhado sua futura loja. Ele o entregou a Horo. - Tome - disse - , os desenhos e os números sobre a folha estão secos, então você pode usá-la para assoar o nariz.

A moça lupina fitou Karl com os olhos arregalados. - Mas... isso é... esta é a planta da tua loja!

Tsc! Eu iria jogar fora de qualquer jeito - replicou o comerciante com um sorriso caloroso e natural. - Além disso, eu só estava fantasiando, já que o acordo de negócio nem se concretizou ainda. Existe um limite para o otimismo, como costumava dizer um colega meu da guilda mercantil. Por favor, insisto.

Horo sorriu polidamente e pegou o papel, assoando o nariz com força. Depois enxugou os olhos (suas longas pestanas úmidas brilhavam), suspirou e respirou fundo.

— Ah... obrigada... eu me sinto bem melhor agora - disse ela. - Foi a primeira vez em muitos anos que alguém foi tão gentil e sincero comigo. Acho que tenho uma dívida a saldar contigo, meu jovem senhor.

— Sabe, Horo - disse Karl, enquanto passava os finos dedos morenos pelos cabelos castanho-ruivos dela - você tem um cabelo lindo, longo e sedoso que poucas mulheres humanas da nobreza ou da burguesia podem igualar. Se você escondesse as orelhas com um véu ao invés de um manto pesado e usasse vestes finas, em vez das roupas ásperas de um comerciante viajante, ficaria igual a uma doncella dos poemas cantados pelos trovadores. Não sei se já te contei, mas as mulheres que mais me atraem são aquelas com cabelo liso e comprido, quase batendo na cintura, e olhos amendoados.

— Tu aprecias o meu cabelo? - ela perguntou com indiferença.

— Você nem o penteia. Mas eu vou te comprar um pente para ele.

— Meu cabelo não é importante, minha cauda sim. Um pente seria bom, para minha cauda. Um de dentes finos, se possível.

— Pois que seja, então.

— Tu o comprarás?

— Eu vou te comprar dois pentes. Um para a sua preciosa cauda e outro para o seu cabelo bonito e adorável. Minha linda senhorita!

— Oh, meu jovem senhor, és uma pessoa muito generosa! - disse Horo afetada, mas de modo brincalhão, sorrindo amplamente para exibir os caninos afiados e brancos.

— E o seu sorriso cortante é um charme, Fräulein Horo.

Hah-hah. És um rapaz encantador, jovem Dharz.

"Parece que Horo voltou a ser ela mesma", ponderou Karl. Aliviado em todo caso, que não tivesse sido repreendido por declarar o seu amor por ela, o jovem humano resolveu não se conter e a abraçou de novo, delicadamente.

— Ei, tu me amas de verdade? - Horo perguntou com uma voz tímida e provocante ao mesmo tempo.

— Sim, eu amo - respondeu Karl, lacônico. - Suas orelhas privilegiadas podem atestar que não estou mentindo.

— Um macho competente diria que não ama ninguém ou que não está apaixonado por ninguém, mesmo se tal for mentira.

— Me perdoe por não ser um macho competente, minha Flor de Neve do Norte, mas tão somente um tolo sentimental.

Ela envolveu seus braços em torno dele em um abraço apertado (que nem uma píton aprisionando sua caça), e disse:

— Ouça-me, tu. Eu sou Horo, a Loba Sábia de Yoitsu. Eu sou uma fêmea alfa pela lei dos lobos. Queres mesmo ser meu par? Tens certeza? Ou não, preferes tomar uma fêmea dócil e submissa como uma ovelha indefesa? Uma que seja da tua própria espécie?

— De jeito nenhum. Você, Sábia Loba Horo, é a coisa mais preciosa do mundo para mim. É uma pérola de alto preço. E não há nada, nada mesmo, que eu não faça para ficar com você.

— Uma "pérola de alto preço"? O que vem a ser isso?

— Uma parábola da Bíblia sobre um homem, um mercador, que encontrou uma pérola de alto preço e que vendeu tudo o que possuía para adquiri-la.

Karl sentia os braços de Horo apertados em volta dele. Sentia seu corpo macio.

— Se é assim que tu te sentes, e embora sejas um mero humano, eu não me importarei - disse ela, insinuante. - Entretanto, eu te pergunto...

O fogo que dançava na lareira lançava um clarão laranja-avermelhado sobre as feições de Horo, tingindo de um rico tom de mel sua tez branca, e fazendo brilhar seus cabelos castanhos numa tonalidade ruivo-acobreada.

— Tu serás gentil comigo?

— Sempre, Horo. Sempre.

Foi quando uma voz masculina fez-se ouvir pelo ciberáudio do complante de Karl, diretamente dentro do ouvido interno do jovem humano.

— Doutor Dharz. Queira por gentileza dirigir-se à sala de reuniões. Doutor Dharz, favor responder. - Era uma voz lacônica, cheia de fria polidez, que ele conhecia bem.

"Sklar... Maldito elfo de sangue verde!", Karl praguejou mentalmente. Agora que estava tão perto de conquistar seu prêmio! Apesar de cônscio de seus deveres e obrigações, ele optou por deliberadamente ignorar aquela intromissão inopinada.

Karl deixou-se ser puxado para baixo por Horo, para deitar-se ao lado dela na cama. Ele sentiu os seios dela pressionando seu peito, e seu batimento cardíaco acelerou algumas batidas. Para sua surpresa, Horo tomou seus braços e passou-os em volta das costas dela. A cauda abanou alegremente quando Karl abraçou estreitamente o corpo esguio da "deusa" em estado de seminudez.

— Diz-me outra vez, jovem Dharz. O que sou eu para ti? - perguntou ela, sua voz doce e íntima.

— Você é a pessoa mais importante do mundo para mim - respondeu Karl, com uma mão acariciando os cabelos de Horo (que agarrava sua camisa), ao passo que a outra apertava de leve a cintura da garota-loba. - Minha pérola de alto valor.

— Meu galante cavaleiro.

Ela mergulhou o rosto no peito dele, e Karl beijou-lhe os cabelos, aspirando-lhe o gostoso aroma de maçãs. Horo rosnava de alegria, orelhas apontando para frente, a cauda alta abanando rigidamente. Naquele instante atemporal, ele, Karl Dharz, dublê de comerciante itinerante, sentiu-se no sétimo céu.

"Nunca chegamos tão longe antes, nada além de flertes e provocações."

Mas a voz friamente polida de Sklar soou novamente em seus ouvidos, via microcomunicador implantado em seu crânio (no processo mastoide), o que o fez voltar a si próprio.

— Doutor Dharz, sua presença é aguardada na sala de reuniões. Responda, por obséquio?

Karl bufou mentalmente, mas dignou-se a responder (subvocalizando, sem mover os lábios) e disse mal-humorado: - Já vai, já vai!

"Esperei muito por isso", pensou o moço trigueiro, que, num gesto ousado, deixou sua mão deslizar pela curva da cintura de Horo e pelas curvas mui suaves dos quadris da menina (resistindo à tentação de agarrar a cauda), sentindo a maciez cremosa daquelas coxas longilíneas de pele alva. "Hum... você tem uma pele tão lisinha..."

Ele estava testando os limites dela, mas não sem alguma cautela, pois sabia que, mesmo carente e atirada como parecia, Horo ainda tinha aquela intrigante relação em suas mãos. O fato de não ter ainda recebido uma joelhada no baixo ventre, um soco ou uma mordida deu a Karl a certeza de não ter cruzado esses limites.

Foi quando uma nova voz - não a de Sklar, porém uma voz mais forte e peremptória, vibrante, cheia de vida - soou através de seus implantes de áudio:

— Karl, apresse-se que o tempo urge! A diversão pode ficar para depois.

Seu amigo Alxxyn tinha razão, como quase sempre. Karl suspirou, afrouxou o amplexo em torno no corpo pequeno e delicado da "rapariga loba" que se movia languidamente em seus braços. Ela desvencilhou-se dele e ficou deitada de costas na cama, os cabelos esparramados sobre os lençóis beges, rindo convulsivamente.

Tentando, como sempre, parecer zombeteira.

Ahahahaha! Que estamos nós fazendo? Foste tu que me induziste a isso! A tua língua melíflua é mais afiada do que uma espada... como os dentes de um lobo. Devo dizer que estou deliciada. - Ela sorriu maliciosa. - Por minha parte não me importaria se fosses tão ardoroso como as chamas que consomem as achas de lenha na lareira. Da próxima vez, apenas siga teus instintos sem titubear. Seja um lobo. Aprenda para o futuro.

Hum-hum. Bom, isso foi um bom ensaio pra mim, não foi? - Ele levantou-se e em seguida falou em voz alta e clara: - Computador, encerrar programa.

No mesmo instante a figura adorável da jovem mulher seminua com rabo e orelhas de lobo desapareceu, como se se volatilizasse no ar; igualmente, todo o cenário ao seu redor - as duas camas, cadeiras, mesa, a lareira com fogo que nunca se apagava, a ampla janela de madeira através da qual se filtrava a fraca luz da lua e das estrelas, as paredes de pedra cinzenta e o teto com vigas expostas de madeira - desvaneceu-se como um sonho tridimensional do qual se desperta para a realidade de frieza plastificada das paredes, piso e teto nus, de tritânio e plasteel negro com "grades" de linhas amarelas, da câmara cúbica do Holodeque 7, localizada no deque 39 da seção de engenharia da gigantesca nave estelar U.F.S. Majorum.

De pé, no meio do compartimento vazio, o moço magro e alto, de pele cor de bronze claro e basta cabeleira castanha encaracolada falou calmamente: - Computador, salvar programa Loba e Especiarias/Dharz-4.

"Até mais tarde, querida."

Satisfeito, Karl Dharz falou em seguida: - Computador, saída do holodeque.

O intrincado portal em arco que levava à saída da sala cúbica que constituía o espaço físico do holodeque e que dava acesso ao corredor, abriu-se silenciosamente. Karl, ainda vestido de caixeiro-viajante, encaminhou-se para ele, e após atravessá-lo, o portal fechou-se automaticamente sumindo nas paredes plastimetálicas.

Karl Dharz, hiperfísico solariano, membro do Birô de Investigação Científica do Departamento de Pesquisa Científica e Desenvolvimento da F.E.U., caminhou a passos largos em direção ao turboelevador que o levaria à sala de conferências, no deque 3 da seção de disco principal - para reunir-se com o Tenente-Comandante Alxxyn Lewz, o Dr. Sklar, o Comodoro Norival Lima e o Almirante Allysdair Scott.

"Pois é, ser um pesquisador embarcado na nave que é o orgulho da Frota tem suas responsabilidades", ele ponderou, com uma certa autoironia.

Seu holoprograma de "Loba e Especiarias", que criara para seu próprio uso e prazer baseando-se na homônima série de livros escrita por um obscuro autor japonês que ele lera em outra vida e outro mundo, já estava devidamente salvo, armazenado no depósito de sonhos virtuais da memória molecular do computador do holodeque - e junto com o mesmo, a pseudodeusa de língua ferina na forma de uma garota adolescente com orelhas e cauda de lobo que era a protagonista feminina daquela série de livros e por quem ele, Karl Dharz, se apaixonara (não tão) platonicamente a ponto de recriá-la para si próprio, tomando ele o lugar do protagonista masculino, o ambicioso jovem mascate e companheiro de viagem de Horo - mais tarde, companheiro de vida - pelas estradas de terra batida daquele mundo euromedieval.

"Ah, Lawrece... Seu tolo!", Karl monologava mentalmente. "Queria vê-lo fazer como eu fiz, contar para ela sobre Yoitsu na noite em que a descobriu na sua carroça... e confessar com todas as letras que a ama, apenas três ou quatro noites depois, no quarto da estalagem em Pazzio."

Foi graças à maravilha chamada holodeque que Karl pôde realizar o seu sonho de interagir com a garota humanoide com extras corporais de uma loba que ele tanto amava e que talvez não passasse de uma personagem de fantasia criada pela imaginação de um escritor da Terra pré-Federação. Usando da mais avançada combinação de ciberespaço, tecnologia holográfica e transmaterialização, o computador literalmente transportava os usuários para uma dimensão espacial relativa, que nada tinha a ver com o espaço físico do holodeque ou da holossuíte, na qual eles podiam se deslocar indefinidamente (uma aplicação do conceito de "maior por dentro do que por fora"). Enquanto o subsistema de imagem holográfica gerava um cenário ambiental super-realístico com o auxílio dos bancos de memória molecular do computador central (o máximo de requinte: imagens holográficas de altíssima resolução, em estado sólido, acompanhadas de estímulos corticais para simular sons e cheiros), o subsistema de conversão de matéria replicava objetos físicos (inclusive água e comida) a partir dos inesgotáveis suprimentos de matéria-prima da nave, providenciada pelo sistema de teleporte ponto-a-ponto. Isto permitia aos usuários criarem cenários fictícios desde florestas até cidades com casas, prédios, tudo como no mundo real - e até mesmo pessoas e outras formas de vida que seriam os personagens da aventura escolhida. Karl torceu a boca ao pensar que sua Horo, assim como o cavalo que puxava sua carroça, e todas as pessoas com as quais eles entraram em contato - aldeões, comerciantes, clérigos, taverneiros - não passavam de recriações holográficas sólidas através da implementação de feixes de campos de força, manipulados por raios tratores dirigidos por computadores de última geração. Disto resultavam personagens animados que exibiam comportamentos virtualmente idênticos aos dos seres vivos, dentro dos limites da programação do software. E ninguém podia dizer que não eram criaturas vivas, do mesmo modo que o participante numa simulação holo-virtual não seria capaz de diferenciar entre um objeto real e um simulado. (O conceito do holodeque era muito mais sofisticado do que o do ciberespaço, pois permitia que o usuário EM PESSOA, sem necessidade de luvas, capacetes indutores, holofaixas ou dermatrodos, adentrasse o metaverso virtual COM SEU PRÓPRIO CORPO FÍSICO.)

Um meio-sorriso de orgulho apareceu no rosto moreno e oval de Karl. Sua Horo não era meramente um tulpa holográfico, feito de fótons e campos de força. Ela era uma pessoa, que vivia, pensava, falava, sofria, sonhava e mostrava-se capaz de aprender com o interlocutor (por "concentração de dados", símile modo aos sistemas S.C.A.D.A.), e, assim, evoluir. O jovem hiperfísico tinha plena certeza de que sua Horo passaria galhardamente em qualquer teste de Turing. E se lograsse baixar seu programa para um holoemissor móvel (com pouco menos de 5 cm de comprimento, do tamanho de um pequeno pendrive do 1º século d.V.), que podia ser usado como um broche, ela estaria livre para ir aonde quisesse e fazer o que quisesse no universo físico.

"Se ao menos pudesse vê-la, Hasekura-san", pensou Karl Dharz, como se falasse mentalmente, através de mais de cinco séculos. "Kenrou Horo! Você a imaginou, Hasekura-san, criou-a, bela e envolvente como um sonho, e astuta como ninguém. Mas EU a tornei real, EU dei vida a ela."

Entrou no turboelevador e ordenou ao computador: - Sala de Conferências, Deque 3, Seção de disco.

Logo que as portas se fecharam e o elevador moveu-se acelerado ao comando da instrução verbal de Karl (primeiro na horizontal, depois na vertical; um painel virtual exibia a velocidade e o sentido tomados pelo carro em direção ao destino estabelecido), uma linha de pensamento começou a se formar na mente do cientista solariano: será que não haveria REALMENTE uma Sábia Loba, Horo, algures num universo paralelo? Em carne e sangue e osso? Eternamente jovem, quase imortal, linda, inteligentíssima, impulsiva, extremamente orgulhosa, geniosa, manhosa, manipuladora e egocêntrica... mas também meiga, amável e sensível? Por que não? A existência de multiversos de vários níveis, cientificamente admitida há séculos, já vinha sendo comprovada pelas missões Magellan e o avanço da exploração interuniversal. A ideia de que Horo pudesse ser uma habitante REAL de um universo fechado e paralelo ao nosso, com o qual a mente de Isuna Hasekura teria feito contato interuniversal psiquicamente, tendo daí extraído a inspiração para escrever sua série de livros Ookami to Koushinryou (ou, em inglês do 1º século d.V., Spice and Wolf), nada tinha de absurda. Karl também endossava essa ideia. (Havia precedentes, como, por exemplo, Gene Roddenberry com sua série de televisão Star Trek, que anteviu a Federação Estelar, 500 stanrevs atrás.)

Quem sabe? Talvez um certo "David Zero" tivesse razão, afinal de contas...

Fosse como fosse, Karl tinha uma profunda convicção de que iria descobrir dentro em breve.


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Notas finais do capítulo

Este Prólogo é essencialmente uma grande brincadeira, mas tem seu propósito. Primeiro, dá ao leitor uma pequena amostra das possibilidades da tecnologia do Holodeque (em particular para quem não conhece ou não é fã de "Star Trek"), bem como da mentalidade de Karl Dharz e de quão significativa para ele é Horo, essa personagem de ficção (anime/mangá/light-novel) do passado distante da Terra. Segundo, como o próprio Dharz observou, funciona como um "ensaio" para uma eventual situação que, apesar de extremamente improvável (assim pensa ele), não é impossível (se formos dar crédito à teoria dos universos paralelos coexistindo em diferentes níveis quânticos): e se algum dia ele se defrontasse com a mulher-loba dos seus sonhos? Como reagiria ele? E como reagiria ELA?
No próximo capítulo - o Capítulo 1 propriamente dito - a história começará pra valer.
OBS.: Alan Turing, matemático inglês, foi um criptólogo e pioneiro da informática na II Guerra Mundial. O teste de Turing é tipo um jogo de imitação, que funciona assim: um ser humano conversa com uma máquina (um computador) por meio de um sistema que obscurece tudo, menos o texto; se o humano for enganado por mais de 30% do tempo de modo a acreditar piamente que está conversando com outra pessoa, outro ser humano, em vez de uma máquina, então tal máquina pode ser considerada um ser pensante, inteligente.