Escarlate escrita por Nayou Hoshino


Capítulo 8
Cárcere




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— Ei! Acorde! — O homem bateu com força nas grades da cela de Luna, fazendo o som ecoar alto nos ouvidos dela.

 

A feiticeira abriu os olhos suavemente, encarando-o com certa impaciência. Tinham-na deixado trancafiada lá pelo que pareceram horas, mas tinha certeza de que não haviam se passado nem 40 minutos. Não tinha sido o suficiente para ela dormir, mal tinha fechado os olhos antes desse homem chegar já fazendo baderna.

 

— Mandaram te manter alimentada. — Ele se inclinou de leve pra tentar ver se Luna estava devidamente presa

 

Ela virou a cabeça um pouco de lado com um sorriso satisfeito e desafiador no rosto enquanto mostrava a corda para o soldado, observando-o abrir a cela com um pequeno embrulho nas mãos. Parecia a pele de algum animal pequeno, como um coelho ou um esquilo... O homem deu alguns passos e jogou o embrulho no peito de Luna, fazendo-o quicar com o impacto antes de cair no chão. Ela ergueu os olhos irritada, isso era realmente necessário? Será que seu mestre estava realmente de acordo com esse tratamento tão... pouco especial que estavam lhe dando? Da última vez que ela pisara ali, ainda era a favorita dele. Se bem que uma traição poderia muito bem ter mudado tal situação.

 

— Pode me soltar?

 

— Por que não come como a cadela que você é? — O guerreiro deu um sorriso perverso e cruzou os braços ansioso ao ver o olhar raivoso da garota a sua frente.

 

Luna encarou o amontoado de pele e carne no chão à sua frente, não daria esse gosto a ele. Conteve o impulso que seu estômago teve de roncar e recostou-se de volta à parede de pedra, sentindo a textura áspera contra seu corpo dolorido por estar há tanto tempo amarrada na mesma posição. O homem se aproximou e tocou o embrulho com a ponta da bota, levando-o um pouco mais para perto da feiticeira e pegando-a pelo topo da cabeça, emaranhou os dedos em seus fios platinados e apertou uma de suas orelhas.

 

— Deixe de ser ingrata, vamos... — disse com a voz impaciente enquanto empurrava a cabeça dela para baixo, de encontro aos restos do animal

 

Ela deu um rosnado contido enquanto balançava a cabeça com dor para tentar se livrar do aperto descuidado das mãos daquele homem, mas este se mantinha firme na sua posição. Por fim, Luna abocanhou um pouco da carne, ouvindo uma risada de escárnio juntamente com um descuido do agressor, aproveitou-se disso para erguer sua cabeça com força e velocidade, chocando-se contra o joelho do guerreiro e fazendo-o fraquejar, caindo no chão apoiado com a parte atingida. Ela deu uma risada, sentindo-se vitoriosa, mas parou no mesmo instante em que seu rosto se virou para o outro lado com a força do golpe que recebera.

O homem a empurrou contra o chão para ganhar tempo de se levantar, como se fosse necessário, uma vez que ela estava amarrada da cabeça aos pés, literalmente. Tão logo ficou de pé, chutou-a no estômago como castigo, fazendo-a se contorcer com a dor repentina.

 

— As coisas mudaram um pouco desde que saiu, Luna... — ele falou o nome da feiticeira com nojo, batendo as mãos uma na outra e botando os fios de cabelo que haviam se desalinhado para trás — Não vá achando que ainda é importante.

 

— Se não fosse... não estariam perdendo tempo me mantendo presa em uma cela. — riu, tossindo levemente ao sentir sua barriga doer com a contração da risada

— Sabe... — Ele a encarou irritado, provavelmente já de saco cheio de tanta insubordinação por parte da prisioneira. — Acho que vou fazer um esforço e tentar entender o que você tem de tão especial para ter sido a favorita do Mestre por tanto tempo.

 

Luna arregalou os olhos surpresa e incrédula, não precisou pensar para entender o que ele queria dizer com aquilo, então se esforçou para se afastar dele rolando para longe enquanto tentava ignorar a dor em seu estômago. O medo era maior. Observou o homem abrir um largo sorriso, finalmente satisfeito por ver a expressão superior da feiticeira se dissipar num olhar assustado e indefeso.

Ele avançou contra ela sem pensar duas vezes, juntando-se ao corpo esguio no chão e puxando a corda nas costas dela para fazer sua cabeça se erguer e lhe mostrar um pescoço alvo enquanto ela tossia sufocada e tentava soltar as mãos presas às costas. O soldado escorregou a outra mão pelo busto dela, fazendo-a gelar num arrepio que percorreu sua coluna, apertando seu seio com agressividade e fazendo-a soltar um gemido de dor.

 

— Você só deveria abrir essa boca para gemer e satisfazer quem pedir... — ele rosnou enquanto puxava o tecido da blusa dela para baixo, sentindo-o começar a ceder sob seus dedos

 

— Me solta, seu merda! — ela gritou enquanto tentava acertá-lo com a cabeça, mas percebendo tardiamente que ele estava fora de alcance. Sentiu sua cabeça ser empurrada com força de encontro às pedras sujas de terra que revestiam o chão, mordendo o lábio com o impacto e sentindo o gosto metálico invadir suavemente sua boca. — Seu... — resmungou com a voz mais baixa.

 

Ela sentiu-o tocar seu quadril, tentando levar a mão para o interior de sua calça enquanto o hálito quente ia direto em sua clavícula. Não podia permitir que ele a tocasse, aquilo tinha que acabar... Aceitara doar seu corpo para sua sobrevivência, mas só de imaginar experimentar o sentimento de sujeira novamente... Sentiu algo amargo em sua garganta e num impulso soltou uma pequena chama azulada de suas mãos, mesmo tendo consciência de que seu corpo estava repousado sobre elas. A chama rapidamente queimou as cordas que envolviam seus pulsos, soltando todo o esquema de nós e amarras que a mantinham semi-imobilizada, e maculou suas costas também, trazendo um ardor contrastante ao frio das pedras que vinha sentindo durante sua estadia ali.

O soldado não teve tempo de reagir, assim que se viu livre, Luna levou ambos polegares aos olhos do homem, empurrando-os com força suficiente para afastá-lo com a dor e atordoá-lo. Enquanto ouvia o rugido de dor do oponente, engatinhou para o canto mais afastado da cela, respirando de forma acelerada ao apertar o pulso direito com a mão esquerda, acariciando as marcas das cordas apertadas.

 

— Sua... ! — o homem rosnou, ainda cobrindo os olhos com as mãos

 

— Opa! Estou atrapalhando algo? — Uma nova voz ecoou pelo local, fazendo Luna se virar assustada e o soldado que a atacara apenas balançar a cabeça negativamente — Tendo problemas com a nova convidada, Fry?

 

— Se meta com os seus prisioneiros, Salovar... — Fry resmungou, levantando-se com pressa e piscando demoradamente antes de encarar a feiticeira com raiva

 

— Veja que coincidência, o Mestre transferiu a nervosinha aí pra mim. — Salovar piscou, abrindo um sorriso irônico

 

Fry apenas o encarou confuso e pensativo, antes de se levantar cansado e sair com passos firmes da cela, batendo a porta do local onde ela ficava antes de deixar Luna e Salovar a sós. A feiticeira piscou algumas vezes, aproveitando para se acalmar. Não sabia se a amizade que tinha com o soldado ainda estava de pé mesmo depois de tudo, mas só de ver um rosto conhecido seu coração já se acalmou um pouco. O homem se aproximou com um olhar pesaroso enquanto retirava um pequeno cantil da cintura, agachando-se em frente a ela, que se encolheu mais contra a parede.

 

— Ei, eu não vou te machucar, branquela... — Ele deu um sorriso gentil enquanto lhe estendia o cantitl, analisando-a com atenção

 

— …Obrigada. — ela disse simplesmente, após alguns segundos em silêncio, e aceitou o cantil, virando-o goela abaixo sedenta pelo conteúdo.

 

— Só soube da sua prisão agora, se não teria vindo vê-la antes... Ele te machucou?

 

— Ainda sei me defender...

 

A feiticeira se permitiu dar um pequeno sorriso de alivio ao ver que pelo menos Salovar ainda se preocupava com ela. Lembrou-se da primeira vez que se viram, ela ainda era uma criança, por assim dizer, sem saber nada sobre como o mundo funcionava... Não que agora fosse muito diferente, riu de si mesma. Ainda conseguia se surpreender com o que o Caos havia feito com as pessoas.

O mercenário de fios acobreados havia a acolhido sob a sua “asa”, ensinando-a tudo o que sabia sobre manejar uma espada e defendendo-a da fome sem limites de seus companheiros. A diferença de idade entre eles não passava de 20 anos. Uma vez ele chegou a confesar-lhe que ela o lembrava de sua irmã que deixara para trás em sua cidade natal quando juntara-se aos mercenários. Talvez isso tenha ajudado a criar um laço entre os dois, visto que Luna também abandonara a família e precisava ser protegida, além de ter quase a idade que a tal irmã dele teria na época.

Salovar acariciou o cabelo dela, como costumava fazer sempre que ela se sentia deprimida e arrependida de suas decisões, fazendo com que ela o encarasse triste. Ele tentara impedi-la de fugir, lhe prometera que a protegeria não importava quais fossem as consequências por desobedecerem seu mestre... Mas nada adiantara e ela seguiu adiante com seu plano suicida. Agora ela estava aqui, de volta e, desta vez, do lado errado da cela.

 

— Ah, pequena... — ele suspirou, ela pôde notar algo na voz dele. Não era rancor mas... Era algo muito parecido. Um “eu te avisei”, talvez.

 

— Acha que saio dessa? Sinceramente.

 

— Dificil dizer... Mas eu estou com você, certo? — Ele tentou animá-la esfregando a mão em seu braço direito

 

Ela conteve o impulso de rir da situação e apenas assentiu em silêncio, dando mais uma golada no cantil. Ambos sabiam que Salovar nada podia contra as ordens de seu Mestre. Mesmo que se opusesse, tinham mais cem, mil, ou mais homens prontos para resolverem o problema. Luna olhou para baixo e encarou a pele um pouco vermelha pelo toque agressivo do outro homem, arrumando sua roupa da melhor forma que conseguiu.

 

— Me ajude a sair daqui... — pediu, sem olhar para Salovar

 

— Sabe que eu não posso. Matariam nós dois... Além do quê, estão sendo bem pacientes. Sabe o que eles têm contra você.

 

Ela se calou e engoliu em seco. Quantos anos faziam? Oito? Sequer se lembrava da voz de seu pai... Mas lembrava-se bem de seu rosto e do seu olhar quando falou com ele pela última vez, quando ele ouviu as palavras que ela soltou ao vento naquela noite.

Sempre pensava se teria sido diferente caso ela simplesmente tivesse aceitado as imposições políticas de seu pai, afinal, apenas trocou a família por estranhos já que continuou a ser um mero objeto na mão dos homens que encontrava e por quem era acolhida. Nem mesmo Nabucodo escapou, ela percebera seus olhares desde o primeiro encontro. Não sabia se fazia parte da maldição de ser uma feiticeira ou se simplesmente havia sido escolhida como a azarenta do século pelos deuses cruéis, mas, desde suas primeiras lembranças, podia contar nos dedos das mãos a quantidade de homens que a trataram como igual.

Soltou um suspiro inconsciente, sentindo sua costela estalar suavemente.

 

— Onde você a guardou? — ele perguntou hesitante

 

— Dei um jeito de protegê-la de mãos erradas, não se preocupe.

 

O soldado se levantou ao ouvir a porta que levava ao corredor de celas se abrir, ouvindo a risada animada de dois outros homens que entravam distraídos enquanto arrastavam um senhor pelos braços de forma descuidada. Luna conseguia ouvir o som da pele dos joelhos dele se esfolando contra o chão de pedra e terra, o que a fez engolir em seco e olhar para Salovar em busca de ajuda, não queria ficar ali por mais tempo. Entendia porque seu mestre sempre a protegera de tudo que ocorria no submundo daquele clã, ela só via o lado “belo”, se é que havia um...

 

— Ah, veja só quem está aqui... Salovar! O mestre estava te procurando... — um dos homens soltou animado, dando um puxão forte no braço frágil do prisioneiro, que gemeu de dor.

 

— Eu... Já vou. — O único rosto amigo de Luna se afastou dela, fechando a porta de sua cela após sair.

 

Ela acompanhou atentamente os soldados que entraram na cela vazia ao lado da sua, jogando o corpo do homem que carregavam como se este fosse um simples saco de arroz. Os mercenários sempre foram grossos, brutais, mas seus limites tinham se expandido bastante desde que estivera entre eles pela última vez. Era como se estivessem sem controle... Esse devia ser mesmo o fato, graças a ela, claro, que ousou carregar consigo em sua fuga um item que havia sido o trabalho de uma vida para todos ali.

Aproveitou que os homens pareciam distraídos com o sofrimento do prisioneiro, que gemia rouco em vão pedindo para que ela o ajudasse, e observou o chão onde estava sentada com atenção, vendo o contorno das pedras se sobreporem à camada de terra e sujeira que as cobriam. Viu os pequenos vãos, quase imperceptiveis, de terra pura entre uma pedra e outra. Era sua única saída para sua escapada não ter sido em vão, então começou a cavar naquele pequeno espaço usando o dedo indicador e o médio, sentindo a sujeira entrar debaixo de suas unhas crescidas.

Criou um pequeno buraco de pouco mais de dois dedos de profundidade, puxando o colar que escondera no interior de sua peça intima. Por sorte o tal de Fry havia escolhido o outro seio para agredir, naquele momento de medo e asco ela acabou por distrair-se da magia que mantinha a pedra camuflada em seu corpo, tanto a forma quanto a energia da mesma. Jogou o colar com a pedra dentro do buraco, o cobrindo de volta com rapidez.

Os guardas não demoraram a se cansar daquilo tudo, deixando o que sobrou da vitima em paz e saindo risonhos dali. A feiticeira se inclinou um pouco para ver o estado do homem mas não ousou se aproximar muito e ver algo que não queria, em seguida se levantou e se pôs na ponta dos pés para conseguir olhar pelo pequeno vão na parede, segurando nas barras de ferro para ter mais apoio.

Os homens disperssavam-se cada um para um lugar diferente, deixando a área do lado de fora da cela dela vazia, algo que ela talvez pudesse aproveitar. Correu até a porta de grade do outro lado e a segurou fortemente, testando sua firmeza e em seguida levando sua mão esquerda até a fechadura onde soltou novamente uma pequena chama mas sem sucesso. Segurou a entrada da chave com firmeza e tentou mais uma vez, seus dedos queimavam implorando por uma trégua mas mesmo assim nada aconteceu.

Olhou pra trás e considerou pegar o colar de volta, mas seria tolice demais da sua parte usá-lo bem na cara de seus raptores. Ele era como uma droga, ou seria mais correto chamá-lo de veneno? Sempre que Luna se permitia ser usada por ele coisas ruins aconteciam. Mas no processo, ela finalmente se sentia completa e uma feiticeira de verdade, como sua mãe certamente planejara ao trazê-la para esse mundo. Infelizmente, nunca a tinha visto para que pudesse entender o porquê do mal que lhe afligia, o porquê de ter sido fadada a uma vida na corda bamba entre os dois mundos, o humano e o místico.

Sem esperanças, afastou-se da porta, sentindo algumas bolhas começarem a se formar em suas mãos. Arrastou-se até a parede da cela, recostando-se ali e tentando esvaziar sua mente. De nada adiantava fantasiar sobre como sua vida poderia ter sido se isso ou aquilo tivesse sido diferente, certo?

Seu pai sempre lhe repreendera por essa sua mania, dizia que era uma idiotice e o mundo não tinha piedade com os idiotas. Sempre duvidou sobre o afeto que ele sentia por ela, quer dizer, é assim que um pai se porta com sua filha querida? No fim, ele era só uma fagulha no rastro flamejante que sua maldição ainda deixaria ao longo da vida.


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