Totentanz escrita por LuizaDM


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Explicando o título: A Totentanz, também conhecida como Danse Macabre ou Dança Macabra, foi uma alegoria artístico-literária do final da Idade Média. Basicamente, ela expressa a idéia de que não importa a classe social, os títulos ou a importância de uma pessoa, pois, no final, a dança da morte une a todos.



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Chuva.

Chovia sem parar havia três dias.

Isso não era surpresa. Na Alemanha, chovia bastante, tanto no inverno quanto no verão. Estávamos todos famintos, imundos, encharcados e morrendo de frio. Friedrich havia pegado alguma doença, acho que uma pneumonia, mas não sabia direito. Afinal, eu não era médico. Estávamos em péssima situação, quase sendo forçados a atravessar o rio Reno. Havíamos perdido mais de um terço dos soldados da nossa divisão no dia anterior. Mas naquele dia, pelo menos por enquanto, ainda não havia nenhum sinal dos Aliados. A espera, a tensão, tudo aquilo estava me deixando louco.

Eu odiava tudo aquilo. Odiava a guerra, odiava o Führer. Eu havia entrado naquilo à força.

O dia em que aquela maldita carta chegou na minha casa estava gravado na minha memória. Lembrava bem da expressão das minhas três irmãs, todas mais novas que eu. Lembrava das lágrimas da minha mãe, e da briga que tive com minha namorada na última vez que a vi. Inferno! Aquilo não saía da minha cabeça.

Eu não estava preparado para lutar em uma guerra, e sabia disso. Eu era só um rapaz magricela e medroso de dezoito anos. Detestava violência, e passava mal ao ver sangue. Eu não iria durar muito e também sabia disso.

E eu nem sequer queria lutar. Não por um ideal em que eu não acreditava. Não concordava com o regime nazista. Ninguém sabia, claro, isso não é o tipo de coisa que alguém sai anunciando por aí. Eu não amava judeus, certo, mas não os odiava. Para mim, eles eram simplesmente pessoas, como qualquer um daqueles soldados arianos que me cercavam.

Scheiβe[1]. — Dieter murmurou ao meu lado, arrancando-me de meus pensamentos. Ele falava o palavrão o tempo todo. Aquilo me irritava um pouco, mas eu não ousaria reclamar com ele. Aquele sujeito era o mais próximo de um amigo que eu tinha naquele lugar. Se não fosse por ele, eu provavelmente já estaria morto.

Minha mente voltou a vagar. De repente, lembrei da lenda sobre Valhalla. Segundo ela, os bravos que morressem em uma guerra seriam levados até Valhalla por uma valquíria, uma bela mulher armada com um elmo e uma lança, montada em um cavalo alado. Esse lugar era uma espécie de paraíso para esses guerreiros, e havia sido criado por um deus cujo nome eu não me lembrava. Por um momento, fiquei pensando em quando minha valquíria viria, mas logo abafei o riso. Eu realmente era um imbecil. Aquilo era só uma lenda, e, mesmo se fosse verdade, eu não era nenhum bravo. Se havia alguém que merecia ir para Valhalla, era Franz, meu irmão mais velho.

Ele tinha morrido havia mais ou menos uma semana.

Graças a Deus, eu não havia visto o momento da morte dele, nem seu cadáver. O campo de batalha era grande, estávamos muito distantes um do outro. Mas... era meu irmão. Confesso que, antes da guerra, eu realmente não gostava dele. Franz era sempre o melhor em tudo. O melhor aluno, o melhor filho, o melhor irmão, o melhor amigo. Era mais simpático, mais saudável, mais extrovertido e mais forte que eu. Eu tinha inveja dele. Nós dois cultivávamos uma inimizade havia muito tempo.

Mas depois que nós dois fomos para a guerra, aquela situação mudou muito. Tudo havia ficado diferente. Não sei como nem por que, mas finalmente havíamos conseguido nos dar bem. Talvez fosse a tensão e o perigo da guerra. E Franz, que eu sempre considerei um covarde, se mostrou um homem extremamente corajoso. A batalha o excitava, apenas a notícia de que uma batalha aconteceria bastou para animá-lo. Naquele período entre o final de 1944 e o início de 1945, descobri um lado desconhecido do meu irmão. Um lado que conseguia, ao mesmo tempo, me fascinar e me assustar.

Uma mão enluvada cutucou meu ombro. Dei um salto e agarrei meu fuzil imediatamente.

— Ei, Vogel, calma! Sou eu! — Dieter riu, erguendo as mãos. Havia uma garrafa de cerveja em uma delas.

— Sinto muito. Você me assustou, Braun. — resmunguei. Não sei por que, mas tínhamos a mania de chamar um ao outro pelo sobrenome.

— Estava pensando em quê? — Ele baixou as mãos.

— Na vida...

— Péssima idéia. — ele fez um gesto vacilante com a garrafa e quase atingiu meu rosto. Dava para perceber que Dieter estava bêbado, e a garrafa ainda estava pela metade. Ele realmente não tinha muita resistência para bebida. — Se você ficar pensando na sua família, que pode morrer, essas coisas todas, vai acabar louco. Então, ouça o que eu digo. Tente não pensar muito.

Assenti. A verdade era que eu não conseguia parar de pensar. Gostaria muito, mas não conseguia. Eu não era como Franz. Estava apavorado, sabia que podia morrer a qualquer momento. De várias maneiras. Em um ataque surpresa de algum dos inimigos, em alguma batalha, até mesmo pegando a doença de Friedrich. Com frequência, lembrava da minha família em casa, só minha mãe e minhas irmãs.

Eu só conseguia tirar essas coisas da cabeça com a ajuda da bebida. Sabia que era uma péssima idéia, mas... eu simplesmente não conseguia me controlar. Já havia tentado parar várias vezes, mas nunca faltava algum outro soldado que me perguntasse se eu queria uma cerveja. E eu sempre acabava aceitando.

Os outros soldados à minha volta, que antes estavam em um relativo silêncio, começaram a conversar, rir e falar mais alto. Estavam bebendo cerveja, eu tinha quase certeza disso.

Minhas suspeitas não demoraram a se confirmar.

— Ei, Klaus! — Wolfgang, outro homem que estava ali perto e que também bebia bastante, falou um pouco alto demais. — Não vai querer uma cerveja?

— Ah, quero... — comecei, mas mudei de idéia. Eu iria tentar não beber. Só naquele dia. — Digo, não, obrigado. Hoje não.

Ele franziu a testa.

— Você está bem? Nunca vi você recusar uma bebida.

Ja, ja[2], estou bem. É só que... nada. Esqueça.

Wolfgang deu de ombros e voltou a conversar com Meinhard. Como alguém conseguia conversar com ele, eu não sabia. Meinhard era o soldado mais idiota da divisão. Ele concordava com tudo que qualquer um dissesse e amava obedecer. Enfim, era um perfeito capacho. Por causa disso, todos nós nos aproveitávamos, dando-lhe ordens e mandando-o fazer nossas tarefas.

Lutei contra um sorriso involuntário que ameaçava se formar no meu rosto. Estava um tanto orgulhoso de mim mesmo. Eu finalmente havia conseguido. Havia recusado bebida. Talvez, no dia seguinte, eu pudesse tentar outra vez. E no dia depois desse. E no outro, e no outro...

Tudo bem, talvez eu não conseguisse. Como já falei antes, eu tinha lembranças demais, coisas que eu preferia esquecer. Mas não conseguia. Não quando estava sóbrio.

Mesmo assim, decidi me agarrar àquele restinho de esperança. Não era impossível deixar de beber. E era bom ter finalmente algo de que eu pudesse me orgulhar.

Me distraí desses pensamentos ao ver o comandante Eberstark passar ali perto, com o peito estufado como o de um galo, olhando para todos os seus homens de cima para baixo. Isso não era difícil para ele, afinal, o homem devia medir uns dois metros.

Ele era o comandante da nossa divisão, e, pelo menos na minha opinião, o maior filho da mãe de toda a Wehrmacht. Era um sádico, um louco e um hipócrita. Aparentemente, detestava todos nós e já havia mandado nossa divisão em uma missão quase suicida. Fazia questão de fazer discursos sobre a pureza da raça ariana dignos de Hitler, mas não era segredo para ninguém que havia se casado com uma mulher russa.

Baixei a cabeça, fingindo que não o havia visto. O comandante detestava que algum soldado passasse muito tempo olhando para ele, e eu realmente não estava com vontade de sequer ouvir a voz daquele sujeito.

No entanto, eu não estava com sorte naquele dia.

— Vogel! — A voz áspera dele me chamou. Fiquei de pé imediatamente.

— Sim?

— Quantas vezes eu preciso dizer? É “sim, Herr Commandant[3]”. Lembre-se de que você está em um posto inferior ao meu, e deve me respeitar.

— Sim, Herr Commandant. — respondi, tentando deixar minha voz livre de qualquer tom irônico.

— Bem, chegou uma carta para você. — O comandante me estendeu um envelope, com o braço rígido.

Danke schön, Herr Commandant [4].

Ele virou as costas e saiu, sem dizer uma palavra. Voltei a me sentar e rasguei o envelope, com o coração acelerado, rezando para que estivesse tudo bem em casa.

Graças a Deus, estava. A letra era da minha mãe. Era uma carta relativamente curta, comparada às anteriores. Ela falava rapidamente sobre minhas irmãs e sobre ela mesma, e me perguntava como eu estava, se estava tudo bem e se eu achava que a guerra terminaria logo. Assim como eu, ela não se importava com a vitória ou a derrota da Alemanha, só queria que tudo aquilo acabasse. Minha mãe dizia isso na carta, o que me deixou um tanto apreensivo. Era perigoso sair dizendo coisas assim por aí, principalmente em uma carta. É fácil negar algo que você apenas disse, que não está escrito em nenhum lugar. Mas algo dito numa carta... é muito mais difícil.

A carta também falava sobre a violência dos soldados Aliados contra os civis alemães. Minha mãe reclamava que não podia sair sozinha, e não podia sequer sonhar em deixar minhas irmãs fazerem o mesmo. Elas só saíam acompanhadas por meu tio, por causa do medo de estupros e violência.

Aquilo me chocou. Eu simpatizava com os soldados Aliados, achava que eles eram melhores que nós, do Eixo. Mas não eram. Eram iguais, talvez até piores.

Pus a carta no bolso do peito assim que terminei a leitura. Meus dedos trêmulos esbarraram em um pequeno cadeado.

Eu sei, eu sei, parece estranho guardar um cadeado no bolso. No entanto, aquele tinha uma pequena história, um pouco boba na verdade. Minha irmã caçula, Elise, o havia encontrado no chão, em uma campina nos arredores da cidade em que nós morávamos. Ela guardava qualquer coisa interessante que encontrasse por aí e, naturalmente, guardou o cadeado. Quando eu recebi a carta que me convocava para o alistamento, Elise me deu o cadeado, dizendo que seria bom que eu tivesse algo para me lembrar de casa.

Era bom lembrar de casa, sim, mas ao mesmo tempo não era. Pensar que eu poderia morrer sem ver minha família de novo... não. Era melhor nem pensar nisso.

***

Pelo visto, os Aliados haviam finalmente dado o ar da graça.

A chuva tinha finalmente parado, mas a beira do rio Reno estava cheia de lama escorregadia, o que dificultaria o combate.

Estávamos carregando nossos fuzis e revólveres, limpando nossas facas, enfim, nos preparando, quando os soldados Aliados apareceram.

Me lancei ao combate com um sentimento estranho. Um mau pressentimento, pode-se dizer. Eu sentia que essa batalha seria diferente. Eu não iria me salvar como nas anteriores.

Senti que não voltaria para casa vivo.

***

No primeiro momento, não senti a bala entrar. Só senti o impacto, como se alguém tivesse me dado um soco no peito. Caí no chão, vi o sangue, e entendi.

Eu havia levado um tiro no peito.

Só depois de algum tempo senti a dor. Era insuportável, parecia que eu estava sendo queimado com um ferro em brasa. Agarrei o peito, tentando fazer a dor parar, eu não aguentava mais, a dor precisava parar, eu queria morrer logo, daria qualquer coisa para morrer de uma vez e acabar aquilo. Eu não aguentava mais, não aguentava. A dor precisava parar. Por que não parava?

No meio daquilo tudo, ainda consegui sentir o volume do cadeado no bolso. Fechei os olhos e, pela última vez, lembrei de casa.


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Notas finais do capítulo

Tradução dos termos em alemão:
[1] Scheiβe: Merda.
[2] Ja: Sim.
[3] Herr Commandant: Senhor comandante.
[4] Danke schön, Herr Commandant: Muito obrigado, senhor comandante.

Espero que tenham gostado!