Escarlate escrita por Nayou Hoshino


Capítulo 6
Retorno Escarlate




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O hálito quente em seu peito causava pequenos arrepios quando se misturava ao ar frio da madrugada, o que fez com que Fataliz finalmente abrisse os olhos para encarar o pouco do céu ainda cinza sobre sua cabeça. Nunca vira estrelas tão belas quanto as da noite anterior. Ou seria isso efeito da presença da garota ao seu lado?

Ele baixou o olhar para o corpo jovem e magro coberto com sua blusa. Desde a primeira vez que a vira, ele a tinha imaginado inúmeras vezes de inúmeras formas, mas aquela realmente era a que ele mais desejara. O moreno finalmente experimentara a felicidade.

Ele tirou alguns fios acobreados do rosto da garota, observando suas feições delicadas mais uma vez, seus gemidos tímidos ainda ressoavam de leve nos ouvidos dele...

Foi quando as vozes começaram.

Sussurros cada vez mais altos dominavam sua mente, preenchendo seus pensamentos com imagens cruéis dificeis de controlar... Ele apertou a própria cabeça, fechando os olhos com força, os sussurros se tornavam ensurdecedores…

Perdeu o controle das proprias mãos, sentindo-as escorregar até aquele pescoço fino e delicado que tanto beijara na noite anterior, a garota abriu os olhos e logo seu olhar apaixonado deu lugar a outro até então desconhecido pelo moreno. Um olhar de... medo?

E então a escuridão o dominou.

 

***

 

Fataliz abriu os olhos assustado, sua respiração ligeiramente alterada. Já fazia um bom tempo que aquela memória não o pertubava e, agora que ele a bloqueara por tanto tempo, ela parecia muito mais real que o habitual... O sol o cegou momentaneamente, lembrando-o que já estava de volta ao mundo real, e ele se levantou, olhando em volta. A pilha de folhas que ele preparara para Luna na noite anterior estava vazia.

Imediatamente ele se lembrou dos cartazes de procurada. Será que eles tinham sido encontrados por caçadores de recompensa? Eles não estavam muito longe da trilha principal que levava àquela vila, poderiam tê-los visto facilmente e, com a bebedeira da noite anterior, ele não tinha certeza do tipo de resistência que a garota seria capaz de oferecer.

Como que zombando da preocupação dele, Luna caiu da árvore logo em frente carregando algumas frutas. Ela se recompôs do pouso desastrado e olhou para Fataliz com um sorriso inocente.

— Encontrei algumas frutas... Sei que você faz mais o tipo carnívoro e tal mas... — Ela o analisou com atenção, de alguma forma ele parecia aliviado em vê-la. Espera, aliviado?

Ele se recompôs rapidamente, trazendo a boa e velha expressão "vazia" à tona. Levantou-se e caminhou até a garota, fingindo estar concentrado nas frutas enquanto analisava o corpo dela em busca de qualquer ferimento ou algo do gênero, suspirou aliviado ao fim da inspeção.

— Você se recuperou rápido... — Ele pegou uma fruta meio arroxeada, levantando o olhar para encarar Luna nos olhos enquanto fazia o que parecia ser uma expressão amigável.

— Sobre isso... — Ela baixou o olhar envergonhada. A noite anterior não passava de um borrão para ela. Ela se lembrava de ter se rendido ao calor da bebida e se sentir bem, mas.... depois disso tudo ficou confuso demais para acompanhar. Lembrava-se do calor do corpo do moreno também, mas não sabia se essa parte era fruto de sua imaginação. — Eu espero que as coisas não tenham ficado, hum... estranhas... ontem à noite.

Fataliz apenas ergueu uma das mãos, não queria se lembrar do seu momento de fraqueza enquanto a consolava na noite anterior. Só com um abraço ela tinha derrubado toda aquela fachada de indiferença que ele construíra e, contrariando a voz em sua cabeça, ele só a abraçou e afagou seus cabelos em resposta. Nem a feiticeira mais experiente seria capaz de forjar uma emoção tão sincera quanto a que a garota carregava naquele olhar da noite anterior…

Não seja tão sentimental, pensou e bufou em seguida, disposto a esquecer toda e qualquer lembrança ou sensação da noite anterior. Ela era uma companheira de equipe cujos pensamentos ainda eram um mistério, e não era porque ela não parecia ser uma psicopata sanguinária ou uma bêbada incompetente que pularia a etapa da desconfiança em uma única noite.

Ele chutou um punhado de terra sobre os galhos ainda aquecidos do que antes tinha sido uma fogueira, apagando qualquer rastro que os mercenários pudessem vir a encontrar caso os procurassem por ali. Olhou para trás e viu que Luna fazia o mesmo, enterrando os restos das frutas que comera e bagunçando as folhas que tinham servido de cama na noite anterior. Quando terminaram, o local parecia praticamente intocado, o que fez com que a garota sorrisse satisfeita para o guerreiro, que não retribuiu.

— Vamos voltar ao acampamento — ele disse, seu tom de voz indicava que não era uma sugestão.

— Ao acampamento?

— Nossas armaduras e armas estão lá. Se vamos nos opôr aos mercenários é melhor estarmos preparados.

O tom dele era sério, mas Luna conseguiu perceber algo camuflado naquelas palavras. Ele estava se propondo a acompanhá-la, mesmo sabendo o perigo que os mercenários representavam. Estaria seu instinto de guerreiro, entediado dos perigos monótonos, procurando por um risco de vida real para se satisfazer ou... Talvez, só talvez, ele só quisesse acompanhá-la.

Ele a observou curioso, só então ela se deu conta de que o estava encarando e desviou o olhar, ainda confusa e surpresa com a própria conclusão.

Os dois caminharam em um silêncio ensurdecedor por entre as pedras, depois de alguns minutos já podiam ver o acampamento, o que não serviu para aliviá-los.

— Eles deixaram alguns guerreiros de guarda, sabiam que teríamos de voltar. — Fataliz dizia mais pra si mesmo, analisando atentamente cada guerreiro que encontrava. Pareciam ser dois arqueiros e um magricela que deveria ser um mensageiro.

— Nabucodo! — Luna debruçou-se sobre o braço dele, indicando o homem loiro que conversava com um dos arqueiros. Ele parecia calmo demais para uma situação como aquela, íntimo demais com os mercenários que estavam ali, mas ela guardou suas dúvidas para si.

— Ele pode estar tentando convencê-los a sair do acampamento... — o moreno supôs, como que respondendo aos pensamentos dela. Logo indicou a construção, mais especificamente a sala do primeiro andar. — Se conseguirmos entrar posso pegar algo para lidar com eles, só precisamos de uma distração.

Ele olhava para ela como se esperasse alguma coisa e ela soubesse bem o que era... E sabia, era uma feiticeira afinal. Ela olhou para as próprias mãos, só tinha que se esforçar e usar um dos seus feitiços, ao menos isso ainda conseguia fazer. Não é?

Ela suspirou, sorrindo pouco confiante e assentindo para mostrar que tinha entendido. Ela não contara a ele sobre o probleminha que vinha tendo em conjurar feitiços, não imaginava se daria certo ou não e, se desse, o que iria acontecer com ela.

— Eu cuido disso. — Ela se afastou, preparando-se para descer pelo caminho à esquerda da entrada do acampamento. Se seguisse por ali chegaria ao lado mais distante de onde Fataliz queria chegar e, como havia muitas árvores, ela podia se camuflar bem. — Só seja rápido... — gesticulou, sem emitir som algum.

Fataliz assentiu, observando-a com atenção enquanto caminhava pelo lado oposto. A pouparia se pudesse, mas lá ia ela, ficar a apenas alguns metros das pessoas que queriam-na morta a todo custo. Ele suspirou, concentrando-se em seu próprio caminho e desviando de algumas pedras. Sentia-se bagunçado por dentro desde a noite anterior... Como se algo tivesse mudado e tentasse calar aquela voz cruel e cética que sempre o guiara por todos estes anos. Era ela, ele sabia. Mas por quê?

Aproximou-se por trás do acampamento, encolhendo-se próximo de Agro e acalmando o cavalo para que este não fizesse barulho ou se agitasse, enquanto isso caçava Luna com os olhos. Por mais que procurasse com atenção, não conseguia ver aquele tufo de cabelos brancos em lugar algum nas proximidades... "Ela te deixou aí e fugiu, viu?", ele riu, nervoso com a idiotice que a voz ecoava em sua cabeça.

— Ei! Aonde está indo idiota?! — um dos homens gritou para o outro, que caminhava para fora do acampamento. — Ei! Está ouvindo?!

Luna franzia a testa, equilibrando-se em um galho da árvore mais próxima do acampamento enquanto estendia as mão em direção a um dos arqueiros. Ela recitava algo enquanto ele era envolvido por uma luz púrpura quase imperceptivel, pouco a pouco entrando num transe profundo. Um feitiço assim consumia muita energia, ainda mais para ela, mas era essencial para o que ela tinha em mente...

— Vamos... só mais um pouco... — ela murmurou consigo mesma, sentindo seus músculos se enrijecerem cada vez mais com o esforço.

O arqueiro parou de caminhar e se virou para o companheiro, puxando uma flecha que estava no suporte em suas costas e posicionando-a no arco, o que fez com que o outro tivesse a mesma reação, só que mais rápida. O arqueiro se movia lentamente, o olhar vazio e fixo em seu companheiro que gritava questionamentos e impropérios...

Ele ergueu o arco armado e puxou a corda, Luna esforçava-se mais a cada segundo... E então o som de duas flechas cortou o ar, despertando o arqueiro de seu transe enquanto a força da garota se esvaía e ela se agarrava com força ao galho para que não caísse.

— FILHO DA... — a “marionete” da feiticeira bradou confuso, tocando a flecha em seu peito enquanto fuzilava o companheiro com os olhos

Mas o outro já não ouvia, a flecha guiada por Luna o atingira em cheio bem no olho direito, atravessando seu crânio. O mensageiro correu até o homem caído, mal notando enquanto Fataliz passava por detrás dele e entrava na sala no centro do acampamento.

O arqueiro com a flecha no peito se levantou, manchando sua roupa de sangue enquanto se arrastava até o companheiro, bastaram cinco segundos para que ele se desse conta do que acabara de acontecer e olhasse em volta a procura de Luna. Ele sabia que havia sido controlado, aquele pequeno espaço em branco em sua mente era o suficiente para saber.

A garota se encolheu junto ao tronco da árvore, implorando em silêncio para que o moreno atacasse logo. Podia sentir os olhos do arqueiro próximos ao seu esconderijo e... Ela arregalou os olhos ao ver o sorriso nos lábios dele, tarde demais.

Ela se jogou do galho ao mesmo tempo que uma flecha cravava o lugar onde estivera sua perna. Totalmente visível e bem mais perto do que gostaria do acampamento, ela se levantou ainda fraca e tentou esconder-se atrás da árvore ao lado, escapando por pouco de mais uma flecha destinada a atingir suas pernas. O arqueiro se aproximava com cautela da árvore quando sentiu uma pontada em suas costelas: o cutelo arremessado por Fataliz, que caminhava com um sorriso sombrio de dentro da sala.

— MALDITO! — o arqueiro rosnou enquanto puxava o cutelo com a mão livre, banhando o braço com o próprio sangue.

— Nem me fale... — Ele riu, lançando-se contra o homem e agarrando seu pescoço com uma força sobre-humana

Ele virou o pescoço do arqueiro com força, fazendo um estalo alto ecoar por entre as árvores, logo avistou seu cutelo e o pegou firme, batendo-o firmemente contra a garganta do homem até que sua cabeça se desprendesse totalmente do corpo. Seu corpo inteiro queimava e clamava por mais, cada músculo pronto para sentir o cheiro de sangue fresco...

Ele olhou por sobre o ombro, um garoto magricela o encarava aterrorizado enquanto rastejava sentado para longe do corpo de seu companheiro, tinha que acabar com o mensageiro também.

— Tenho uma mensagem pra você... — o guerreiro disse num tom seco e frio, assim como o de seus olhos que exalavam a morte. Levantou-se e caminhou com passos firmes e pesados até sua próxima vitima, que tremia. O cutelo formava uma trilha de sangue enquanto seu cabo era apertado firme por aquelas mãos ensaguentadas. Quanto mais sangue era derramado, mais Fataliz sentia sua mente ser esvaziada pelo seu instinto caótico e primitivo, e cada poro do seu corpo transparecia seu desejo assassino. — "Se você por um acaso encontrar o meu pai, pergunte a ele se está orgulhoso" — Ele se agachou na frente do garoto, encurralando-o contra a cerca do acampamento, e sorriu, os olhos cegos pelo desejo de sangue enquanto a mão com o cutelo se erguia... — Vou poupar seu tempo e enviá-lo até o destinatário de uma vez, certo?

E num único movimento, ele abaixou a mão, arrastando o cutelo ao longo do tronco de sua vítima, que em questão de segundos já estava com parte de seus órgãos exposta.

E então as vozes cessaram, trazendo Fataliz de volta a realidade e fazendo com que sua primeira visão fosse o pavor nos olhos do que restara do garoto à sua frente. Ele ouviu passos e se virou. Luna segurava a mão enfaixada junto ao peito enquanto caminhava entre os mortos e os analisava, um misto de repulsa e piedade transbordava de seus olhos, que logo encontraram os dele.

— Não se preocupe com eles. — Ele se levantou, deixando o cutelo no chão e passando a mão "limpa" nos cabelos — Você está bem?

Ela assentiu em silêncio, a voz presa na garganta enquanto as imagens da ação dele afogavam sua mente num mar de medo. Ele parecia possuído por um demônio... Mais que isso, parecia gostar do que estava fazendo. Ela podia confiar em alguém assim?

Ela olhou em volta, procurando por Nabucodo enquanto tentava ignorar o chão tingido de sangue sob seus pés.

— Ele está na sala, pedi que ele ficasse lá para não atrapalhar o plano. — Fataliz passou a frente dela, caminhando impaciente até a entrada da sala, onde o loiro já o aguardava recostado na parede com a cabeça baixa.

— Você foi bem barulhento dessa vez... — Nabucodo bufou sem levantar o olhar.

"Dessa vez"... as palavras ecoaram como um alarme conforme Luna se esgueirava pela porta, encolhendo-se como se o próprio ar fosse feri-la. O moreno só rosnou com o comentário, puxando a espada dela do canto e estendendo-lhe pelo punho. Só então Nabucodo ergueu os olhos, parecendo surpreso em vê-la.

— Você não disse que ela estava aqui! — ele bradou, aproximando-se dela e cercando-a com um dos braços. — Você está bem?

— Não há com o que se preocupar, s-senhor... — ela pigarreou, sentindo uma pontada forte em sua mão ferida, que tinha aberto com o esforço de antes.

— Se tivesse dito que sua "princesinha" estava aqui você ia querer se exibir e ia acabar com nosso plano. Sobrevivemos bem até agora sem um herói como você. — Fataliz riu ironicamente, prendendo sua armadura em seu corpo e suspirando satisfeito quando se viu coberto por aquelas peças de ferro amassadas.

— Claro, porque se os mercenários a estão procurando e já sabem que ela passou por aqui o melhor que você faz é trazê-la de volta... — Nabucodo bufou enquanto balançava a cabeça negativamente, olhando para Luna em seguida — Sinto muito tê-la abandonado nas mãos dele.

— Não, eu...

Antes que pudesse dizer qualquer coisa ela foi arrastada para fora pelo braço do loiro que cercava seu corpo, deixando Fataliz sozinho na sala. Algo estava crescendo nela desde que tinha encontrado Nabucodo, e não era algo bom. Nem chegava perto.

— Ele fez algo? — ele lhe perguntava com a voz baixa, quase num sussurro. Ao perceber o olhar confuso dela, prosseguiu. — Ele tocou em você ou...

Mas que tipo de pergunta era aquela? Ela estava sendo caçada pelos mercenários e tudo o que ele pensou em perguntar era isso? Ela sentiu seu rosto queimar e se odiou por isso, não tinha por que corar. Ela pegou a mão dele e tirou-a de si, afastando-se uns dois passos dele.

— Não senhor... A propósito, agradeceria se o senhor também não o fizesse.

Ela se virou, encontrando aqueles olhos negros pousados secretamente nela da entrada da sala. Ao perceber o contato, ela desviou o olhar e seguiu em silêncio até o segundo andar da construção, onde tinha se habituado a passar o tempo desde que chegara.

Ignorou o calor em seu rosto e olhou o território dali de cima. Os restos dos mercenários pareciam muito menos repulsivos a esta distância.

Com um suspiro, ela se deixou cair recostada nas faixas de madeira que a cercavam, a cabeça apoiada nos joelhos enquanto sua respiração ficava mais profunda. Não sabia se podia chamar aquilo de massacre, mas certamente fora exagerado e poderia ter sido evitado caso ela aprendesse a não envolver terceiros em suas batalhas. Instintivamente, ela passou a mão sobre seu peito, mesmo sobre a blusa ela ainda podia sentir o relevo da pedra que carregava em seu pescoço. A pedra cujo caminho sempre fora e, agora Luna começava a acreditar, sempre seria manchado de sangue. Uma pedra que ela se via obrigada a proteger.

 

 


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