Meus dias sombrios escrita por Clarice


Capítulo 8
Capítulo Sete


Notas iniciais do capítulo

Eu simplesmente adoro esse capítulo! Muito nostálgico.
Boa Leitura!



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Capítulo Sete

Camila chegou e eu estava assistindo televisão, absolutamente entediada. Quando a gente mantém a mente sempre na máxima capacidade, fica difícil contê-la. Fica difícil dizer a ela que pode descansar, e não precisa mais trabalhar tão exasperada. E isso fazia com que eu ficasse facilmente entediada. Era complicado achar algo que tomasse minha atenção por mais do que um minuto e meio. Quase dei graças a deus quando ouvi a campainha e os gritinhos de Camila na porta. Eu a abracei e fui correndo pegar minha mala de mão e minha mochila. Eu ainda hesitei um segundo para ir ao banheiro e beber uma água. E também para perguntar a mim mesma se não estava esquecendo de alguma coisa.

O Fabrício tinha ido só para mudar as malas de um carro ao outro, e então foi sei lá pra onde. O tempo estava ótimo, eu já conhecia o caminho, e estava com minha melhor amiga. Iria passar um tempo com pessoas que amo e não vejo faz meses. Meu marido iria ter o tempo dele, para relaxar e pensar, e se divertir. E eu ainda não conseguia entender porque não estava feliz. Quero dizer, estava, mas era tão superficial. Como se eu estivesse cobrindo um bolo horroroso e solado com um glacê lindo e cor de rosa, e alguns morangos. Era só visualmente bonito, mas...

Eu e Camila colocamos as bandas que ouvíamos em nossa adolescência o caminho todo, para entrar no clima. Eu, com o corpo descansado, quase sentia algum prazer em dirigir. Era visível nosso esforço em reclamar o mínimo possível, em fazer com que tudo fosse ótimo e nos rendesse ótimas memórias. Almoçamos num desses restaurantes de beira de estrada. Camila não gostou do lugar, achou sujo e nojento e ficou com medo de passar mal com a comida, mas não passou. E seguimos o caminho conversando sobre coisas daquela época. Tínhamos mudado tanto.

–Ouvi dizer que o Alex hoje em dia é um gato. -Ela comentou, rindo e olhando minha cara.

–Será? -Fazia minha cara de desconfiada. -Acho difícil.

–Você pode se gabar de já ter pego ele! -E ela ria.

–Faz quase vinte anos, e ele era horrível. -Ambas caímos na gargalhada com a memória. -E foi o meu primeiro beijo. Foi terrível.

–Ele se casou com uma garota que faz faculdade de medicina veterinária.

–Se deu bem... -Eu fui ficando pensativa. -Nossa, vinte anos. É muito tempo, não é?

–Estamos ficando velhas, Lu.

–Pois é... Tem tanta gente que não vemos faz tempo, né?!

–Pois é. Mas tem gente que não estou animada para rever. Acho que certas coisas ficam melhor se guardadas apenas na memória. Ou só olhando pelo facebook. Vamos ver sua mãe, o pessoal da rua e está ótimo. -Ela agora parecia quase cansada. Estávamos na estrada a quase três horas e meia, faltava pouco.

–Se está com sono, pode dormir. -Sugeri. Ela respirou fundo.

–Não dá. Não estou confortável. -Reclamou. E então foi fechando os olhos. Esfregava-os, vermelhos. Parecia uma criança. Eu a conhecia há tanto tempo. Acho que era uma das pessoas que me conhecia há mais tempo, assim, fora família. Achei aquilo tão incrível. Continuei dirigindo.

Chegamos umas quatro da tarde, mais ou menos. A cidade era pequena, minha mãe morava há uns quinze minutos do centro. De carro. Camila dormia profundamente, de boca aberta, até. Eu estava muito cansada, e com fome, e com sono. Minha mãe estava me esperando sentada na sala, eu soube porque a casa era grande e ela me atendeu muito prontamente, esfregando os olhos. Não soube se era por estar chorando emocionada ou pelo sono. Podia ser um misto das duas coisas. Eu achei muito bonito, e a abracei. Meu irmão veio correndo e o cachorro latindo atrás dele. Aquele labrador devia ter uns sete anos já. Quando o compraram eu já tinha saído de casa. Mas ele parecia animado. Talvez tomado pela alegria de meu irmão. Camila, que já tinha acordado ficou assustada, com medo do cachorro que pulava em cima dela, latindo em alegria. Meu irmão me abraçou.

Meu irmão era oito anos mais novo do que eu, tinha entrado na faculdade há um ano mais ou menos. Quando pequeno, ele era muito ligado a mim, então quando fui embora ele sentiu por muitos meses. Queria ir atrás e tudo. Minha mãe foi quem tomou conta da situação. Como ele estava lindo! Meu irmão havia puxado os olhos castanho-mel do meu avô paterno. E estava tão crescido, com aquele cabelo vivo e castanho-escuro. O corpo forte e alto. Eu tive tanto orgulho dele que não parava de abraçá-lo. Minha mãe ia trazendo Camila pra dentro de casa, brigando com o cachorro e o bicho ganindo porque não entendia o que tinha feito de errado.

Sentamos eu minha mãe e Camila no sofá da sala enquanto meu irmão ia guardando as coisas lá no segundo andar, no meu antigo quarto, provavelmente. Tinha uma diarista dando geral na casa, e minha mãe falou que mais tarde iria vir um pessoal para comer caldo e ver como eu estava mudada e bonita e bla bla bla.

–Porque o Matheus não veio? Ele não quis?

–Na verdade o Matheus tem trabalhado muito, mamãe. -Eu disse logo.

–E o Fabrício?

–Na verdade, tia. -Ia começando a Camila. -A gente preferiu vir só nós duas, sem maridos.

–Pareceria mais íntimo. -Eu completei. Minha mãe abraçou a nós duas e nos encheu de beijos.

–Eu tenho tanto orgulho de vocês. Minhas meninas. Como vai sua mãe, Camila querida? Como vai sua família? -Eu deixei as duas conversando enquanto subia para falar com o meu irmão.

Ele estava colocando a última mala de Camila lá em cima. Íamos ficar no mesmo quarto, minha mãe deu um jeito de caber duas camas. Aquele lugar era tão nostálgico. Minha mãe não tinha tirado nada da decoração. Havia pôsteres de pessoas famosas dos anos 90/00 e era tudo tão brega. Havia uns patins em cima do guarda-roupa e fotos num muralzinho, que já estavam todas desbeiçadas. Meu guarda-roupa é que estava vazio. E tão velho que se eu tentasse mudá-lo de lugar acho que se esfacelaria. Meu irmão subiu com a última mala e sentou ao meu lado. Eu fiquei olhando pra ele um tempo sem falar nada.

–O que foi? -Ele me perguntou estranhado com a situação.

–Nada... É só que, estou tão velha. -Ele riu.

–Não está nada, que isso?!

–Você ficou tão bonito depois que cresceu. Era magrelo e tinha aquele bigode estranho. -Ele riu disso também.

–Pois é, graças a deus a puberdade passou né maninha.

–E olha só, está bem mais alto do que eu! Como está a faculdade?

–Não faz tanto tempo assim desde que nos vimos pela última vez. Eu vou bem, maninha. Não é como se eu tivesse muita coisa para dizer...

–Porque escolheu engenharia? Eu poderia jurar que faria design ou algo do tipo. -Eu o estava tratando como uma criança, mas era inevitável.

–Engenharia também tem desenhos! -Ele disse rindo. -Parece que não, mas é bem apaixonante. Eu conheci e descobri que era isso o que eu queria para minha vida. -Eu segurava o rosto dele e ficava olhando, muitíssimo admirada.

–Você está estranha, como se fosse minha mãe. -Ele disse, ainda conseguia ter uma cara tão inocente da vida. -Eu e uns amigos vamos sair hoje, está a fim? -Eu demorei meio segundo pra pensar.

–Vocês não vão me achar velha demais?

–Claro que não!

–Está certo, que horas vão sair? Aposto que Camila vai preferir ficar de fofoca com a mãe. Vou ver se tenho algo pra vestir. -E fui levantando. -Estou morrendo de fome!

–A mãe fez almoço pra vocês, achando que não iriam chegar tão tarde. Bem, ainda deve estar bom.

Aquela refeição em família só não foi mais feliz porque não tinha o meu pai, que morreu quando eu e meu irmão erámos muito novos. Tinha fotos dele pela casa, e memórias faladas pela mãe, pelos vizinhos e tios. Mas a verdade é que eu não me lembro de um homem em casa. Não me lembro de ele me pegando no colo ou me ensinando a andar de bicicleta. A gente conversou de coisas que gente que não se vê há muito tempo geralmente conversa. E então mamãe começou a perguntar sobre a minha vida e eu fui muito eficaz em mentir sobre meu casamento, mentir sobre minha carreira e mentir sobre o meu futuro. Eu era bem prática quando o assunto era mentir para o bem. Quero dizer, minha mãe não precisava pousar a cabeça dela sobre os meus problemas quando fosse dormir. Já bastava meu irmão querendo sair de casa e ela ficando sozinha com esses vizinhos fofoqueiros. Minha mãe era gorda, e isso fazia parecer que ela não envelhecia. Religiosamente fazia sua hidromassagem e caminhada. E gostava de pintar panos de prato. Se sustinha e ao meu irmão com uma pensão do pai, que fora militar.

Minha mãe me olhava quase da mesma forma que eu olhava meu irmão. E pensando nisso, ele deu um jeito de fugir de Camila, das perguntas capciosas dela e estava tomando banho para sair. Achei que era hora de eu escolher o que vestir, o problema era que eu estava tão cansada, depois de comer. Era como se o peso de ter ficado horas dirigindo só chegasse até a mim naquele momento. Como uma consequência tardia. Subi e acabei dormindo com a roupa que estava, na cama sem nem me enrolar no cobertor. Acordei na mesma posição, sentindo cheirinho de café.

Desci e tinha bastante gente na mesa do café. Diz minha mãe que porque eu faltei ao jantar que ela planejou era melhor fazer um café da manhã. Vizinhos que eu não via há oito anos, e amigos de amigos que eu conhecia de vista. Aquele inferno durou umas quatro horas. E daí todos foram embora. Ao menos a impressão que tomaram de mim ficou boa, não acho que tenha dado algum furo. Acham que estou rica, casada com um homem perfeito e que em breve teremos um filho na nossa família feliz. E ah, minha empresa vai me deixar ainda mais rica, para meu filho herdar todo o patrimônio. Esse pessoal da minha cidade acha que quem vai pra capital fica rico fácil que nossa vida é tomar café em padaria na beira da praia, temos empregados até para limpar nossas bundas e que somos famosos. A grande verdade é que a capital deu um tapa bem dado na minha cara, e eu fui esperta o suficiente para entender o que eu tinha que fazer para não levar um sopapo de novo e voltar para minha cidadezinha. Por sorte eu tinha o apoio de mamãe e de Camila.

O fato era que depois do almoço eu deixei Camila em casa, peguei a bike do meu irmão e fui dar uma volta. Eu sentia tanta falta de andar de bicicleta, minha cidadezinha é bem arborizada e com ruas largas, com poucos carros ao menos no meu bairro. Se eu evitasse as ruas principais dava para dar um passeio muito divertido. Sentir aquele vento no rosto, e o calor dos músculos que querem mais velocidade não tinha preço. Era como elevar o nível de liberdade. Quando voltei para casa, uma hora mais tarde, meu irmão estava sentado na minha cama me esperando. Eu bebia a água da minha garrafinha como se fosse o grande elixir da vida. Ele perguntou se eu estava cansada e se queria sair. Eu concordei com a cabeça, ele falou que estaríamos saindo em uma hora. Fui mexer nas malas caçando o que vestir.

Prometi à Camila e a mamãe que no domingo passaríamos o dia fora juntas num passeio. E coloquei um vestido quase sem graça, preto e simples para sair com o meu irmão. Ele se vestiu todo de preto, a blusa era de uma banda que eu não conhecia. Me levou num lugar escuro, tinha uns dez amigos. Todos parecidos com os amigos de Natália. Meio estranhos, as garotas com lápis de olho forte, os garotos com cabelo grande, ou quase carecas, com barba, com óculos de grau. Eles pareciam inteligentes pelas conversas, e o bar era agitado. Devia ser o único lugar daquele tipo na cidade. Alguns amigos dele ficaram tentando me cantar. Eu apenas achava graça daquilo tudo. Não bebi o suficiente para ficar bêbada, só para ficar mais sociável. Tocava um rock empolgante no lugar, e meu irmão foi pro show e trocou de lugar com o baterista por duas ou três musicas. Eu fui pra frente do palco e fiquei gritando, os amigos dele vieram comigo, aquilo me empolgou tanto. Saber que ele era legal. Quando desceu do palco uma garota o agarrou e eles começaram a se beijar.

Fora um otário que achou que poderia me agarrar à força, foi tudo legal. Até o momento em que começaram a fumar maconha, inclusive o meu irmão. Depois do show. Ao lado de fora do bar, conversando sobre não sei o quê. Do nosso lado tinha um casal de garotas que não parava de se beijar. E quando uma viatura apareceu na esquina todo mundo entrou no bar correndo terminando aquele cigarro de maconha que todos partilhavam. Aquilo foi tão excitante e idiota. Meu irmão poderia se dar muito mal por causa daquilo, mas eu não queria ser a irmã mais velha super protetora, ele era velho o bastante para escolher por si só.

Chegamos em casa com o dia raiando. Eu estava destruída. Dormi até duas da tarde. E então tomei um remédio, um banho, comi bastante e fui sair com Camila e minha mãe. Eu coloquei um vestido branco, Camila foi floral e mamãe foi com um vestido listrado meio retrô. Eu andando com as duas fui transportada para a minha infância. A gente foi no Zoo, almoçamos num parque, e depois vimos um filme no cinema. E depois passeamos mais enquanto comíamos sorvete. Era como se eu tivesse de novo dez anos e Camila onze, e estivéssemos de maria-chiquinha, com minha mãe falando para a gente parar de correr. Eu estava plena por ter aquele momento, por ter a oportunidade de vivê-lo. Aquele fim de semana estava sendo maravilhoso. Quando chegamos em casa, eu fui dormir, pois dali a umas horas eu teria muito o que dirigir. Camila também estava cansada, foi dormir também. Antes, tivemos uma pequena conversa:

–Espero que nossos homens estejam tão bem como nós.

–Eu sei que estão.

–Sente saudade? -Perguntei risonha.

–Eu?! Ainda não. Nenhuma. -Caímos na gargalhada.

–Eu também não!

–Não tem espaço para eles aqui. -Ela terminou.

–Pois é... Eu sinto mais falta do Matheus só quando vamos dormir. Sinto falta dos braços dele em torno de mim.

–Eu e Fabrício não dormimos mais abraçados faz tanto tempo... -Tinha certa angústia em sua voz.

Antes de eu ir embora passei no quarto do meu irmão. Ele estava estudando, com aquelas lâmpadas fortes em cima das folhas naquela mesinha. Sua letra era horrível. Dei um beijo nele, ele me abraçou. Foi o melhor abraço do mundo inteiro. Eu disse "Se cuida." Ele riu e respondeu que iria cuidar. Minha mãe caiu no mais profundo pranto quando fui me despedir dela. Eu prometi que viria mais vezes, como sempre o fazia. Eu sou uma pessoa má, pensava, enquanto mentia indo para a porta. Como eu amava aquela casa, como ela fazia parte de mim e de quem eu era. Pensei. Como ela sou eu. Ou melhor, como ela demonstra quem eu era. Eu não cabia mais ali. As malas de Camila já estavam no carro, o tanque cheio e fomos dirigindo depois de jantar.

Cheguei em casa tão cansada que era como se eu tivesse corrido uma maratona depois de atravessar o mar vermelho a nado e apanhado de chicote nas costas. Caí na cama e desmaiei. Não vi Matheus, não vi gato, não vi nada. Fabrício tinha vindo buscar Camila de carro, o sorriso nos olhos dele quando a viu, e o beijo que eles se deram me fez bem. Eu mal podia acreditar que tinha de trabalhar quando levantei da cama. Matheus não estava, era claro. Mas eu não sabia dizer se ele tinha ou não dormido em casa. Não havia nenhuma bagunça de homem. Embalagem de pizza, farelo de biscoito, garrafas de cerveja, nada. Ele devia ter passado o fim de semana dele em outro lugar.

Esperava encontrá-lo quando voltasse do trabalho a noite. O ânimo para o dia me veio depois do primeiro copo de café. E então eu estava cheia de energia. Cumprimentei todo mundo, trabalhei com boa vontade. Foi tudo muito bom para mim.


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Notas finais do capítulo

Au Revoir!



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