Escarlate escrita por Nayou Hoshino


Capítulo 10
Fuga Ilusória




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Os grandes portões se abriram ao reconhecer um “membro” de um de seus cidadãos. Moviam-se sem quebrar o silêncio. Pareciam estar sobre uma nuvem ou algo do gênero. Do outro lado, alados caminhavam e planavam despreocupadamente nos primeiros segundos... só nos primeiros segundos. Bastou o primeiro grupo de mercenários dar um passo a frente para uma chuva de flechas recair sobre eles e todos os demais. O cavalo do líder, que seguia na retaguarda, teve as patas dianteiras alvejadas e foi levado ao chão. O homem que o montava conseguiu saltar antes que o animal caísse. Se recompôs e começou a gritar ordens para os soldados que avançavam sem dó cidade a dentro. Luna já não teve a mesma sorte, suas pernas ficaram presas sob o animal que agonizava.

— Derrubem-nos! Não permitam qualquer vantagem desses pombos sobre nós! — Seu mestre prosseguiu agitado, camuflado atrás de seus soldados que ainda estavam nos cavalos.

— Ei! — ela gritou, atenta a qualquer flecha que pudesse vir em sua direção, embora não pudesse desviar de nenhuma mesmo se fosse necessário. — Não pode me deixar aqui assim! Volta aqui...

Suas pernas começavam a ficar dormentes pelo peso do animal e, como estava amarrada, não podia fazer muita coisa além de tentar escorregar por debaixo dele e se libertar. Seria um bom plano, não fossem os adornos da cela perigosamente próximos da sua pele que começavam a lhe cortar só com a menção de um movimento qualquer. Ela viu o olhar do homem pairar sobre o seu por meio segundo, como que ponderando a ideia de tirá-la dali, mas antes que pudesse suspirar aliviada ele correu para a guerra que se iniciava alguns metros à frente. Luna ficou atônita por um momento, ele realmente a largara ali pra morrer?

Cerrou os punhos, respirou fundo e, contendo um rosnado de ódio que crescia em sua garganta e quase a sufocava, jogou todo seu peso nos cotovelos e fez força. Podia escutar sua pele sendo rasgada, o calor do corte sendo coberto com o sangue que se espalhava lenta e provocativamente... Só mais um pouco, convenceu a si mesma, direcionando toda a dor para alimentar o ódio que sentia. Foi quando sentiu, a parte negra de sua mente, ela estava despertando...

— Fique onde está — ela rosnou pra si mesma, esforçando-se para manter a porta de saída da sua mente bem trancada. Podia sentí-la esmurrando as barreiras mentais tão bem construídas, seu desejo por sangue começando a pulsar em suas veias...

Desde que se permitira ser usada pelos mercenários pela primeira vez, a feiticeira nunca mais foi a mesma. Eles a usavam de cobaia para o colar que tanto haviam lutado para criar. O objeto fora forjado pelo melhor dos ferreiros e a energia que ele continha era o trabalho da vida de uma feiticeira muito poderosa. Literalmente. Os mercenários drenaram toda a energia de um clã inteiro e obrigaram a alfa a aprisioná-la no objeto, só precisavam de alguém tolo o bastante e que aceitasse toda a carga fúnebre daquilo. E lá estava Luna, a favorita do líder.

Quando se permitia ser usada pelo colar, ela podia sentir a dor e o poder a possuírem de mãos dadas, cada qual com sua missão ali. No começo ela conseguia se desvencilhar rapidamente, mas nas últimas vezes ela já estava tendo problemas para se controlar, era como se houvesse duas mulheres diferentes dentro dela, e a segunda sempre quisesse tomar o poder de seu corpo e expulsá-la. Exatamente como tentava fazer agora, mesmo sem o colar.

A dor trouxe Luna de volta para a realidade, um dos adornos cravara-se em sua carne durante sua pequena distração e começara a atingir seu músculo. Ela urrou, a dor dominando cada nervo do seu corpo. Voltou a se puxar pra fora dali por reflexo, a dor lascinante diluindo a força que lhe restara. Num último impulso desesperado, ela puxou o pouco que ainda estava preso sob o animal, observando a perna quase mutilada enquanto procurava forças para se levantar. A carne exposta era banhada com o sangue vermelho vivo que jorrava de todas as feridas e manchava o chão de terra sob seu corpo.

Levantou-se com mais um urro, erguendo o olhar podia ver alguns alados caindo com flechas em suas asas enquanto outros, num descuido, eram simplesmente puxados dos céus por homens que escalavam as casas mais estrategicamente posicionadas. Arriscara dezenas, talvez centenas, de vidas para salvar a sua... Quão justo era isso? Quão certa ela estava?

O que está feito está feito, consolou-se, mas se não saísse logo dali nada teria valido a pena...

Com a vista fraca olhou o horizonte, só tinha um lugar para o qual retornar, e forçou suas pernas a se arrastarem o mais rápido que podiam em direção a ele. Se não estivesse enganada, o acampamento ficava entre a Cidade das Feras e a Cidade dos Alados onde estavam.

Alguns cavalos passavam assustados por ela, fugindo da guerra na qual seus cavaleiros lutavam. Não eram tão diferentes dela, era um instinto compreensível proteger a si mesmo antes dos outros. Um cavalo malhado vinha apressado em sua direção, talvez estivesse assustado demais para desviar, e ela ergueu-lhe as palmas das mãos enquanto mantinha os olhos vidrados nos dele. Feiticeiras têm uma ligação especial com os animais e, dependendo do caso, todas as demais formas de vida... Ou ao menos eram para ter. Mas nada se aplicava como era esperado quando se tratava de Luna, o fato do cavalo tê-la praticamente atropelado comprovou isso.

O animal se chocou contra o lado direito do corpo dela, fazendo com que ela perdesse o equilíbrio e caísse com tudo no chão, a dor que já sentia amortecendo qualquer outra sensação que a queda pudesse trazer. Ela levantou os olhos, o cavalo parara a uns dois metros dela e a encarava curioso, talvez tivesse reconhecido o pouco de magia que habitava seu corpo.

— Vamos... — Luna se levantou com dificuldade, seu corpo tinha virado um misto de sangue e terra com esse tombo. Ela manteve as mãos erguidas enquanto se aproximava do cavalo agora um pouco menos agitado. — Que tal me ajudar, hum?

Sorriu, orgulhosa de si mesma, quando finalmente alcançou as rédeas, agradecendo a falta de adornos na cela enquanto se arrastava pra cima do animal. Sentiu um alívio considerável quando finalmente poupou suas pernas de sustentar o peso do próprio corpo. Olhou para elas por instinto, era dificil acreditar que tinham pernas "saudáveis" embaixo daquela camada de terra, sangue e feridas expostas...

Os gritos ecoavam da cidade, atraindo sua atenção. Não conseguia enxergar o líder dos mercenários, mas sabia que ele ainda estava no jogo e tão logo percebesse a mentira iria triplicar a recompensa por sua cabeça, o que lhe causou um arrepio na espinha e lhe deu coragem o suficiente para cavalgar o mais rápido que conseguia para longe dali.

 

*****

— Ei, acorde... — a voz ainda estava distante, mas pouco a pouco a puxava de volta para a realidade.

Luna tinha cavalgado apenas alguns metros quando começou a ser perseguida por um alado... Ele a atingira com uma flecha, mas a perdeu de vista quando ela pegou um atalho pela floresta. A flecha atingira em cheio sua coxa, bem em cima de uma das feridas já existentes, e, quando ela tomou coragem para arrancá-la, sentiu o calor do sangue começar a escorrer por cima da densa camada de sujeira que havia ali.

Seu corpo inteiro doía das feridas e da adrenalina, aquilo tudo junto com os hematomas que já vinha colecionando desde que a trancafiaram naquela cela exigiam demais de seu corpo, então tudo foi ficando escuro. Sua última lembrança era de despencar sobre o pescoço do cavalo, desmaiando enquanto o guiava instintivamente rumo ao lago que ficava próximo ao seu acampamento.

— Ei, está me ouvindo? — ele chamou novamente, dessa vez dando tapinhas em seu rosto.

Luna forçou-se a abrir os olhos, a visão ainda um pouco turva identificou a forma de Fataliz do seu lado direito e, pela pouca claridade do local, julgou estar no interior de uma casa ou algo do gênero. Abriu a boca para falar algo, mas sua voz permaneceu engasgada em sua garganta, esforçou-se mais um pouco e tudo o que conseguiu foi emitir um ruído incompreensível.

— Nabucodo me disse que você tinha ido para o Sul, em busca da proteção da sua raça.

— E-eu... — Sua voz rouca saiu mais falhada do que ela consideraria aceitável. — Os mercenários...

— Eles fizeram isso com você?

Luna assentiu em silêncio, ignorando o orgulho ferido e fingindo que estava bem. Bem? Ela podia estar qualquer coisa, menos bem. Cada músculo de seu corpo queimava e doía, se sentia enjoada e o gosto metálico em sua boca não facilitava qualquer tipo de recuperação. Mas era verdade que estar na presença do guerreiro a tranquilizava um pouco, por mais estranho que parecesse. Sabia que pelo menos agora tinha alguém para protegê-la.

Ouviu um estrondo e se sentou bruscamente, contendo um urro quando sua coluna estalou e seus nervos se contorceram de dor, olhando para o moreno que não movera um músculo. Ele colocou a mão em seu ombro, o toque firme, mas cauteloso lhe deu um apoio que a fez relaxar um pouco.

— Se estressar assim só vai piorar seu quadro... — Fataliz a apertou de leve, atraindo sua atenção e olhando-a nos olhos. — Vou pegar um pouco de água para você.

Ele começou a se levantar, mas foi detido pela mão de Luna, que se mantinha firme em seu braço. Bastou olhar nos olhos dela para perceber que algo estava errado, muito errado.

— O que disse? — A voz dela estava trêmula, incerta

— Que vou pegar um pouco de água.

— Antes disso… — retrucou rouca, levando a mão à garganta antes de pigarrear e continuar. —  O que Nabucodo te disse?

— Que você tinha ido para o Sul.

— Onde ele está? — Novamente a feiticeira se exaltou, olhando em volta um pouco desnorteada.

— Quer me dizer qual o problema? Não posso te ajudar se só ficar fazendo perguntas atrás de perguntas. — Ele bufou, oferecendo o ombro quando ela mencionou se levantar.

— Pouco depois de encontrá-lo no lago eu fui capturada pelos mercenários. — Uma pausa demorada fez o silêncio pesar enquanto eu me recompunha pra cobtinuar. — Ele estava estranho e fez questão de voltar ao acampamento antes de mim...

Fataliz se manteve em silêncio. Sabia que dinheiro e mulheres vinham antes de tudo para Nabucodo mas aquilo era demais, não? Entregar alguém, um dos seus, para pessoas que queriam cortar fora sua cabeça não fazia parte do código de conduta de nenhum guerreiro que tivesse feito parte da armada da qual ele tanto se orgulhara. Mas, por outro lado, talvez ela merecesse ser punida. Por isso os mercenários a queriam tanto, ela era tão cruel quanto eles...

Ele encarou o par de olhos azuis à sua frente e toda a hipótese que criara se esvaiu. A feiticeira podia ter o olhar misterioso e duro, o olhar experiente de quem já tinha visto a morte inúmeras vezes, mas se ele olhasse com mais atenção podia ver... arrependimento... e medo genuíno.

— Vou te levar até a Cidade das Feras, eles exaltam a sua raça por lá, vai estar segura. — O guerreiro suspirou, passando a mão pelos cabelos negros e finalmente desviando o olhar. — Mas é só o que posso fazer.

Luna se manteve em silêncio, a segurança que ele lhe passava chegava a ser desconfortante... O desconforto parecia ser mútuo, pois ele continuava a desviar o olhar apesar da proximidade de ambos e logo se levantou, saindo do local. Ela olhou em volta com atenção pela primeira vez, não estava em uma casa, como imaginara inicialmente, e sim em uma tenda. Na tenda de Fataliz, ela concluiu, o cheiro dele exalava de todos os lugares e chegava a deixá-la tonta.

Observou algumas mudas de roupa e partes da sua armadura, ao lado dela se encontrava um machado que tinha um aspecto pesado por conta da lâmina de aço e do punhal grosso que parecia ser feito de um chifre de minotauro. Lembrou-se de quando ele a salvara no lago dias atrás e sentiu-se estranha, como se estivesse sendo injusta ao duvidar de sua benevolência todo esse tempo. Sabia que ele era um bom homem, no fundo, mas ainda assim era um homem e devia passar pelo beneficio da dúvida antes de conquistar sua confiança. O pequeno embrulho que Luna encontrara no “abatedouro” também estava ali, certamente ainda protegia o colar que era tão precioso para o moreno. Não seria tola de tocar nele novamente, mas sua curiosidade era dificil de ser controlada...

Percebeu alguns materiais de primeiros socorros na entrada, talvez Fataliz tivesse a intenção de cuidar dela quando a levou para sua tenda… Ao invés de esperá-lo, Luna decidiu que poderia distrair-se e tratar suas feridas com aquilo sem nenhum problema. Custou-lhe mais uma bela dose de dor para se esticar até ali, mas no minuto seguinte ela já estava com tudo preparado. Olhou para suas pernas, a calça estava em retalhos e o mesmo podia se dizer da sua pele sob ela. Fez um esforço e se inclinou o bastante para colocar a cabeça para fora da tenda e verificar se o moreno estava por perto, voltando para dentro de imediato e disposta a não perder um segundo sequer.

Se livrou do que restara da peça de roupa e encarou as feridas abertas, pegou um pano e um recipiente que continha um líquido esverdeado para se limpar, parando apenas porque sua visão escureceu por um segundo,forçando-a a piscar demoradamente. Ela apenas percebeu que algo estava errado enquanto colocava o pano molhado em suas feridas e não sentia nada. Nada. E, se parar para pensar, aquele líquido era praticamente álcool puro. Era para, no mínimo, queimar como o próprio inferno quando entrasse em contato com feridas como as dela.

Luna parou, mais atenta, e percebeu que nada doía. Nenhum músculo ou qualquer outra parte. Nada.

— Você está aqui não é? — ela murmurou pra si mesma, para a outra que habitava sua mente, na verdade. Aproveitou para se levantar, atenta ao que estava a seu redor. Ainda se lembrava de como sair de dentro da prisão que era sua mente, era só focar em alguma ponta solta e ir trazendo a realidade de volta... ou algo assim.

— Para um projeto falho até que você é bem perspicaz.

A feiticeira se virou, encarando uma cópia exata de si mesma, que riu. A boca da cópia permanecia imóvel, mas sua voz ecoara claramente nos ouvidos da garota. O que ela quis dizer com "projeto falho"? Como ela ousava aparecer mesmo sem o colar para lhe ajudar a manter o controle da situação?

A cópia da feiticeira emanava uma energia sombria e cheirava a morte. Devia estar cansada de não ter mais ação, sentia falta dos banhos de sangue e das festas sobre os corpos dos derrotados que os mercenários faziam ao fim de uma batalha bem sucedida... Bastou um segundo de distração e já estava agarrando Luna pelo pescoço com um sorriso maníaco nos lábios.

— Bastava você usar o colar com vontade como nos velhos tempos e eu retomaria meu corpo... — Ela materializou uma adaga, pressionando-a contra a garganta da garota. — Mas você tinha que abandoná-lo, não tinha?!

— Este corpo é meu! — a verdadeira feiticeira rosnou, os dentes trincados enquanto a raiva dominava seu corpo.

Num reflexo instintivo, ela empurrou sua cópia, jogando-a no chão e tomando o controle ao pressionar a adaga, que pegara graças ao descuido da outra, contra sua garganta. Mas tudo o que sua cópia fez foi sorrir, dissipando-se no vento e revelando um Fataliz assustado em seu lugar. Luna notou que estava sentada sobre ele pressionando firmemente uma adaga contra sua garganta, a mesma que usara pra cortar um pedaço do pano que usou para limpar suas feridas, o olhar dele era um misto de surpresa e raiva e não demorou muito para que a empurrasse para longe.

Ela rolou, sua pele, quase totalmente exposta com exceção da blusa que ainda vestia, arranhando-se na terra batida. Tossiu enquanto tirava o cabelo do rosto, sendo interrompida pelas mãos do moreno que a seguravam firmemente, afastando-a alguns centimetros do chão. Podia sentir os olhos dele queimando os seus, certamente não gostara de ter uma lâmina tão próxima de sua garganta.

— Você tem cinco segundos. — ele rosnou, o tecido da blusa dela começando a ceder sob seus dedos... — Um.... Dois...

 


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