Escarlate escrita por Nayou Hoshino


Capítulo 4
Flecha Sutil




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Fataliz estava deitado no chão de terra batida, apesar de manter os olhos fixos no céu, que tomava tons escuros aos poucos; conseguia sentir o olhar de Luna nele. Ela já o estava encarando fazia alguns bons minutos, que tipos de pensamentos percorriam sua mente?

— Você está começando a me irritar. — Ele bufou, piscando demoradamente sem desviar os olhos do céu

— Que bom saber que o sentimento é mútuo. — Ela sorriu irônicamente, recusando-se a desviar o olhar. O carinho com que ele guardava aquele objeto não condizia em nada com sua postura dura e selvagem, não encaixava no perfil que ela tinha conseguido traçar dele.

Quando ele finalmente a encarou de volta, ela olhou bem dentro daqueles olhos negros que pareciam sem fim. Eram tão profundos quanto um abismo, talvez mais, e a seduziam a ir cada vez mais fundo na busca pela verdade que escondiam. Atiçavam sua curiosidade natural...

Ele ergueu uma das sobrancelhas e ela desviou o olhar, notando que já estava nesse pequeno jogo por tempo demais. O silêncio se manteve por mais alguns longos minutos, apenas o trepidar das chamas se manifestava contra os sons da natureza em volta deles; até que Fataliz se sentou. O olhar pesado nas chamas, se sentindo cada vez mais incomodado com a presença da garota, foi quando notou o movimento frenético no topo da cabeça dela. Notou que as duas orelhas felpudas moviam-se rapidamente, sequer prestara muita atenção nelas até agora. Mas a forma como se moviam e o olhar atento de Luna, que parecia estar procurando algo ao redor, o estava preocupando, algo estava errado.

— Luna? — ele chamou, não tendo tempo de reagir quando sentiu o corpo dela sobre o seu.

Ela havia simplesmente pulado de onde estava direto para cima dele, fazendo com que caísse de costas no chão. E, a alguns centímetros ao lado da cabeça dele, estava uma flecha vermelha banhada em um liquido viscoso que escorria por sua haste até o chão.

Antes que ele pudesse reagir, uma segunda flecha veio, atingindo a mão de Luna, que gemeu com um dos punhos cerrados. O olhar, antes tranquilo e provocante, agora fora tomado pela adrenalina, a mesma que fizera todos os pelos do seu corpo se eriçarem, mesmo assim não se desviava do olhar de ódio que tomou o rosto do moreno em segundos.

— Merda!

Fataliz rolou por cima dela, esquecendo-se que estava sem a armadura para usar como escudo, tinha que identificar de onde as flechas estavam vindo para poder traçar uma rota de proteção. A julgar pela cor da flecha, eram mercenários, os “reis” de PanGu, atacavam para exterminar e dominar povos e territórios. Não fazia sentido eles estarem ali, eles não se esforçavam em vão e o acampamento sequer podia ser considerado um “território”. Já seria difícil lidar com um grupo pequeno sem armas e armaduras, se fosse um grupo grande então, eles não teriam chance. Sabiam disso.

— Segure-se em mim, agora! — O moreno passou a mão por debaixo de Luna, mal dando tempo para ela obedecer à ordem antes de erguê-la.

Contorceu um pouco a boca pelo esforço exercido repentinamente no braço ferido. Mas correu sem pensar, indo pra trás da construção para dificultar a visibilidade dos intrusos e seguindo uma trilha entre as montanhas. O corpo leve, sem armas nem armadura, era rápido e ágil e conseguia se movimentar entre as pedras com facilidade. Quando se afastaram da construção, o suficiente para que ela não pudesse mais protegê-los, uma rajada de flechas choveu na direção deles, fazendo com que Fataliz tivesse que desviar do caminho algumas vezes e tropeçasse devido ao peso extra que carregava. Luna olhava por sobre o ombro dele, ainda tentando encontrar os atiradores, mas sem sucesso.

— Se abaixe! — ela gritou, apertando o ombro dele com força.

Ele a obedeceu, desviando de uma flecha que atingiria sua nuca bem a tempo, chegou a sentir o vento que ela provocara roçar-lhe o topo da cabeça. Ainda agachado, arrastou-se para trás de uma pedra um pouco maior que ele. Luna sentia a respiração pesada batendo contra o topo de sua cabeça, o peito ofegante comprimia o corpo dela contra os braços fortes que a seguravam, ela podia até sentir o liquido quente que vazava do curativo do moreno contra suas costas.

Tinha um caminho estreito e inexplorado à frente deles, não seguia pra cima como o que estavam tomando, e sim pra baixo, indo pra longe do litoral. O moreno esperou alguns minutos para ver se mais alguma flecha ia ser lançada contra eles e em seguida se levantou num único impulso, jogando Luna um pouco pra cima pra poder pegá-la melhor e não se atrapalhar no caminho. Começou então sua corrida morro abaixo.

Depois de correr por alguns minutos, ele parou e olhou para trás só para ter certeza do que já sabia, tinham se livrado dos mercenários. Ele apertava o corpo de Luna contra o seu, a tinha pego sem pensar... Culpa do seu maldito senso de equipe mais uma vez. Finalmente a encarou, ela tinha o olhar fixo e frio, como se não estivesse realmente ali e sim em outro lugar de sua mente, segurava a mão ferida com força enquanto tentava ignorar o pedaço de flecha que ainda a atravessara.

Fataliz a colocou no chão, apoiada numa pedra grande, e se sentou ao seu lado. Nenhum dos dois ousou falar nada naquele momento, só havia o silêncio absoluto por um instante.

— Deixe-me ver isso. — Ele puxou a mão dela levemente, mesmo que com movimentos bruscos, se é que isso era possível.

A flecha atravessara sua mão por completo, deixando a ponta prateada toda a mostra em sua palma e parte do cabo partido do outro lado. A mão dela estava banhada numa mistura do líquido viscoso e esverdeado e um pouco de sangue, mas o ferimento em si já não sangrava, a haste impedia totalmente a passagem do sangue, mas a mão dela estava vermelha ao redor do ferimento por conta do impacto e do tamanho da flecha.

Fataliz localizou a ponta da flecha e olhou fundo nos olhos de Luna, preparando-a. Antes que ela pudesse se pronunciar, ele separou a ponta prateada do resto da haste, o movimento fez com que o objeto se mexesse dentro da ferida, provocando uma careta. O moreno então segurou a flecha, fazendo menção em puxá-la, e no mesmo segundo sentiu a feiticeira segurar sua mão, encarando-o desconfiada. Ela já estava sentindo dor o suficiente antes de ele tocá-la, e só Deus sabia o tipo de sensações que passaram por seu corpo ao ser pega daquela forma por ele. Não gostava de ser tocada por homens, sentia asco, sempre a tocavam esperando que ela correspondesse de alguma forma sexual, mas dessa vez não era o caso. Sentira a diferença no toque e não sabia como lidar com isso… Não queria sentir o toque dele, ao menos até que conseguisse se recompor.

— Confie em mim — Ele olhava fundo nos olhos dela, o olhar negro possuía um ar diferente... Gentileza, talvez?, Luna indagou incrédula.

Se ela achava que levar uma flechada doía, isso era porque nunca tivera que retirar uma flecha do próprio corpo. Não era como um corte de espada ou uma porrada de um homem dez vezes maior que você, era algo menor, mas muito mais dolorido por atravessar seu corpo de ponta a ponta e ainda ficar ali atormentando-a. Fataliz aproveitara que ela estava concentrada e arrancara a flecha de uma só vez num puxão brusco. A garota urrou, contorcendo-se pela dor enquanto segurava a mão que era cada vez mais coberta de sangue com o tempo.

Ele a olhava, incapaz de pensar em nada mais que pudesse fazer, enquanto analisava o pedaço de madeira entre seus dedos. Se ela não tivesse o tirado do alvo inimigo ele estaria com uma flecha semelhante atravessando seu olho esquerdo direto até sair por sua nuca.

— Você está perdendo muito sangue, provavelmente acertou uma veia... — Ele se aproximou devagar, observando-a tentar estancar o ferimento com a mão boa e um pedaço de sua blusa.

— Mercenários atiram para matar, independente de onde acertam — rosnou, a dor a enlouquecendo...

— Não sabemos que tipo de substância tinha na flecha, temos que ir até a cidade mais próxima e...

Ele foi interrompido por uma luz verde que saía da mão de Luna e ia direto até o ferimento profundo. Ele não via nenhuma diferença na ferida, mas a expressão no rosto dela parecia ser de quem estava fazendo um enorme esforço, o que não fazia sentido já que ela era uma feiticeira. Magia era mais simples do que respirar para elas… Não era?

A feiticeira limpava o ferimento das toxinas que a flecha deixara sob o olhar atento do moreno, não gostava da forma que as pessoas a julgavam quando fazia coisas do gênero. Muito menos quando achavam que ela era como as feiticeiras das lendas e dos livros, que tinham inúmeros poderes e habilidades… As invejava por um lado, por serem tão… completas. Algo que ela nunca foi por não ter sido gerada sob condições favoráveis a isso. Mordeu o lábio, controlando-se.

— Por que me ajudou?... — ela sussurou, finalmente a dor parecia estar passando. A magia surtindo efeito aos poucos...

Os olhos negros do moreno a encararam surpresos, de todas as perguntas que ela poderia ter feito... esta realmente era a que ele menos queria ouvir. Ele ignorou seu instinto de guerreiro que gritava para deixá-la morrer e se salvar e ouviu seu instinto de soldado por um segundo e foi o que bastou, quando voltou a si já estavam refugiados entre as rochas.

— Ainda dá tempo de te levar de volta se quiser que eles terminem o trabalho. — Ele apontou por sobre o ombro para a direção de onde tinham vindo.

Aquele par de olhos azuis, que já estava se tornando familiar demais pro seu gosto, o analisava com atenção. Procuravam a verdade por trás daquelas palavras cruéis que vinha ouvindo desde que chegara. Quem era o Fataliz que se escondia sob aquela máscara perversa?

Nenhuma palavra foi dita ou trocada nas horas que se seguiram, os dois apenas se levantaram e, num acordo silencioso, decidiram seguir para a cidade mais próxima, onde poderiam tratar devidamente dos seus ferimentos e parar um pouco para pensar no que acontecera. No porquê de os terem atacado repentinamente e em um período tão tranquilo...

"Deixe-a aqui, ela vai saber encontrar o caminho de onde veio..." A voz não se calava nem por um minuto, dando sugestões para Fataliz despistar Luna a todo momento. Mas ele sabia que o laço havia sido criado. Mesmo que ainda fosse fraco e instável, ele estava lá, ela já estava sendo vítima da sua maldição...

— Espere aqui. — Ele contava as luzes ainda distantes; uma, duas, três… Quatro luzes à vista. Era uma vila.

— Eu vou com você… — Ela segurou o braço dele, fazendo com que se virasse.

— Espere. Aqui — ele disse sério, a voz firme fazendo com que Luna o soltasse e desse um passo atrás, sem tirar os olhos dele.

Ele caminhou em passos firmes até a entrada da vila, se sentindo cansado com os próprios pensamentos que não se calavam. Por que ela tinha que aparecer? Por que Nabucodo tinha que ser um comedor tarado e convidá-la para o grupo? Por que aquela maldição ainda o acompanhava? Apertou as têmporas, suspirando. Ela o tinha salvo afinal, não que aquilo fosse uma coisa necessariamente boa. A morte era mais que merecida para alguém como ele.

Fataliz parou na entrada da vila, observando as poucas pessoas que caminhavam despreocupadamente pela rua carregarem cestos ou animais para determinadas residências, e logo viu algo que o fez empalidecer.

Ele passou a mão pelos cabelos, encarando a figura familiar no panfleto colado na parede de madeira de uma das casas. Agora o ataque começava a fazer sentido… Mas sequer tinham se dado ao trabalho de capturar aquela aura misteriosa dos olhos da garota, aquela aura que o fazia duvidar da voz que sempre teve razão.

 


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