'Til We Die escrita por Mrs Jones


Capítulo 34
Toth & A Igreja das Improvisações


Notas iniciais do capítulo

Hello, pessoas que ainda me acompanham! Um capítulo para alegrar nossa vida em meio ao caos. Que vergonha, depois de quase um ano... Mas, como dizem, antes tarde do que nunca!
Aproveitem a leitura!



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— Freya, quer parar de brincar com isso? – ralhei, irritada com a voz fanha do Batman de videogame.

Fazia meia hora que ela explorava as funções do laptop de brinquedo. Até aquele momento, só havíamos descoberto como digitar e enviar perguntas. Apesar das possibilidades serem limitadas, imaginei que não precisasse de muito para me comunicar com Finnian.

— Foi mal! – Freya riu amarelo, por fim largando o brinquedo – Achei divertido… 

— Ah, sem dúvida… - Regina revirou os olhos - Não há como negar, Finnian é muito engenhoso… 

— Você descobriu isso quando compartilhou a cama com ele? - provocou Freya, ao que a Regina não respondeu, se limitando a lhe mostrar a língua. 

Supondo que Jefferson tivesse acesso a todas as ações de Finnian, imaginei que aquele laptop modificado fosse mais seguro do que se tentássemos usar celulares. Confesso, apreciei o esforço criativo do jornalista em encontrar um meio de comunicação alternativo; minha única preocupação era que ele usasse isso para me rastrear. 

— Bem, suponho que é mais seguro se não levarmos essa coisa para o QG - Regina opinou, sentada ao meu lado no banco do carona - Conheço Finnian o suficiente para não confiar nele. Quem sabe o que ele colocou aí dentro? 

Não era como se estivéssemos realmente protegidos, uma vez que Finnian sabia o endereço do QG. Mas, como me explicara a Freya, o feitiço de proteção de Joanna funcionava como uma espécie de apagão: por mais que tentasse, Finnian não ia ser capaz de chegar ao prédio; era como se, de repente, alguma coisa o repelisse para longe, forçando-o a se esquecer de um quarteirão inteiro. 

No entanto, mesmo que não pudesse usá-lo para invadir nossa residência, eu não confiava que o velho laptop de Finnian fosse um simples brinquedo. 

— O que sugere? - perguntei à Regina - Não consegui pensar em um bom esconderijo. 

— Então fez bem em me chamar, eu conheço um! - ela prendeu o cinto e mandou que eu dirigisse. 

Estávamos a poucas quadras do QG. Dirigi até ali me perguntando o quanto era arriscado levar no assento traseiro algo que tinha vindo de Finnian. Por precaução, achei melhor pedir ajuda. E, bem, não era como se eu pudesse fazer tudo sozinha… 

Levou alguns minutos até que Regina me mandasse sair da avenida principal. Peguei uma viela estreita que desembocava num bairro afastado. Por ali, as construções eram envoltas por cercas e treliças, como se o local se tratasse de uma área restrita para pesquisas secretas. No fim, percebi que eram apenas fábricas abandonadas, no que antes devia ser um distrito industrial. 

— Ali! Tem um buraco na cerca, nós podemos entrar uma de cada vez - Regina apontou com o dedo. Vi um prédio de dois andares, cinza e quadrado, com um monte de pichações nas paredes. Havia um rombo na parte de baixo da cerca, grande o suficiente para que uma pessoa passasse agachada. 

Freya observava o lugar com expressão intrigada. 

— O que é esse lugar? 

— Uma antiga fábrica de sabão em barra… Ninguém vem aqui, costuma ser seguro. 

Freya e eu nos entreolhamos. Desatei o cinto e desci do carro. Regina olhou para os lados, constatando que não estávamos sendo observadas. Ela se abaixou e passou pela cerca. 

— Como exatamente você descobriu esse lugar? - questionei, oferecendo a ela um sorriso maroto. 

— Ah, bem, você sabe… quando se é jovem… Bem, não me faça perguntas! Eu não vou dizer nada… 

— Alguém pichou as paredes, tem certeza de que é seguro esconder algo aqui? 

Ela não respondeu, se limitando a esgueirar-se pela lateral da construção, onde havia um caminho estreito que levava aos fundos. Entramos por uma porta que estava apenas encostada. Ela rangueu ao se abrir para a escuridão, mas Regina já estava com o celular em riste, iluminando o ar empoeirado. 

Vi uma porção de máquinas antigas, todas cobertas de ferrugem e teias de aranha. O lugar cheirava a mofo e sabão de coco apodrecido. Entramos numa sala que devia ter pertencido ao diretor da fábrica, onde ainda havia uma escrivaninha sem cadeira e um armário de metal. 

Ninguém vem aqui - Regina reforçou, abrindo uma das portas do armário, onde apanhou uma daquelas luminárias de acampamento. Uma luz branca enfraquecida iluminou o recinto - Graham descobriu esse lugar, não me perguntem como… Nós o usávamos… bem, vocês podem imaginar… 

— Que horror! - Freya estava torcendo o nariz, ao mesmo tempo em que evitava encostar nas teias de aranha - Por que não num motel? 

— Ele gostava de locais peculiares… Ruby, veja se Finnian respondeu sua mensagem. 

Abri o laptop sobre a mesa. Perguntara a Finnian se havia como localizar Jefferson, pois eu precisava encontrá-lo pessoalmente. A resposta foi sucinta: Quando e onde? 

— Ruby, quer mesmo fazer isso? - Freya perguntou, vendo a mensagem na tela. 

— Eu preciso… 

Como uma confirmação, meu celular tocou naquele exato momento. Era Gancho. Me afastei para atender e, por seu tom de voz, notei que parecia perturbado. 

— Você está bem? 

Para falar a verdade, não muito…— ele suspirou - Encontraram o laboratório químico do meu pai... Bem, o detetive Babineaux me pareceu muito contente quando me deu a notícia, o que significa que precisamos manter cautela… 

Ele me explicou que o laboratório era a prova que esperavam, pois confirmava o envolvimento de Amos com o narcotráfico. Até onde Killian sabia, o velho andara criando inimizade: alguém dera com a língua nos dentes, denunciando seu negócio sujo. 

Bem, e tem mais… todo esse alarde em torno do meu pai se deve ao fato de ele ser o principal suspeito de um assassinato… 

Deixei escapar uma interjeição de surpresa, embora não me surpreendesse de fato. Amos já cometera assassinatos antes, conhecíamos sua índole. 

O detetive deixou escapar que está investigando o caso de um colega morto a trabalho— continuou Gancho - Alguém prestou depoimento contra o meu pai. Não sei muita coisa, mas essa história me cheira muito mal. E… bem, o detetive me prestou uma visita no meu novo local de trabalho… 

— Ele está desconfiando de algo?! 

Gancho me pareceu realmente tranquilo quando respondeu. Não acho que ele estava mentindo, mas não consegui depositar confiança em suas palavras. 

Ele está fazendo o trabalho dele. De uma coisa eu sei: ele tem faro certeiro para mentiras. Não sei até que ponto eu soei convincente, mas, você sabe, meu charme encanta as pessoas. 

Não pude evitar uma risada. Me despedi, pedindo que ele tomasse cuidado. Depois, contei às garotas o que acabara de descobrir e ambas pareceram preocupadas. 

— Bom, não é como se Gancho tivesse envolvimento na sujeira do pai dele, mas não precisamos de um detetive questionando nossas vidas falsas - Regina falou, apertando as têmporas como se a situação lhe desse dor de cabeça  - Imagine só, se a vida secreta de Killian for descoberta, a polícia pode muito bem rastrear nossa participação em “casos mal resolvidos”. 

Por mal resolvidos eu sabia o que ela queria dizer: situações de envolvimento com a polícia, nas quais Gold tivera de interceder. Como aquele nosso caso com o metamorfo, no qual David acidentalmente fora acusado de homicídio. Por melhor que fosse o trabalho de Gold como advogado, não havia dúvidas de que nosso envolvimento em atos criminosos pudesse levantar maiores suspeitas. 

— Eu sei, por que acha que ando preocupada? 

— Eu gostaria de poder ajudar sem que você precisasse se submeter a Jefferson, mas não há passe de mágica que possa mudar essa situação - Regina fez uma pausa, na qual me encarou com expressão de quem lamentava - Ruby, você vai ter de pedir esse favor ao Chapeleiro. 

Encarei a mensagem de Finnian na tela. Quando e onde? 

Digitei um endereço. Apertei enter e o Batman de pixels apareceu com o polegar em riste. 

Mensagem enviada com sucesso!—  sua voz fanha informou. 

Enfiei o laptop na gaveta vazia e empoeirada da escrivaninha. 

— Vamos para casa! Eu tenho um encontro para o qual me preparar. 

 

***

 

Era quase hora do almoço quando nós cinco entramos no carro. No caminho passamos por um drive-thru, mas eu estava sem fome. Me limitei a tomar água, apenas porque me sentia mais calorenta do que o costume, o que podia ser efeito da gestação.

Olhei na direção do carro. Zoe fez um gesto como se indicasse um relógio de pulso e eu respondi com uma mão em riste, pedindo mais cinco minutos. Já estava ali há quase meia hora sem que o Chapeleiro desse o ar de sua graça.

A ansiedade para aquele encontro me privara o sono. Agora eu me perguntava se ele não recebera a mensagem ou se escolhera fugir dela. Definitivamente, não parecia algo que Jefferson faria. Se eu bem o conhecia, ele aproveitaria toda e qualquer oportunidade de estar perto de mim. 

Corri os olhos pela praça, ouvindo a conversa das crianças e observando a presença afastada dos pais que as assistiam. Me peguei imaginando como seria levar meu bebê para passear. Sentada em um balanço, refreei a vontade de dar impulso nele: não era momento para me divertir e eu não precisava que me olhassem como se eu fosse louca. 

Por fim, o balanço ao lado foi ocupado por outro adulto. 

— Olá, Ruby!  - o homem cumprimentou tranquilamente, sem muito entusiasmo. 

Respondi sem olhar para ele, de repente notando um canteiro de margaridas ali perto. 

 - Está atrasado! Seu informante teve contratempos?

— Perdoe-me, ando ocupado… Quando ele me disse que você queria marcar encontro, confesso que não foi isso que imaginei… 

Seu tom de voz parecia cansado. Olhei para ele, impecável como sempre. Seus olhos estavam fundos, ele devia estar com olheiras, mas era provável que tivesse disfarçado a expressão abatida com maquiagem. 

Ele olhou ao redor, parecendo achar divertida a nuvem de poeira provocada pelas crianças na caixa de areia. No escorrega, uma garotinha ria satisfatoriamente ao descer deslizando em direção aos braços do pai. 

— Um parquinho de diversão - ele disse - Posso perguntar por quê? 

— Você gosta de jogar com as pessoas. Achei apropriado.

Ele riu, descontraído. 

— Você tem muito senso de humor. Bem, estou aqui... O que de tão importante você tem a me dizer? Supondo que ainda não encontrou no seu coração um sentimento genuíno pela minha pessoa.

Fechei os olhos, concentrando as minhas forças em não lhe estapear a cara. Jefferson me despertava um sentimento de raiva que eu não sabia ao certo de onde vinha. Agarrei as correntes do balanço, me forçando a abrir os olhos e encará-lo. 

— Em primeiro lugar, não vim até aqui para ouvir o quanto você me ama. Em segundo lugar, não vim desacompanhada: trouxe quatro bruxas a tiracolo e o aconselho a não abusar da minha boa vontade em lhe dar espaço para diálogo.

Ele imediatamente enrijeceu no assento, então avistou o carro de Regina do outro lado da rua. A Rê estava de óculos escuros e sorriu de modo debochado ao dar tchauzinho para Jefferson. As outras três garotas se limitaram a lançar olhares ameaçadores na direção do homem.  

— Ruby, eu jamais lhe faria algo! - disse ele, indignado - Pensei que estivéssemos de acordo com isso.

— Oh sim, claro! Não se pode condenar a minha precaução quando Gancho entreouviu ordens expressas para que Finnian me sequestrasse. Se bem lembro, essas palavras vieram diretamente da sua boca.

— O idiota entendeu errado. Não me referia a você.

Ele disse isso com a tranquilidade de quem assume ter deixado a louça suja na pia. Abri minha boca em espanto, admirando o fato de ele sequer tentar contestar o que eu dissera. 

— Mas não nega que planejassem um sequestro?!

— Nós viemos até aqui para isso? Você quer lavar a roupa suja? Nós poderíamos passar a próxima meia hora nos condenando sem que chegássemos a lugar algum.

— Eu não quero saber dos seus métodos. Estou apenas lhe avisando que não se atreva a aplicá-los em mim - falei, com um dedo em riste. Jefferson assentiu, mas seus olhos fixavam um ponto no chão - Bem, dito isso... há coisas que eu preciso saber e... acordos que precisamos fechar.

— Acordos... Eu bem ia prevendo algo do tipo... - ele soltou uma risada seca - Fique à vontade! É seu momento de fala, senhorita Lucas.

— Em primeiro lugar, quero que dispense os serviços de Finnian - comecei dizendo - Agora que eu tenho meios de acessá-lo, não seria difícil denunciar à polícia a sua infame ferramenta de perseguição. Você não é estúpido, não é? Não quer apodrecer atrás das grades...como a sua mãe…

Eu não queria usar Dorothea, mas não consegui pensar em algo que soasse tão ameaçador quanto a imagem de uma senhora em uniforme prisional. Jefferson me encarou com uma expressão dura, indecifrável. Não soube dizer se ele estava com raiva ou se eu tinha acertado seu ponto fraco 

— Eu sabia que chegaríamos a isso... O que ela andou contando?

— Bem, algumas informações ocasionais. Não vem ao caso - dei de ombros - Nós temos um acordo quanto a isto, não temos? Não quero um idiota velando meus passos com uma câmera. E o mesmo vale para suas formas sujas de stalking. Acabou. Está me ouvindo? Você me deve respeito! Quero que apague as filmagens que fez de Regina. Quero que se livre do meu... altar... o que fez em sua casa. Quero que deixe a mim e a meus amigos em paz!

Jefferson parecia realmente exausto. Ele apoiara os antebraços nas coxas e assentia brandamente, o tempo todo fixando o olhar em um ponto qualquer no chão. Eu não acreditava que ele estivesse envergonhado, ou com remorso por suas ações. Ele apenas parecia estar com a cabeça em outro lugar, como se desesperado em sair correndo para o que quer que estivesse tomando a sua atenção. 

— Está bem - ele assentiu mais uma vez, então fez uma longa pausa, na qual esperou que eu tivesse mais a acrescentar - Algo mais?

— Estou falando sério. Olhe para mim! - ele ergueu a cabeça e eu sibilei entredentes - Um passo em falso e eu o entrego à polícia.

Ele assentiu com um suspiro. Não conseguia decifrá-lo. Será que a sua reação passiva nublara a minha percepção? Esperava que ele fosse me responder com ironia, naquele ar debochado e esnobe de quem não tem nada a perder. No entanto, o modo como ele assentia demonstrando obediência era perturbador. Parecia até… parecia até que ele já estava esperando por aquilo… 

— Certo. Tudo bem. - disse ele, endireitando a postura - Tenho um direito à contestação?

Fiz que sim e ele continuou:

— Não a mantenho em vigilância para saber de seus passos... Eu a monitoro para me certificar de que está em segurança - ele observava a minha expressão. Deve ter notado que aquele argumento não me convenceu. Hesitou um pouco, antes de continuar - Jones não pode mantê-la segura... As bruxas não podem mantê-la segura.

— E você pode?! 

— Não. É por isso que tem de acreditar em mim quando eu digo que não planejo seu sequestro. Comigo não estaria segura. Com ninguém.

Ele estava falando sério. Minha intuição não precisava me dizer isso, a honestidade estava estampada na cara dele. Em vez de parecer frustrado, ele parecia… aterrorizado. 

— Segura do quê? Qual é a ameaça? Se não pode me proteger, que benefício há em me monitorar? - indaguei e Jefferson evitou meu olhar. Ele se mexeu desconfortavelmente: estava fugindo do assunto, o que não era da sua índole - Seu discurso é desconexo e contraditório.

Ele suspirou. 

— Eu não posso lhe dizer, Ruby. Sinto muito... Não há bem em saber demais do futuro...

— O que é que você acha que vai acontecer no futuro? - ele deu de ombros, o que engatilhou a minha raiva: tive vontade de socá-lo na cara, o que talvez o forçasse a reagir sem ficar na defensiva - Porra! Eu quero que abra o jogo comigo, entendeu? O seu joguinho cansa, sabia? Qualquer conversa honesta com você é impraticável!

— Eu lhe diria se pudesse. Diria. Você não quer saber... Eu carrego esse fardo sozinho.

— Você só está buscando meios de se abster da culpa. De justificar sua obsessão.

— Ruby, você não sabe...

— Sei sim! Você monitora a todos nós. Pretendia proteger a Regina também ou a ameaça que enviou a ela foi agressão gratuita?

Jefferson enviara a ela uma vídeo ameaça que terminava sugerindo que ele ia matá-la caso ela expusesse seus segredos. Ele não assinara com o próprio nome, mas era óbvio que ela atribuíra a autoria da mensagem a ele. Afinal, quem mais teria depositado câmeras na casa dela, quando os únicos que a frequentavam eram nossos amigos? 

Jefferson finalmente saiu do torpor em que se encontrava. Desatou a falar sem me dar chance de interrompê-lo,  seu tom de voz sendo um misto de fúria e frustração. 

— Não diz respeito a Regina nem mais ninguém. Eu quero falar de você! Da sua segurança. Jones ainda vai arrastá-la para um buraco sem fundo! Você diz que é impraticável dialogar comigo, mas impraticável é manter convívio com esse tipo de gente. Há razões para eu mantê-la sob o meu radar. Me preocupo com o seu bem-estar porque sei o que está por vir. Você não faz ideia, faz? Não... Porque eu estou lhe poupando...

— Eu não pedi que fizesse isso! Eu exigi sinceridade… - balancei a cabeça, irritada, pois Jefferson soara um pouco mais dramático e tresloucado do que o normal - Acho que é uma perda de tempo, honestamente.

Me ergui e fiz menção de ir em direção ao carro, mas ele agarrou a minha mão, erguendo-se ao mesmo tempo. Não foi um ato violento, ele só estava desesperado. 

— Não vá! Não vá! O que mais você tem a perguntar? A dizer? Não quero que vá! Me desculpe, está bem?

Fiz um gesto à Zoe e Regina, que estavam prestes a atravessar a rua para vir ao meu encontro. Jefferson me soltou, embora compreendesse que o gesto era para mantê-las afastadas. 

— Eu vou ceder, Ruby, para que compreenda que eu não faço por mal... Que eu a amo...

— Amar não é manter controle...

— Eu sei... Desculpe… 

Algumas pessoas olhavam para nós, como se certificando de que eu não estava sendo perturbada pelo homem. As crianças continuavam se divertindo, alheias ao fato de que falávamos muito alto. 

Jefferson me afastou do balanço, me direcionando a um banco sob a sombra de uma árvore. Me deixei levar, entendendo que ele queria se manter afastado das pessoas ao redor e, principalmente, de Zoe e Regina, que estavam paradas ao lado do carro. 

— Você está bem? - perguntei, vendo o homem assumir expressão de tristeza. Ele estava tirando o paletó, fato que me deixou desconcertada, pois eu nunca vira Jefferson perder a pose - Por que não está dando aulas? 

— Eu te disse, ando ocupado… Eu tenho… negócios que demandam a minha atenção – ele fez uma longa pausa. Me olhou como se estivesse prestes a desabar, mas então recobrou a compostura – Você não sabe como é carregar um fardo, Ruby. Estar lá e não estar aqui. Viver na sombra... se esgueirando… Tentando alertar, apenas para ser desacreditado. 

— E por que faz isso? Onde você está quando não está aqui?

— No futuro. No passado. Que importa? Nunca no presente... Meu fardo é esse... Você me julga injustamente, sem nada saber. 

— Bem, então me explique! – ele recusou com um balançar de cabeça – Você tem de contar a alguém, não é? Dividir o fardo? Sua mãe mencionou que estava se preparando para uma guerra. O que isso quer dizer? Do que você sabe?

O Chapeleiro fez uma expressão assombrada, de repente percebendo que acabara por revelar demais. Ele bem tentou disfarçar, mas seu abalo emocional afetou sua habilidade de manipulação. 

— Mamãe... Ruby, você sabe que aquela senhora não está em condições mentais de dizer algo. Ela é adoentada, não ligue para os devaneios de uma senhora insana.

Ele forçou uma risada, enquanto eu balancei a cabeça. Ouvi-lo falar assim da própria mãe me fez ter o impulso de lhe dar uma bofetada. 

— Desculpe, mas o insano aqui tem sido você! Por Deus, pare de usar circunstâncias fantasiosas como justificativa para os seus atos. Se há mesmo uma ameaça, eu quero saber do que se trata. Tenho direito às informações que detém sobre mim! 

O Chapeleiro suspirou. Não fazia o mínimo esforço em esconder sua expressão preocupada, carregada de culpa e desconforto. 

— Não posso. Viu a sua reação no hospital? É o que acontece quando eu tento ser honesto... - ele tornou a vestir o paletó, depois pescou um relógio no bolso do mesmo - Por hoje basta. Não há nada que eu possa dizer. Peça o que tiver a pedir e finalizamos.

Não me dei por satisfeita. Se eu não o pressionasse, ele escorregaria por entre meus dedos. 

— Você acredita que eu vá assassinar Amos. Por quê? O que o levou a pensar isso? 

— Ruby, não é o melhor momento para isso… 

— Como pode afirmar algo que não tem base lógica? Vamos, diga algo! Explique! 

— Para uma descrente? - ele emitiu um riso nervoso - Não. Esqueça.

Analisei sua postura. Fixava o olhar em um ponto distante, como que escondendo as camadas mais profundas de sua expressão. Havia algo o incomodando… Algo suficientemente importante para lhe causar perturbação. 

— Você definitivamente sabe de alguma coisa. Do contrário, não agiria tão amedrontado toda vez que eu toco no assunto. 

Jefferson fez um movimento involuntário, como se de repente sentisse cãibras. Ele trancou o maxilar e fez cara de quem estava apertado para ir ao banheiro. 

— O que foi? É ruim, não é? - agarrei a aba de seu paletó e ele perdeu o fôlego. O tremor em suas bochechas denunciava o quanto estava assustado - Ninguém colocaria medo num filho da puta como você se o seu traseiro e o meu não estivessem envolvidos. 

O Chapeleiro engoliu em seco, então se livrou do meu aperto, erguendo-se sem me olhar. Murmurou que precisava ir embora, mas parecia tão frágil e alarmado que eu imaginei que ele fosse tropeçar nas próprias pernas. 

Me senti vazia de culpa quando ignorei sua vulnerabilidade. Agarrei seu braço com força, embora ele tentasse escapar. 

— Você me deve honestidade! Não ouse… 

— Ruby, por favor…

Não me dei conta do quão feroz estava sendo, até ouvir um estalo em sua cartilagem. Ele não emitiu qualquer ruído de dor, mas foi o suficiente para que fizesse uma careta. Fiz com que me encarasse, forçando-o a expor seus olhos vermelhos e lacrimosos para mim. 

— JEFFERSON! 

Antes que eu o obrigasse a falar, ele já estava cuspindo as palavras. 

Eu viajei no tempo

O quê?...  

Perdi o fôlego. 

Jefferson tornou a se sentar. Enfiou as mãos no cabelos, abaixando o tronco em direção às coxas, como se estivesse prestes a se enrolar em posição fetal. Não o fez, limitando-se a respirar fora de compasso, apertando com força a própria cabeça. 

— Não me force a dizer. Não me force… 

Me senti estranhamente mal. Olhei na direção do carro, as garotas na calçada do outro lado da rua, todas catatônicas e provavelmente se perguntando o que eu fizera de tão mal para deixá-lo naquele estado. 

Me sentei em silêncio, pacientemente aguardando até que o homem se acalmasse. As outras pessoas na praça pareciam ter decidido que nós éramos uma má influência para seus filhos: sumiram em questão de segundos, largando para trás os seus lixos e pegadas na areia. 

— Jefferson? 

— Estou bem… 

Respirei fundo. Aguardei mais um instante, esperando que ele fosse se recompor. Não o fez, de modo que eu me atrevi a perguntar: 

— Como assim viajou no tempo? Isso não é possível. Se fosse... bem, muita coisa seria diferente, não é? Regina, Zoe, Mary... todas teriam mudado algo em suas vidas…

Ele assentiu, por fim erguendo a cabeça. Seu rosto juvenil e carismático estava marcado por vincos de preocupação: ele parecia um idoso de ressaca. 

— Não nesse mundo. Provavelmente não em outros. Existem leis universais, Ruby - explicou - Ninguém viaja no tempo... mas eu sim...

Ele estava falando sério, não havia como ser um delírio mental. Eu não o subestimava, ele era engenhoso. Apenas não imaginava como poderia ter realizado tal feito. 

— Como? - vinquei a testa. 

— Não posso dizer. Mas não subestimo a sua inteligência, você já sabe... Não pode contar a ninguém, ouviu? Me prometa! - ele me olhou com autoridade, como um pai que exige obediência. Fiquei tão confusa que não soube o que responder - Prometa, Ruby!

— Do que diabos…

Ele avançou na minha direção, pegando meu rosto entre suas mãos e vociferando. 

— PROMETA!

— Okay, prometo! - retruquei, desvencilhando-me de suas palmas suadas nas minhas bochechas - Quem mais sabe?

— Pessoas ruins... - ele me sussurrou. 

Olhou em volta, como que verificando se não estávamos sendo observados. As garotas haviam atravessado a rua quando perceberam que as coisas estavam saindo de controle, mas se limitaram a sentar em um banco distante, sob minha indicação. 

Jefferson continuou falando, subitamente muito calmo. Ele enxugou o rosto com um lenço, que dobrou caprichosamente e enfiou de volta no bolso.

— Você não pode sair cavando, entendeu? Uma vez que você usa o poder... não há volta... A minha cabeça... - ele apontou para o próprio crânio - ficou assim como consequência...

— Da viagem?

— E do que descobri nelas.

Arregalei os olhos. 

— Mais de uma? Passado e futuro?

Ele assentiu, sorrindo tristemente. Senti pena, mas não soube dizer de onde veio esse sentimento. Pesava como uma velha lembrança ou uma instantânea empatia que eu esquecera que era capaz de ter. 

— Eu já sabia que não estava no seu futuro - ele revelou - Bom, não de uma forma boa. Você vai ter de me aturar... nós dependemos disso no futuro, entende? 

Sem que eu precisasse questionar, as informações estavam jorrando. Jefferson parecia desesperado, ao mesmo tempo aliviado por poder me contar. 

— No futuro você escreve. Escreve num caderno. Mais de um caderno... Você me disse que começou a escrever para se lembrar das coisas boas - ele me encarou, seus olhos fixos nos meus - Você tem que escrever. Sobre isso. Sobre nós. Sobre Jones... Tudo... Entendeu? - assenti - Não agora. No futuro. Você vai se lembrar disso... num período difícil para nós dois...

— O que vai acontecer? - eu sabia que ele não me diria. Até certo ponto, não queria realmente saber. Jefferson virou o rosto e eu toquei no braço dele sem perceber - Alguém morre no futuro?... Killian?... Por favor, Jefferson...

— Não posso... não posso... é um fardo…

Jefferson estava chorando. Ele enxugou as lágrimas bruscamente, tendo ciência de que as garotas presenciavam sua fragilidade. Meus olhos marejaram sem que eu tivesse controle das minhas emoções. 

— A gente pode mudar o futuro! - me vi afirmando, segurando o braço dele como  se fosse uma velha amiga - Se você me disser, a gente muda tudo! 

O Chapeleiro sorriu para o meu gesto carinhoso, mas estava balançando a cabeça em negação. 

— Eu tentei. Parte do meu luto é saber que não há como controlar todas as coisas. O que a gente vive, escolhe a gente. Entendeu? Você vai ser feliz enquanto souber aproveitar. A gente é feliz, entendeu? - Jefferson segurou as minhas mãos com firmeza. Senti o aperto conduzindo calor pelos meus braços, mas não rejeitei o contato - Você precisa...precisa ser mais forte do que eu... Você é nosso sustento…

As lágrimas rolaram pelas minhas bochechas, indo se aninhar na curva do meu pescoço. Emiti um único sussurro:

— Grace?

— Grace vai ficar bem. A sua av... - o Chapeleiro engasgou de repente; por mais que tentasse falar, sua língua parecia enrolada - a sua... Grace vai ter o amor da sua...

— Mas que diabos?!

— Me submeti a um feitiço de língua presa. Sabia que não podia confiar em mim mesmo com as informações que detenho… - ele enxugou o rosto mais uma vez com o lenço, então espanou o paletó, recompondo a seriedade. Eu não sabia como ele conseguia recobrar o autocontrole dessa forma, mas era estranho de se ver - Isso é tudo que eu posso dizer, Ruby. Agora preciso ir, lamento… 

— Espera! Tem mais uma coisa... Você pode... pode limpar o nome de Killian? Por mim? A Polícia de Seattle o investiga pela conexão com Amos. E ele tem nomes falsos... dezenas deles... Eu tenho medo de que…

Por mais que eu soasse hesitante, não precisava de muito para convencê-lo: por mim, ele faria qualquer coisa. O Chapeleiro assentiu, já de pé. Com exceção do cabelo bagunçado, tudo em sua aparência estava no lugar. 

— Pode deixar. Amos nunca mais vai ser a ruína de ninguém. Nunca mais.

— Ele foi a sua?

— Não - ele sorriu, descontente - Eu mesmo fui. 

 E, me dando as costas, foi embora sem se despedir. 

 

*** 

 

— Ruby, nós lhe dissemos que você não devia se deixar afetar - Zoe estava dizendo - É exatamente isso o que ele quer: que sinta pena dele.

— É isso o que eles fazem… te convencem do quão infeliz é a vida, ganham a sua confiança e então espionam o seu banheiro - Regina conduziu o carro rampa abaixo, em direção ao estacionamento do shopping.  

Assenti, tentando não transparecer a minha perturbação. Mentira a elas, dizendo que Jefferson estava alterado em seu estado mental e que por isso agira de forma tresloucada. Não devia expor a sua habilidade de viajar no tempo, sendo uma informação tão perigosa. Embora as minhas amigas fossem de grande ajuda, eu não queria colocar ninguém em risco. 

— Eu estou bem - disse, forçando um sorriso - Apenas me esqueci de como ele é bom em manipulação…Ele quis me incutir culpa por algo que nós não temos, por um momento eu senti mesmo pena dele… 

— Bem, o importante é que nós o temos como um aliado no caso do Gancho. Agora sim você pode ficar despreocupada - falou Regina, e isso encerrou o assunto.

No entanto, enquanto fazíamos compras, a conversa com o Chapeleiro não saía da minha cabeça. Como era possível que um mago de meia-tigela soubesse como viajar no tempo? Talvez seus poderes não fossem assim tão inúteis… 

Mas que diabos! Em quantas camadas eu ainda teria de mergulhar para descobrir os segredos sórdidos daquele homem? 

— Ruby, você não parece bem… Eu sei o que é isso: está faminta! - Zoe praticamente me arrastou em direção a um restaurante. Ela estava um tanto irritada, pois o lanche que fizera no caminho não fora suficiente para acalmar sua fome. 

Logo estávamos fazendo uma refeição completa, com direito à sobremesa. Animadas, conversávamos sobre a recuperação de Mary. Em breve ela seria liberada e nós precisávamos terminar os últimos preparativos para sua festa de boas-vindas. Eu tinha pena de David, noite após noite no hospital; me oferecera para dormir ao lado de Mary, para que ele pudesse descansar um pouco no QG, mas Encantado se recusara a afastar-se de sua amada. 

— Ah, eu gostaria de viver um amor assim - suspirou a Regina, derramando molho rosé em sua salada - Desde que conheço o David, ele se mostra um perfeito cavalheiro. Eu quero dizer, ele pode ser bastante arrogante e grosseiro, isso não é novidade… Mas não se pode negar que seja um ótimo marido. 

Concordamos com acenos de cabeça. Zoe contemplava as batatas fritas em seu prato; ela parecia estar bem sendo solteira e eu não conseguia mesmo imaginá-la em um relacionamento tradicional. Embora ela não tocasse no assunto, eu sabia que havia coisas mais importantes em seus planos de vida. 

— Sabe, Freya, Graham é um bom partido - provoquei, e Regina arqueou a sobrancelha como se discordasse - Ele pode ser infantil às vezes, mas é um homem excelente! 

— Diz isso porque é seu amigo! Ele é meu amigo também, mas eu apenas o considero...decente. 

Revirei os olhos, enquanto a Rê empertigou o nariz como se fosse boa demais para um homem como Graham. 

— Regina, eu estou tentando levantar a moral do meu amigo, faça o favor de não interferir! 

— Ruby, entendo que queira bancar a cupido - Freya riu - Mas nós estamos apenas curtindo a paquera. Não quero assumir relações sólidas por um tempo… Você sabe, eu quase me casei… 

Ela lançou um olhar em direção à Ingrid, que fingiu não perceber. O nome Dash evocava sentimentos explosivos nas irmãs Beauchamp, que estavam sempre cautelosas ao discutir a gravidez de Ingrid. Embora ela fosse confiante e emocionalmente capaz, ainda estava digerindo as consequências. 

— Por mais romântica que eu seja, entendo muito bem a Freya - ela comentou, quando enfim chegamos na sobremesa - O amor nos feriu o suficiente. Não que eu amasse Da… não que eu amasse o pai do meu bebê… Mas é simplesmente complicado lidar com os extremos. Ele nos odeia! Tenho certeza de que não se importa nem um pouco comigo, mas temo que queira tirar meu bebê de mim. 

— Dash não é assim! - retrucou Freya, e Ingrid torceu o nariz para a menção ao nome - Ele seria incapaz de fazer algo do tipo. 

Nenhuma de nós contestou, mas pela expressão de Ingrid eu pude perceber que ela estava temerosa. Dash mudara a conduta ao recobrar os poderes que a mãe roubara dele quando bebê. Até onde podíamos imaginar, ele poderia extinguir o clã das Beauchamp, se assim desejasse. 

Terminamos as nossas compras sem mencionar nossos problemas. Ingrid e eu compramos roupas de grávida e um conjunto de enxoval para nossos bebês. Levei também um lindo urso de pelúcia, que deveria manter longe de Ruppy para que ele não o trucidasse.

Regina cismara que precisava renovar o guarda-roupa, mas parecia apenas uma desculpa para comprar lingeries e roupas sensuais para o seu novo pretendente. Voltamos ao QG carregadas de sacolas, o que nos livrou de qualquer suspeita por parte de Graham e Gancho. Os dois estavam no estacionamento, admirando o novo veículo de Killian. 

— Uma Harley Davidson! - exclamou Regina - E eu pensei que você quisesse um furgão velho. 

Killian ignorou o comentário, limitando-se a aquecer o motor da moto, que retumbava com força no eco da garagem. Era uma motocicleta preta com sidecar. As rodas brilhavam, de tão polidas. Embora fosse muito grande, a cor a fazia discreta. Antes que Gancho dissesse, eu sabia o que motivara a escolha. 

— Quando Ruppy crescer mais um pouco, podemos levá-lo no sidecar - disse ele, incrivelmente animado, embora as preocupações com seu pai lhe tirassem o sono há vários dias - Veja o que eu tenho para você Ruby-Loob, foi feito sob medida. 

Ele me mostrou um par de capacetes. O meu tinha um tom escuro de vermelho que lembrava sangue, enquanto o dele era um preto opaco. Até mesmo se dera ao trabalho de nos comprar jaquetas de couro, bastante apropriadas para o frio. Nós ficamos parecendo dois foras da lei, mas estávamos muito estilosos.  

— Como vai transportar o material de caçada? - perguntei. Havia um bagageiro, mas, além de pouco discreto, não comportava muita coisa.  

— Pensei nisso também - ele piscou para mim. Enfiando a mão no sidecar, puxou o assoalho. Havia um compartimento secreto ali embaixo, com espaço suficiente para suas principais armas e algumas traquitanas - Vou usar a moto para caçar nas redondezas. Estando grávida, não quero deixá-la sozinha por mais do que algumas horas. 

— Sensacional, Gancho! - Graham exclamou, extasiado, mas com o nariz entupido - Me deixa dar uma voltinha na garupa?

— Quando você se curar dessa sua gripe irritante! - falou Regina, conduzindo Graham para longe - Gancho não precisa de gotículas de vírus no pescoço dele. E vá logo voltando para a cama, eu ordenei que ficasse quieto até que nós voltássemos. 

— Ai, Regina, como você é atrevida! - o ouvi reclamar, meio a uma profusão de espirros. 

Gancho montou na moto e enfiou o capacete. 

— Uma voltinha, gata? 

Rindo, montei na garupa. Envolvi seu corpo com os braços e partimos deixando para trás um ronco potente. 

— Você pilota como uma tartaruga! - falei alto, quando atingimos o ápice de trânsito no centro da cidade.  

Em resposta, Gancho pisou um pouco mais no acelerador. Embora o vento frio gelasse as minhas mãos, estendi meus braços bem abertos, soltando gritinhos conforme ganhávamos velocidade. 

— Killian Jones, você é um maluco imprevisível! 

 Ele gargalhou, soltando um estridente “uhu!” em resposta. 

Fomos ao Lake Union para ver o pôr-do-sol. Houve um tempo em que eu costumava ir até lá com meus avós, quando a vida era perfeita no auge dos meus seis ou sete anos. Caminhamos tranquilamente ao redor do lago, rindo e contando piadas. Killian comprou cachorros-quentes de um carrinho que ia passando e nós nos sentamos frente a um agrupamento de barcos à vela. 

— Nós precisamos conversar - ele disse, me olhando com uma expressão difícil de decifrar. 

Assenti, bem no meio de uma mordida. 

— Okay! Você começa? 

— Você primeiro… 

Sorri de satisfação, o ketchup picante acabara de dissolver na minha língua. 

— Quer me explicar por que comprou uma Harley Davidson? Quero dizer, não que eu não tenha gostado, acho que você acabou de dar um grande passo em direção a algo mais moderno, mas… bem, o que esteve pensando? Não é como se uma moto pudesse transportar tudo o que você precisa… 

— Eu te disse… não vou abandonar a minha participação nessa gravidez. Meu pai nunca esteve lá por mim e pelos meus irmãos. Eu nunca ia querer isso para a minha família - ele colocou uma mão sobre a minha barriga e eu terminei com uma mancha gordurosa na altura do umbigo - Dito isso, tomei a minha decisão. É hora de me aposentar, Ruby… 

— O que quer dizer? - arregalei os olhos. 

— Eu vou abandonar as caçadas. 

Ele estava falando sério. Eu podia ver isso em sua expressão tranquila: seu olhar era firme e sua boca se curvava em um meio sorriso. Talvez ele planejasse isso desde a notícia da gravidez. Eu não tinha certeza do que pensar… Me limitei a fitá-lo longamente. 

— Você parece surpresa - ele disse. 

— Bem… Talvez eu não tenha pensado muito nas consequências. Com tudo o que vem acontecendo, eu não… - balancei a cabeça. Não sabia o que dizer. 

 - Eu quero uma vida normal. Com uma família normal. 

— Mas nós somos normais - dei uma risada: essa fala soava um pouco absurda - Quero dizer, nós temos um currículo alternativo… famílias um tanto disfuncionais, meia dúzia de traumas, mas… Bem, nós somos normais.  

Gancho pareceu entender o contexto. Ele sorriu e afagou meu queixo. 

— Sim, mas nós não temos vidas comuns. Você está ciente… não é? 

Dei de ombros. Não que eu quisesse criar meu bebê em um prédio antigo, coalhado de sal nas extremidades e armas letais no terceiro andar. No entanto, nada me preparara para a mudança que íamos enfrentar. Eu não planejara uma família, porém… 

— Eu nunca te imaginei fazendo outra coisa - falei - Para mim, você sempre ia ser o Capitão Gancho: um caçador, o líder da trupe. Não sei o que eu estava pensando… 

Silenciamos. Um brilho dourado começou a aparecer na altura do horizonte. Revoadas de pássaros passavam por sobre as nossas cabeças e o céu assumira um adorável tom rosado. Depois de vários minutos, Killian tornou a falar: 

— Eu vou ser um ilustrador. 

Eu o encarei, então sorri. Ele sorriu de volta. 

— É o que eu gosto de fazer - continuou - Tenho a herança do meu avô. Você pode se dedicar à sua profissão. Podemos nos mudar de Seattle, talvez um lugar diferente… 

— Podíamos viver à beira-mar - me surpreendi pensando alto. O pensamento me ocorreu como um desejo inconsciente, algo que eu nunca cogitara, mas que no fundo me alegraria - Teríamos um balanço na varanda. Podíamos alimentar patos... eu, você e Alice. 

— Alice? 

Abri um sorriso. Gancho acariciava a minha barriga; pus minha mão sobre a dele. 

— Eu acho que é uma menina. Tenho certeza! 

— Okay! Eu, você e Alice - Killian fez uma pausa, parecia segurar as lágrimas - Eu vou ensiná-la a nadar. Podemos ter um barco à vela. Eu poderia aprender a pescar… 

Soltei uma risada: a última coisa que passara pela minha cabeça fora imaginar um caçador na pescaria. Com certeza Regina faria piada com aquilo. 

Me peguei imaginando uma vida normal, comum, praticamente estapafúrdia. Uma vida em que lidar com monstros não fosse uma questão. Em termos de domínio emocional, eu não tinha nenhum autocontrole; senti meus olhos marejados e não fiz nenhum esforço para evitar as lágrimas. 

— Sim, você poderia pescar. E eu poderia… poderia costurar as roupas dela. Faremos bonecas juntas. 

Killian passou uma mão pelas minhas costas e me puxou para mais perto. Chorei no pescoço dele, meu cachorro-quente pingando molho nas nossas pernas. 

— Eu estou uma bagunça… - falei meio a risos - Temos de contar à vovó… Quero dizer, de todas as pessoas, ela merece saber. 

— Estive pensando nisso - concordou ele, com um aceno - Podemos visitá-la no próximo domingo. 

— Não sei como prepará-la para o choque. Ela vai compreender, é claro, mas não imagino qual será a reação. 

— Ela vai ficar feliz, nossa filha será agraciada com a beleza dos deuses. 

Gargalhei. Terminamos nossos cachorros-quentes enquanto o sol se escondia em um espetáculo fenomenal. Depois, de mãos dadas passeamos pela orla. Gancho cantarolava uma canção que ouvira no rádio e eu me concentrava em saborear cada detalhe daquele momento. 

— Nós vamos contar aos outros? - indaguei. Gancho me fitou com uma expressão devastada, como se pensando em tudo o que tinha a perder. 

— Ainda não - ele balançou a cabeça - Eles irão compreender, mas essa é nossa vida. Nós devíamos acertar as coisas sem envolver tanta gente. 

Concordei com um aceno. 

Avistei um barco à vela navegando em direção ao horizonte. 

— Sobre o barco à vela, que nome ele vai ter? 

 

***  

 

A vida com a qual Killian e eu sonhávamos parecia a poucos passos de distância. Tirando os nossos problemas com Amos e com o Chapeleiro, não havia nada que nos privasse viver normalmente. Eu quero dizer, nossos amigos continuariam sendo um bando de pirados que se dedicavam ao trato de criaturas malignas, mas não era como se um deles fosse aparecer na nossa residência anunciando: “Ei, Alice, titia explodiu um Wendigo, você quer ver?”. 

No entanto, por mais que nós repensássemos nossas vidas, nosso destino não parecia ser mesmo uma escolha. “O que a gente vive, escolhe a gente”, Jefferson me dissera, “Você vai ser feliz enquanto souber aproveitar”. 

Eu ainda estava para confirmar a veracidade daquela fala... 

Acordei com os rosnados de Ruppy no meio da madrugada, mas fiz com que ele se calasse e virei para o outro lado. Foi então que alguém sacudiu meu ombro com força e eu me sentei na cama, desorientada. Alguma coisa foi jogada sobre as minhas pernas e quando acendi o abajur vi que era um revólver de baixo calibre. 

— Regina! O que foi?! 

— Emergência! - disse ela, atravessando o dormitório para ir acordar as outras. Carregava uma espingarda no ombro e eu pensei que devia mesmo ser algo sério, dada a violência com que ela nos acordou. 

As garotas despertaram assustadas. Zoe parecia estar sempre alerta no sono, pois desferiu um golpe de karatê na Regina sem sequer ter aberto os olhos. 

— Que diabos! - resmungou a Rê, defendendo-se com um dos braços. 

— Desculpe! - Zoe despertou, bocejou e se ergueu, tudo ao mesmo tempo - O que foi?! 

— É o Graham! - esganiçou-se a Rê - Ele está lá embaixo, comendo feito um bicho. A cozinha virou um pandemônio, eu acho que ele está possuído. 

Um estrondo alto veio do andar de baixo; vidro se espatifou e ouvimos um grunhido satisfeito. Depois, silêncio. 

— Bem, vocês fiquem aqui enquanto eu vou checar - Zoe tomou a frente - Não se preocupem, não posso me machucar enquanto Toth estiver aqui dentro. 

Assentimos, enquanto ela rapidamente desapareceu escada abaixo. Regina engatilhou a espingarda. 

— Está bem, vou dar cobertura, caso ele tente escapar. Freya, você protege as grávidas. 

A Beauchamp mais nova se colocou à nossa frente, os braços abertos e os joelhos flexionados. Parecia que ela estava se preparando para entrar num ringue de luta livre. 

Vários baques surdos ecoaram pelo ar silencioso. Objetos foram quebrados e ouvimos grunhidos vindos de Zoe. Regina voltou ao dormitório, parecendo ter decidido que a ruiva tinha total controle sobre a situação. Ela revirou os olhos para a pose teatral de Freya, mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, o elevador apitou. Ergui meu revólver, ao mesmo tempo em que Regina enfiava o cano da espingarda na testa de Zoe.  

— Pretendia atirar em mim com isso, minha cara? - falou Toth, com a expressão impassível e as mãos cruzadas à frente do corpo. Chegava a ser engraçado que uma garota descabelada e usando pijama de Steve Universe se portasse como receptáculo de um deus. 

Regina abaixou a arma. 

— O que você fez? 

— Contive o demônio, mas ele não vai ficar seguro por muito tempo. 

Nos apertamos no elevador, que pareceu levar uma eternidade para descer. A cozinha estava um completo caos: duas cadeiras quebradas, comida espalhada pelo chão, a porta da geladeira dependurada por uma das extremidades e cacos de vidro pelo tapete. 

Graham estava magicamente atado ao tampo da mesa. Ele se debateu conforme nos aproximamos. Olhou para Regina com uma expressão maníaca e então emitiu um sibilo furioso. Se fosse uma maria-mole, Regina teria desmaiado de desespero; ao invés, ergueu a espingarda.   

— Regina, você não atiraria no Graham, não é? - perguntei, agarrando o braço dela. 

— Eu não hesitaria em proteger as minhas amigas, então sim, Ruby, eu atiraria no Graham - retrucou ela -  Ando querendo atirar nele há um bom tempo, talvez seja a oportunidade que venho procurando. 

— Regina! 

— Desculpe, estou um pouco nervosa… 

Graham riu, sentindo a hesitação de Regina quando as mãos dela tremeram. Mas aquele não era mais o Graham que nós conhecíamos, apenas uma versão horripilante e hedionda do mesmo.  

Suas pupilas estavam afuniladas no formato de um losango e as íris eram amarelas. A pele de seu rosto estava escura e ressecada, com um padrão de protuberâncias que lembrava escamas. O nariz não era mais humano: parecia estar se tornando um par de fendas. Quando ele sibilou mais uma vez, uma língua bipartida saiu de sua boca. 

Graham se transformara em uma víbora! 

— Eu não sabia que demônios podiam assumir forma de cobra… - comentei, atônita, vendo Graham sibilando e se contorcendo. 

— Esse não é um demônio qualquer - explicou Toth, parado ao lado de Graham - É um dos filhos de Apep. 

— Quem?! - Freya, Ingrid, Regina e eu perguntamos juntas. 

Toth revirou os olhos, descrente. 

— O Senhor do Caos. Era chamado Apophis, na variação grega. Não esperava mesmo que vocês soubessem, os mortais deste século não se compadecem mais das histórias antigas - ele contemplou o corpo de Graham com a cabeça caída de lado e uma expressão sonhadora - Na Época de Ouro das deidades egípcias, Apep era um demônio que personificava o mal e a escuridão. Ele lutava contra Rá todas as manhãs, tentando impedir que o deus-sol atravessasse o Nilo em sua barca. 

— Todas as manhãs? Mas que pé no saco! - Regina bufou. 

— Ah sim… Apep vivia nas profundezas do Rio Nilo, dia após dia enfrentando Rá, apenas para ser morto por ele e reaparecer vivo na manhã seguinte - Toth balançou a cabeça e murmurou “tsc! tsc!” - Tinha a forma de uma serpente negra, gigantesca e temível. 

— Tipo um basilisco? - indagou Freya, com a testa franzida. 

— Mil vezes mais horripilante. 

— A pirâmide! - exclamei, a menção ao basilisco se conectando à memória mais recente que eu tinha de uma cobra imensa - Dean caiu num fosso de víboras e uma serpente gigante tentou arrastar Graham consigo. 

O corpo de Toth pendeu para frente e Zoe quase caiu de cara na mesa quando retomou o controle. 

— Dean! Ele deve estar possuído também! 

— Dean não teve contato direto com a serpente. Graham deve ter sido infectado quando ela agarrou o corpo dele - alegou Regina, embora sua expressão preocupada demonstrasse incerteza.  

— Eu preciso tirar a dúvida! - Zoe se agitou, arrancando o telefone do gancho e quase afundando suas teclas ao discar o número do loiro. Após quase um minuto de espera, a ruiva bateu o fone com força - Droga! Aquele estúpido não atende! 

— Zoe, acalme-se! - Ingrid a agarrou pelos braços - Primeiro temos de resolver a situação do Graham. Tenho certeza de que Dean ficará bem. 

Zoe assentiu. Depois estremeceu e seus olhos reviraram quando Toth tomou controle à força. 

— Mortais… sempre dando vazão ao drama romântico… 

Eu tinha certeza que Zoe não gostara nada daquele comentário. Me voltei para o deus: 

— E então, como expulsamos o demônio?

— Temos de performar uma cerimônia - respondeu ele, placidamente - Sendo um sacerdote, estou apto a exorcizar o demônio, mas teremos de resguardar as dependências. 

 

*** 

 

A serpente que atacara Graham no fosso era apenas uma das muitas manifestações de Apep, Toth explicara, um de seus filhos demônios. Ao ser tocado pela cobra, Graham absorvera um espírito demoníaco em seu corpo. Bem, ao menos ele não fora mordido; as consequências seriam drásticas se a víbora lhe injetasse veneno. 

— Ele morreria dolorosamente em segundos - o deus nos dissera - Não há antídoto para o veneno desses demônios, no entanto, em certa quantidade, pode ser usado para produção de poções.  

— Já entendi o motivo de Zoe não querer se livrar de Toth tão cedo - Ingrid comentou, quando nós duas saímos para comprar suprimentos - Os conhecimentos dele são bastante úteis em termos de magia. 

Concordei. Ser um deus tinha lá suas vantagens. 

— Posso lhe perguntar uma coisa? - indaguei, e ela assentiu sem desviar os olhos da estrada - Como deve ser criar um bebê em condições… bem, não queria usar essa palavra… 

— Sobrenaturais? - riu ela, sem se ofender - Bem, confesso que ando pensando muito nisso. Mamãe e tia Wendy tiveram uma boa dose de desassossego criando a mim e Freya. Você sabe, há muitos caçadores de bruxas por aí, fora os nossos inimigos de outros clãs. 

— Não imagino como deve ter sido isso… Eu quero dizer, todo o lance da maldição, fugir de Asgard, se rebelar contra o seu avô…

— Ah sim! A parte mais delicada é que Freya e eu não temos nenhuma memória das nossas vidas passadas, enquanto mamãe e tia Wendy lidaram com toda essa carga sozinhas.É claro, o nosso pai esteve lá por um tempo, mas mamãe e ele tinham suas diferenças… 

Eu nunca ouvira as meninas falarem de seu pai. Achei que não me coubesse a consideração de perguntar sobre ele. Como eu não soubesse o que dizer, ela continuou: 

— Em todo caso, estou preparada. Não posso permitir que o medo me prive uma vida normal. Sabe, estou morrendo de saudades da biblioteca de East End! Freya e eu vamos voltar para casa depois da festa de recepção de Mary. 

Ah, eu ia sentir falta delas… Logo Regina teria de voltar às suas obrigações na prefeitura, enquanto Zoe teria de ajudar a limpar a bagunça dos deuses. Eu não sabia dizer quais eram as pretensões de Graham, mas imaginava que ele também estivesse perto de zarpar. Isto é, caso a possessão demoníaca não lhe deixasse sequelas. 

— O mortal ficará bem - afirmara Toth, naquela sua postura esnobe de quem pouco se importava com a seriedade da situação - É um demônio relativamente fraco, pode ser excomungado através de uma oração simples. 

— Fraco? - Regina chiara, indignada, pois Graham estava cada vez mais parecido com um homem-víbora e seus poderes estavam evoluindo rapidamente. 

— Incapaz de causar sérios danos ao seu portador - esclarecera o deus - Depois que eu o banir do corpo, será como se ele nunca tivesse estado lá dentro. 

A Regina tinha uma pontinha de desconfiança com relação a isso, mas não dissera nada. No fundo, ela se importava muito com Graham. E fora por isso que ela se oferecera para vigiar o endemoniado enquanto os preparativos para o ritual estivessem sendo feitos. 

Ingrid e eu saímos a comprar tochas, velas e qualquer outra forma de iluminação que fosse produzida por uma chama. Como os demônios de Apep existissem desde a antiguidade, devíamos nos certificar de que ele fosse banido como as pessoas faziam naquela época. 

— Apep era igualmente temido por deuses e mortais - Toth nos dissera, ele mesmo dando sinais de desconforto ao pronunciar aquele nome - Depois de Rá, o único que não o temia era Seth, que por vezes era convocado a lutar contra a serpente. Ah, o poderoso Apep não era páreo para Seth. Em termos de personalidade, creio que os dois se igualavam… eram como primos lutando de lados diferentes. Isto, é claro, foi antes de Seth se rebelar e matar seu irmão Osíris. Às vezes me pergunto se… bem, se não foi a voz de Apep influenciando a ira dele… 

Ora se não havia mais coisas por trás das antigas lendas egípcias do que podíamos imaginar. Eu tinha quase certeza de que Zoe estava nos escondendo informações. Eu quero dizer, uma divindade compartilhava de seu corpo, não era como se ela não tivesse acesso à mente dele. Se questionada, com certeza ela desconversaria e diria que Toth, apesar de controlável, era esperto demais para dar brecha em seus pensamentos. 

Em todo caso, por ora eu devia me concentrar em Graham. Ele ainda estava na cozinha, atado ao tampo da mesa. Regina estava passando por maus lençóis para mantê-lo controlado: embora não pudesse se desprender da amarra mágica que o aprisionava, seus pensamentos eram livres. 

Durante os quarenta minutos que Ingrid e eu levamos fazendo compras, Regina e Freya foram torturadas psicologicamente. A voz do demônio entranhara na mente delas, lhes forçando a relembrar memórias ruins e manter pensamentos obsessivos em torno de seus problemas pessoais.  

— Andem logo com isso! - Regina berrou para Freya, Ingrid e eu, quando começamos a preparar o círculo de exorcismo na garagem - Ele quer me desestabilizar! Não consigo tirar essa voz da cabeça! 

— Vamos revezar outra vez, Regina - sugeriu Freya - Ajude as garotas, eu posso lidar com esse demônio de araque! 

A Rê balançou a cabeça como se desacreditasse, mas obedeceu. 

— Ha! Não menosprezo a sua capacidade, Freya, mas esse espírito imundo sabe como afetar uma cabeça cheia… 

— Freya é mais forte do que aparenta - defendeu Ingrid, acendendo meia dúzia de velas ao mesmo tempo com apenas um gesto de mão - Todas nós temos a cabeça ferrada, mas Freya sabe lidar muito bem com a própria merda. 

—  Pra mim parece uma desculpa para ficar perto do Graham… 

— Ciúmes, Regina? - provoquei, ao que ela deu de ombros. 

— Estou apenas comentando… Uau! Me sinto em um luau ordinário, sem areia e sem gatos sarados. 

Rimos. Ingrid e eu compráramos meia dúzia de tochas de bambu num supermercado 24 horas; com elas, fizemos um círculo largo o bastante para que todos nós coubessemos dentro. Velas brancas compunham a decoração, colocadas no entorno, perto do portão e das janelas.

Como Apep fosse um demônio de escuridão, a luz e o calor das chamas o repeliam. Isso devia ser suficiente para impedir que ele escapasse quando Toth o expulsasse do corpo de Graham. No meio da garagem quase vazia, a decoração esotérica parecia patética e infantil. Regina estava parada no centro do círculo, se esforçando para não rir.  

— Não é tão intimidante quanto os rituais de exorcismo com que estou acostumada, mas há de servir. Vocês compraram as túnicas? 

Ingrid e eu nos entreolhamos. 

— Bem, o mais próximo que encontramos disso foram saídas de praia - Ingrid se adiantou em pegar a sacola no carro - Se você olhar bem, se parece bastante com uma túnica. 

Era como um vestido com decote em V, amarração na altura do abdômen e mangas amplas. Toth dissera que devíamos usar branco, para simbolizar a purificação.  

— Vai ter de servir - dei de ombros, ao que Regina assentiu em concordância - Devíamos fazer um luau de verdade quando isso acabar. Já temos figurino e iluminação, faltam os caras gatos. 

Devidamente vestidas, aguardamos até que Freya e Toth trouxessem Graham à força. Tiveram de atá-lo a um velho aspirador de pó, que Toth veio empurrando pela garagem sem fazer o menor esforço. 

— Ah! Vocês formam um decente grupo de sacerdotisas - elogiou o deus, nos vendo paradas no centro do círculo em nossos trajes de praia - Como eu ia dizendo à adorável Freya, eu poderia me beneficiar de alguns auxiliares em meus planos de fundar uma nova igreja… 

— Ahn, eu agradeço, mas dispenso! - Regina fez uma careta, em seguida apontou para Graham - Tem certeza de que é um demônio fraco? Graham está parecendo uma píton! 

Era verdade. O rosto dele começara a se parecer mais como o de uma cobra, triangular e afinado na altura do maxilar. Os olhos ficaram mais amarelados e agora seus braços também estavam cobertos por escamas. Ele se contorcia furiosamente, nos encarando sem piscar. 

— Adoradoressss de Rá - ele sibilou para nós, sua voz fina e estrangulada, como se houvesse algum objeto preso em sua traquéia - Acham que podem me vencer com toda essa pa-ra-fer-na-lha? 

— Uau! Foi bastante difícil pronunciar essa palavra, não? Em mais de quatro mil anos, ainda não conseguiu aprender o beabá? - Regina debochou, em uma tentativa de não se deixar afetar pelas palavras maldosas do demônio em sua cabeça. 

Graham olhou para ela com um meio sorriso, depois balançou a língua bipartida no ar e fez um som de chocalho. 

— O que diabos foi isso?! - Freya arregalou os olhos em espanto - Não vá me dizer que ele tem um chocalho no lugar das nádegas… 

Regina danou a rir, e logo todas nós nos desconcentramos com suas gargalhadas. Por um breve momento, Zoe retomou o controle do corpo, ralhando: 

— Recomponha-se, mulher, você pode fazer piada com isso depois - então Toth voltou ao protagonismo, revirando os olhos ao entregar a cada uma de nós um modelo de cruz ansata - A adorável Freya teve a bondade de moldar a cruz em uma mistura de chantilly com miolo de pão. Ainda estão úmidas, mas servirão para protegê-las. 

Tochas de bambu, saídas de praia e cruzes feitas de pão… Parecíamos um grupo de sacerdotes amadores seguindo carreira independente. No centro do bando, Toth se vestia como um deus, literalmente. Portava a máscara de pássaro íbis - sua forma animal mitológica -, uma cruz ansata de ouro e seu bastão (itens que Zoe trouxera consigo do parque e dos quais Toth não quisera se livrar). 

Graham estava bem no centro do círculo e Toth depositou um cavalete de pintura às costas do mesmo. Pintara a figura de uma cobra negra com um corpo gigantesco que dava muitas voltas. Era uma efígie representando Apep em um estilo simples bidimensional. 

— Ah, entendi! - os olhos de Ingrid brilharam, dada a repentina compreensão - Vamos prender o demônio no quadro. Genial! 

— Um quadro vai conter um demônio desse porte? - a Rê arqueou uma sobrancelha, ao mesmo tempo em que cruzava os braços - Você só pode estar de brincadeira! 

A plenitude de Toth ao falar sempre me incomodava, mas desta vez eu precisei conter o riso: um deus usando túnica e máscara com as mãos cruzadas à frente do corpo não era algo que se via todo dia. 

— Sou um sacerdote qualificado, minha cara, pareço estar brincando? Tsc, tsc! - ele balançou a cabeça e o bico de pássaro da máscara se agitou toscamente -  Os mortais dessa geração não estão familiarizados com os modos antigos, compreendo, mas você, melhor do que ninguém, devia ser menos descrente. 

— Por ser uma caçadora? Uma bruxa? - Regina questionou. 

— Por ser capaz. Detesto admitir, reconheço um mortal talentoso quando vejo um. 

Antes que Regina começasse a se gabar, chamei a atenção dos dois. 

— Gente, vamos logo com isso? Esse chocalho está me dando nos nervos! 

— Ah sim, claro, claro! - Toth apontou para o chão - De joelhos! Vocês devem depositar a sua crença em Rá, suponho que ele possa direcionar alguma força para nos ajudar a repelir o demônio. 

— Você supõe? - Freya disse, mas foi totalmente ignorada por Toth, que continuou falando. 

— O fogo tem poder de combater as coisas malignas da escuridão, vai atuar como um vértice de segurança. Assim que o demônio for expulso, vai tentar possuir outro corpo; é para isso que servem as cruzes, ele não vai se aproximar de vocês. Como sabem, sou um deus e não posso me afetar por um demônio dessa estirpe. 

“Então, é claro, ele não vai ter outra escolha a não ser ficar preso à efígie. Quando isso acontecer, a destruiremos voltando toda a nossa ira contra a pintura. Perguntas?”. 

Nos entreolhamos silenciosamente. Graham emitiu outro sibilo, tentando se libertar do aspirador de pó, mas só conseguiu levantar uma nuvem de poeira quando o filtro do aparelho se soltou. 

— Mas que tolinhosssss! Mortais não podem comigo, eu vou honrar o nome do Grande Apep! 

— Vamos logo com isso, esse demônio está me dando nos nervos! - Regina bufou, ajoelhando-se. 

Nós a imitamos e Toth instruiu que erguessemos nossas mãos para cima, direcionando a nossa energia a Graham. 

— Não será bonito… - Toth avisou, desdobrando um pedaço de papel com um gesto teatral. Era uma impressão em preto e branco em escrita hierática - Este é o único pergaminho preservado com instruções para o Banimento de Apep; chama-se Pergaminho de Bremner-Rhind, uma peça de posse do Museu Britânico de Londres, de cujo site imprimi uma cópia… Com essas fórmulas, não apenas banirei o demônio, mas também preservarei o seu amigo dos poderes maléficos do mesmo.   

Assentimos em compreensão. Toth respirou fundo, então ergueu uma mão para Graham e começou a evangelizar em egípcio antigo. Embora não entendesse uma só palavra, imaginei que ele estivesse dizendo “Saia deste corpo que não te pertence, em nome do poderoso Rá, o deus-sol”. 

As chamas das tochas começaram a se agitar e estralar. Pensei em Rá como um raio de sol escaldante e foi exatamente essa a atmosfera que se criou ao nosso redor. Logo o ar estava quente e abafado, como um dia de verão fora do ar condicionado. Graham começou a gorgolejar e emitir impropérios. Ouvi uma voz na minha cabeça que não era muito diferente da minha autocrítica. 

Ora, ora, mas que mentirosa!  Eu minto a todos que amo, pois considero estar no controle”, cantarolava em ar de troça “Eu minto, minto, minto! Como eu sou mentirosa! Ah, você vai tombar, vai sim… Como é que a vovó pode continuar a me amar quando descobrir que eu menti? Oh… Killian jamais me perdoaria, o que ele dirá quando souber que eu traí sua confiança? Patética, patética, patética! Não passa de uma covarde!”. 

Ao meu lado, Regina fechara os olhos e estremecia. Quem sabe o que a voz estaria lhe dizendo? Freya segurava a mão de Ingrid, que vertia lágrimas, mas parecia firme. 

Mentirosa! Mentirosa! Não pode viver uma vida normal, como poderia? Fadada a perder tudo o que conquistou… Perdeu todos que amava e vai perder de novo… Não se apegue, não crie expectativas…”.

O ar estava pesado. Não literalmente. Sentia um aperto no peito, uma angústia que me lembrava ansiedade, mas que vinha carregada de desapontamento, insegurança, culpa e incerteza. Segurei a mão de Regina e ela apertou a minha mão com firmeza. 

— Se concentrem em Rá - falei, fazendo força para me afastar da minha mente - Não deem ouvidos ao demônio. 

Toth falava tão rápido que parecia praguejar todos os palavrões que conhecia. As chamas estalaram com mais vigorosidade, as velas brilhando em um dourado intenso. Graham se agitava para frente e para trás, tentando se libertar. Toth colocou uma mão sobre sua cabeça e ele soltou um grito pavoroso. 

— Saia! Saia, eu lhe ordeno! - Toth começou a berrar, enquanto Graham engasgava como se estivesse prestes a vomitar - Em nome de Rá, ordeno que abandone a carne que possui. Saia, filho de Apep! 

O demônio subiu da boca de Graham produzindo um ronco alto prolongado. Era uma massa gasosa, tão escura que parecia um buraco negro. O demônio rastejou no ar, catatônico e enfurecido. Girava como uma serpente, produzindo sibilos e arrastando o mal consigo. 

Senti uma rajada de ar passando por mim  e fechei os olhos. Regina apertou a minha mão com mais força, enquanto pensamentos ruins passavam como flashes pela minha cabeça. Eu não interagi com nenhum deles, mas a simples menção às lembranças do passado me deixou com o peito apertado e a respiração lenta. 

Finalmente, o demônio se afastou, produzindo um ruído rascante ao ser sugado pela pintura. Abri os olhos e vi a fumaça negra se debatendo, inutilmente tentando escapar. Então, a tela pintada caiu para o lado, a força do demônio derrubando o cavalete. 

As chamas silenciaram; ainda emitiam um brilho dourado, como se Rá nos concedesse uma benção. Graham estava pálido e debilmente caído para frente. Nos agitamos ordenando que Toth o soltasse do aspirador de pó, o que ele fez com um simples meneio da mão direita. Deitamos Graham de lado, Regina amparando a sua cabeça. 

— Ele não está respirando! - ela exclamou. 

— Graham! - sacudi seu corpo - Grammy! Acorde! 

Os lábios dele estavam pálidos.

— Ele está morto! - Regina urrou, erguendo-se de supetão e agarrando Toth pela frente de suas vestes - Isso é culpa sua! Você disse que ele ia ficar bem! 

— Faça alguma coisa! - agarrei a mão de Zoe, mas Ingrid abriu caminho, empurrando Regina para o lado. 

— Vou tentar uma manobra cardiorrespiratória - ela se abaixou, pousando as mãos sobrepostas sobre o esterno de Graham, então bombeou seu coração com força. Após uma série de massagem cardíaca, ela abriu a boca do homem e soprou ar dentro - Ele não está reagindo! 

— Uma ambulância! - Regina se esganiçou, revirando a própria roupa à procura de seu celular - Façam alguma coisa! Eu tenho que ensinar tudo?! 

— Não temos tempo pra isso! - declarei, vendo Ingrid repetir a série de movimentos, ainda sem sucesso - Ingrid, tente dar um choque no coração dele. 

— Você ficou maluca?! Eu poderia matá-lo! 

— Deixe que eu faço! - Regina a empurrou para o lado, então pareceu se lembrar de que não fazia ideia de como produzir um impulso elétrico por meio de magia. Ela colocou a mão sobre o peito do homem, mas tudo o que conseguiu fazer foi ficar irritada - Argh! 

— Você tem de sentir sua própria energia se apoderando de sua mão - instruiu Ingrid, aflita, pois a cada segundo Graham ficava mais pálido - Imagine que suas células conduzem eletricidade. 

— Eu não consigo! - Regina começou a sacudir Graham - Grammy, você não ouse! 

Toth pigarreou, parado a uma distância segura de Regina. 

— Ahn, eu acredito que a escuridão do demônio sugou a energia vital do seu amigo, algo que pode acontecer em 99,9% dos casos de possessão… 

— POR QUE NÃO NOS INFORMOU ANTES?! - berrei para ele, que se limitou a abrir e fechar a boca. 

Ingrid reconsiderou sua incerteza. Ela colocou a mão a certa distância do corpo de Graham, como para se assegurar de que a manobra não fosse fatal, então produziu um rápido flash azulado que estralou com um sibilo elétrico. Graham se debateu no chão e seus olhos reviraram, mas isso não foi suficiente para reanimá-lo. 

— Não...Não - Regina estava vertendo lágrimas - Graham, por favor não me deixe…

Me abaixei ao lado dele, segurando sua cabeça. 

— Grammy, acorde! Lute! Nós precisamos de você! 

A essa altura, Freya já ligara para o 911. Uma ambulância estava a caminho, mas nós não tínhamos mais tempo. 

Regina estava urrando em seu pranto, algo que eu nunca esperara dela. Segurei a mão do meu amigo: estava gelada, a pele começando a ficar azul. 

— Grammy, você é meu melhor amigo... - falei, tão trêmula que meu queixo batia. 

— Eu te amo… NÃO SE ATREVA!  - sem aviso, Regina desferiu um soco no peito do homem, o que, imagino, com aquela força poderia ter aberto um rombo no mesmo. 

Ele se ergueu no mesmo momento: estatelou os olhos, tossiu vigorosamente e então escarrou alguma coisa nojenta e mal cheirosa sobre o pé de Ingrid. 

— Isso doeu, Regina… - balbuciou ele, tão fraco que pendeu para trás novamente. 

— Me desculpe...- a Rê apoiou a cabeça dele contra seu ombro, chorando de alívio - Ah, meu querido, você está vivo! Está vivo! 

Não tivemos tempo de comemorar. 

— A ambulância! - Freya anunciou, arreganhando o portão da garagem para dar passagem aos socorristas. 

Garanto que, se notaram os detalhes que envolviam a situação, não deram sinais de se importar. Parecíamos um bando de malucos participando de uma seita. 

Apesar de protestar com veemência, Graham foi levado ao hospital. Regina e Freya foram como acompanhantes, enquanto restou a Ingrid, Toth e eu a responsabilidade de lidar com os últimos resquícios do demônio. 

 - Ele não apresenta riscos nessa forma - disse o deus, admirando a efígie de Apep com um ar de satisfação -, mas, ainda assim, poderia ser libertado, o que nós não queremos… Peguem qualquer coisa com potencial destrutivo, nós temos de fazer esse espírito imundo padecer. 

A princípio, não entendi o que ele quis dizer, mas então o vi pegando uma pá que estava encostada a um canto. Ingrid me lançou um olhar confuso antes de escolher um martelo da caixa de ferramentas que Gancho mantinha em seu cantinho de mecânica. Optei por uma chave de fenda, embora não imaginasse que pudesse causar grandes danos. 

— Lembrem-se, tudo que for feito à efígie, o demônio sentirá também… É magia antiga, dos tempos pré-históricos. Os primeiros ancestrais já dominavam o mundo dos espíritos, atribuindo poder às imagens - Toth explicou, ao que foi interrompido por Ingrid: 

— É verdade! Acreditavam que estátuas pudessem aprisionar espíritos e que máscaras pudessem afugentá-los. 

— O princípio é praticamente o mesmo. A diferença é que nós iremos pulverizar a efígie até não restar mais nada do demônio. 

Toth desferiu um golpe com a pá, então cada um de nós se alternou no sofrimento imposto a Apep. Se ele pudesse gritar, teria rugido de ódio quando eu finquei minha  chave de fenda repetidas vezes sobre a tela. Nós rimos, achando a experiência divertida. Toth cuspiu sobre o quadro, então Ingrid o pisoteou e eu terminei por rasgá-lo em vários pedaços. 

— Agora, façam as honras! - Toth entregou a cada uma de nós um fósforo aceso, depois de derramar querosene sobre o quadro. 

Vimos as chamas engolindo Apep, que ainda sussurrou na minha cabeça: “Eu não vou abandonar você, sua mentirosa!”. 

 

***

 

— Não acredito que ele foi grosseiro comigo! - Zoe atirou longe o celular, que, por sorte, foi bater no sofá - Loiro ignorante! E pensar que eu me preocupo com ele… 

Dean não fora possuído por nenhum demônio-cobra, acabáramos de saber. Pelo o que dissera Zoe, o Winchester estava perfeitamente bem, se divertindo em uma boate de strippers. 

— Pagando por uma lap dance enquanto a idiota aqui se sujeitava a lidar com as consequências da estupidez dele. 

Afinal, fora Dean quem caíra no fosso das víboras, fazendo com que Graham tivesse de ir salvá-lo e, consequentemente, ocasionando que o mesmo fosse possuído pelo demônio-serpente. 

— Bem, uma preocupação a menos...- falei, dispondo os talheres sobre a mesa, enquanto Regina terminava de dobrar os guardanapos - Você acha que aquela víbora fez outras vítimas? 

— Não sei... - a ruiva balançou a cabeça - Toth disse que qualquer serpente pode atuar como receptáculo para os filhos de Apep, muito embora a maioria deles precise de um hospedeiro forte que o possa conter. Não me admira que Graham tenha ficado tão mal. 

— Acho que é por isso que ele estava com aquela gripe - Regina comentou, checando o forno - Talvez fosse um efeito colateral do demônio, enquanto ele estava se adaptando ao novo hospedeiro. 

Zoe assentiu em concordância. 

— Ah sim! Eu vou ter de checar aquela víbora. Se ela era tão grande quanto disseram, talvez estivesse contendo mais de um demônio em seu corpo. 

Depois que a polícia interditara a pirâmide para perícia, o fosso das cobras fora descoberto; até onde Zoe conseguira investigar, elas haviam sido realocadas para um viveiro, onde estavam sendo cuidadas. A essa altura, os demônios bem poderiam ter possuído corpos humanos. Teríamos bastante trabalho em identificar todos que haviam manipulado as serpentes, de modo a checar se estavam ou não endemoniados. 

— Devíamos ir todas juntas, adorei exorcizar aquele demônio - brincou Ingrid, embora fizesse careta. 

A passagem de Apep deixara resquícios no QG. Fora os pensamentos nocivos em nossa cabeça, encontramos vários restos de comida pelo prédio: Ingrid passou mal quando descobriu um frango podre pendurado no banheiro, enquanto Zoe tropeçara na carcaça de um animal pequeno e irreconhecível, que achamos ser uma ratazana. 

Sem mencionar a bagunça que o demônio fizera na cozinha, a qual levamos a tarde inteira para arrumar. Agora Graham descansava tranquilamente no dormitório, enquanto preparávamos uma pequena surpresa para ele. 

— Explique outra vez o que é que está pretendendo, Zoe. Talvez eu possa ajudar. 

— Não, Regina, eu já disse: é perigoso demais para mortais! Toth me assegurou que eu ficarei bem, desde que não me livre dele. 

Regina revirou os olhos. 

— É claro que ele disse isso! Não seja tonta, ele só está usando você! 

— Não, sou eu quem o está usando… Compreendo a sua preocupação, mas sou eu quem tem de fazer isso. 

— Por favor, não vamos mais discutir esse assunto - falei, exausta - Regina, nós temos de confiar na Zoe. 

A contragosto, Regina assentiu. Zoe era parte essencial na busca por Seth. Embora o deus estivesse solto por aí sem um receptáculo decente, nós descobrimos que havia sido Apep quem tramara sua ascensão. Zoe já sabia há algum tempo, visto que Toth lhe confessara o plano. Ela apenas decidira não compartilhar tudo o que sabia para não nos preocupar. 

— Apep esperava que Seth fosse o único capaz de restaurar os deuses ao seu apogeu, subjulgando os humanos a depositarem a sua fé no panteão egípcio - a ruiva explicara mais cedo, enquanto eu esfregava as manchas do assoalho - Juntos, eles teriam instaurado o Caos. 

— Ah sim, nada como um inimigo com que se tem afinidade - dissera Ingrid. 

Como o próprio Toth dissera, Seth e Apep eram semelhantes, apenas lutando de lados diferentes. Ainda assim, eu não conseguia imaginar um deus e um demônio tomando chá no fundo do Nilo enquanto conspiravam contra a humanidade. 

— Bem, não é como se Seth pudesse dar cabo dele… Apep é tão antigo quanto a existência do mundo, o propósito dele é morrer e renascer, dia após dia - Zoe falou, quando eu perguntara a ela se Apep era tolo de imaginar que Seth governaria o mundo tendo um demônio como primeiro-ministro - Mas, bem, suponho que esteja certa, Seth não ia querer um projeto de basilisco na sua cola… Talvez, no fim, ele colocasse Apep para dormir novamente. 

Segundo Toth, Apep repousara nas profundezas do Nilo durante mais de um século, após várias tentativas de se erguer. Depois de milhares de batalhas ao longo dos milênios, Rá e o Senhor do Caos se cansaram de ser opostos e barganharam por um acordo de trégua. Estando ambos enfraquecidos pela queda do panteão egípcio, firmaram um tratado de paz que devia durar quinhentos anos. 

— Então, naturalmente, Apep perdeu o sono após cento e trinta e nove anos e, entediado, resolveu que precisava fazer algo para retomar seu poder. 

— Ora! - Regina se indignara, uma mão na cintura enquanto olhava feio para Zoe - E pensar que tudo o que nós passamos naquele maldito parque foi por culpa de uma cobra que não tinha mais o que fazer. 

— Bem, o que você esperava? Que ele palitasse os dentes e jogasse xadrez? Garanto que você faria o mesmo, se pudesse retomar o que um dia lhe pertenceu. 

— Zoe, não vá me dizer que simpatiza com esses deuses! - Regina berrara, irada, o que levara a uma discussão acalorada que durara bons minutos. 

Agora, embora contrária aos planos de Zoe, Regina reconhecia que não havia outra maneira. Como Osíris e Hórus estivessem na trilha de Seth, Toth queria colaborar também. 

— Ele não é perigoso, apenas escolhe ficar do lado que está ganhando - Zoe dera de ombros. 

“É exatamente por isso que ele é perigoso”, pensei, embora achasse melhor ficar calada. A ruiva parecia segura de si e, de qualquer forma, agora Rá também teria de intervir. 

— Até onde sabemos, Rá está de férias, passeando a esmo pelo Rio Amazonas. Vocês sabem, ele tem uma barca… Depois da festa de recepção de Mary, eu irei me encontrar com ele. 

— E como exatamente você mantém contato com esses deuses? Oração? Não me parece lá muito devota, com essa expressão rebelde - a Regina zoara, ao que Zoe não dera indícios de ter se ofendido. 

— Ora, por favor! São tempos modernos, os deuses sabem usar a Internet! O que você esperava? Telepatia? 

Ri ao imaginar os deuses trocando mensagens no grupo da família. Talvez usassem emojis de gatinho… 

Acertávamos os últimos detalhes do jantar quando Graham desceu com Freya, que estivera lhe fazendo companhia. Embora tivesse sido liberado do hospital, ele ainda estava muito pálido, com olheiras profundas e arranhões pelo corpo. Veio enrolado em um cobertor, queixando-se de dor nas juntas. 

— Eu agradeço a vocês, mas acho que vou dispensar a comilança, ainda não estou bem do estômago - disse ele, tão logo saiu do elevador e nos viu reunidas ao redor da mesa. 

Freya nos dissera que Graham botara os bofes para fora no caminho até o hospital. Ela levara uma rajada de vômito, mas isso não pareceu ter afetado sua opinião sobre o homem. 

— Ha! Eu duvido muito que você queira dispensar o que eu tenho aqui - Regina abriu o forno e o aroma adocicado de maçãs e canela percorreu o ambiente. 

— TORTA DE MAÇÃ! - Graham arregalou os olhos, atravessando a cozinha tão rápido que até mesmo se esqueceu de suas dores. 

— Com sorvete para acompanhar - Zoe já estava atacando um pote de sorvete de limão. 

— Uau! Eu devia ser possuído mais vezes… 

— Não se atreva a dizer isso! - Regina deu um tapa no ombro dele - Você quase morreu! 

— Ah, Regina, você ficou preocupada… Eu sempre soube que me amava, mas foi bom ter uma confirmação. 

— Não sei do que está falando… 

— Ah, você sabe sim! Você disse que me amava, eu ouvi! 

Zoe, Freya, Ingrid e eu olhávamos de uma para a outra segurando o riso. Graham sorria de lado, cheio de si, enquanto Regina fingia arrumar uma gaveta para disfarçar o quanto enrubesceu. 

—  Hum, talvez eu tenha dito, mas foi pelo calor do momento... Não pense que isso muda alguma coisa - declarou ela, se empertigando toda. 

Graham riu. Como era bom vê-lo bem-humorado! Como Toth dissera, o demônio não deixara resquícios no corpo dele. Eu tivera medo de que ele voltasse para casa ainda se parecendo com uma víbora de pele ressecada e olhar ardiloso. 

Regina partiu um pedaço grande de torta, que complementou com uma porção farta de sorvete. Graham arreganhou todos os dentes da boca, seus olhos faiscando de prazer. Engoliu metade do prato sem ser dar ao trabalho de mastigar, então percebeu que todas estávamos olhando e polidamente limpou os lábios com um guardanapo. 

— Quer dizer que sou seu melhor amigo? - ele me perguntou. Notei que seus olhos estavam marejados -  Eu não sabia.

Assenti com um sorriso.  

— Você me assustou. Meu bebê não podia ficar sem padrinho… 

— Padrinho?! Eu?! 

— Mas é claro! Killian concordou. Quem mais haveria de ser? 

Regina deu um risinho, vendo Graham boquiaberto com uma colher de sorvete a meio caminho da boca. 

— Não fique tão surpreso, Ruby adora você! Se Gancho não tivesse chegado primeiro, você bem teria uma chance com ela. 

— Regina, somos apenas amigos… - protestei. 

As orelhas de Grammy ficaram vermelhas. Ele enfiou uma colherada de torta na boca, mastigando vorazmente.   

— Bem, se confiam em mim para isso, então serei um ótimo padrinho! - falou de boca cheia, depois fez uma pausa dramática - E o que exatamente um padrinho faz? 

— Ai, isso não importa, Graham!  - Regina estava revirando os olhos - Basta que esteja lá pela criança. Tenho certeza de que vão se dar muito bem, é fácil para você se comportar como infantil… 

— Regina… - comecei a ralhar. 

— Estou apenas comentando… Posso perguntar quem vai ser a madrinha? 

Ela estava me encarando com um olhar sugestivo. Obviamente, esperava ser a escolhida. 

— Bem, ainda estamos pensando… - lambi sorvete da colher, falseando uma expressão de dúvida - Você sabe, queremos ser justos com nossos amigos. 

— Hum. Bem, então tenha certeza de escolher uma mulher de fibra! Um bom exemplo! Alguém que faça tortas, por exemplo… Crianças adoram tortas! Ou então, alguém que tenha dinheiro; crianças simplesmente adoram tias que dão brinquedos…

— Está bem, Regina! - revirei os olhos, gargalhando - Você venceu! Aceita ser madrinha do meu bebê? 

— Eu?! - ela soltou um suspiro, fingindo emoção ao enxugar os olhos no guardanapo - Puxa vida, por essa eu não esperava… É claro que eu aceito! 

Muito embora Mary fosse uma grande amiga, Gancho e eu concordamos que a escolhida devia ser Regina. Embora a princípio ela se mostrasse contrária às nossas decisões - afinal, estaríamos colocando uma criança em risco -, não tínhamos dúvidas de que ela se enquadraria como uma figura materna. Eu só não tinha tanta certeza de que ela fosse assim tão bom exemplo… 

— Vai ser perfeito! Vou levar o pequeno infante para muitos passeios divertidos, é óbvio que ele vai preferir a companhia da Dinda - disse ela, toda convencida. 

— Ora, não seja boba, Regina, sou bem mais divertido do que você - replicou Graham - Você vai ver, vou construir um tobogã enorme no prédio! Vai terminar em uma piscina de bolinhas em formato de castelo. 

— Não precisa usar a criança como desculpa, nós sabemos que o tobogã é para você… - ela debochou, então mudou de expressão ao considerar que era mesmo boa ideia - Por que não construímos uma piscina de verdade? Gancho é tão sovina! Há bastante espaço para isso. 

Ri ao imaginar uma piscina bem no meio de um quartel sobrenatural. 

— Que ideia, Regina, isso aqui não é um resort! 

— Ora, bem poderia ser! Eu não sou suficientemente recompensada pelo trabalho que faço. Exorcizar demônios, uff! 

E ela passou o resto da noite nos aborrecendo com os detalhes de como devia ser o toboágua, enquanto Graham concordava com veemência e fazia planos de desenhar o projeto no dia seguinte.   








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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Não percam o desenrolar dos próximos capítulos...
Beijos das Mrs Jones



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