'Til We Die escrita por Mrs Jones


Capítulo 20
Barriga Explosiva & as "maravilhas" da vida universitária


Notas iniciais do capítulo

Olá, desculpem a demora, tô postando na correria. Qualquer erro, me avisem. Tentarei postar o próximo amanhã, pra compensar o atraso.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/525639/chapter/20

– Não é seu pai, é seu tio! Eu não ia dizer nada a você, mas ele quer voltar a ter contato com a família.

– Tio Emppu?! – arregalei os olhos, aceitando o copo d’água que vovó me oferecia. Ainda atordoada pelo choque de receber aquela mensagem, acalmava-me por saber que não era nada do que estava pensando. – Aquele seu filho deserdado?

– Esse mesmo! - Vovó me devolveu o celular, evitando me olhar. Afastou-se com pretexto de espanar os móveis, dando-me as costas como se não quisesse me deixar ver sua expressão – Eu não o deserdei, ele foi embora porque quis. Agora decidiu que quer voltar e fazer as pazes com a “mãe injusta e controladora, que não tem futuro nenhum no ramo da hospedaria”...

Soltei uma risada, imaginando vovó uns vinte anos mais nova, brigando com o filho rebelde. Nunca conhecera aquele tio, ele fora embora quando eu era pequena, logo depois do acidente que matou meus pais. Vovó me dissera que tudo desmoronara após aquela fatalidade: o filho a abandonou e a família do papai a culpou por deixar dois jovens irresponsáveis e um bebê se aventurarem na estrada, o que depois resultou no afastamento das duas famílias. Ou seja, eu não conhecia meus parentes paternos, nem sabia onde viviam. Talvez tivesse uma legião de primos desconhecidos, que nem sabiam de minha existência.

– Como ele descobriu meu endereço de e-mail?

– E como quer que eu saiba? Emppu sempre teve um parafuso a menos, mas era esperto... Apenas ignore! Eu preferiria que ele não botasse os pés nessa casa outra vez.

– Vovó! É seu filho!

Ela se virou pra me olhar, o rosto vermelho e as narinas dilatadas por irritação. Balançava o espanador conforme gesticulava com as mãos.

– Sim, o filho que quase matou o pai de desgosto quando decidiu sair de casa com nada além de uma muda de roupas e cem dólares no bolso. O filho que culpou a mãe pela morte prematura da irmã. O filho que tentou seqüestrar a sobrinha, porque não considerava esta casa adequada pra que ela fosse criada. O filho que desapareceu por vinte e cinco anos e agora decidiu que quer representar uma figura paterna pra afilhada...

– Afilhada?! – gritei, esganiçada – A senhora nunca me disse que ele é meu padrinho!

– Bem, estou dizendo agora...

– E não pensou em me informar antes? Francamente! Eu nem sabia que tinha um padrinho...

– Ah, Ruby... filha, que diferença isso faria? Ele nunca esteve presente na sua vida. – ela balançou a cabeça, condenando o comportamento do filho. Tornou a ler a mensagem em meu celular, depois soltou um longo suspiro, um suspiro que soava cansado, mas ao mesmo tempo indignado – Que cara de pau! Depois de anos... Apenas ignore! Faça de conta que ele não existe!

Eu entendia a mágoa que ela tinha do filho. Nas histórias em que ouvira de meus avós, Emppu era a ovelha negra da família, um filho que só infligia desgosto aos pais. Depois da morte de mamãe, a única que o entendia, tio Emppu resolvera sair de casa pra ir atrás do sonho de ser músico. É claro, meus avós foram contra, mas nada puderam fazer pra impedir. Agora, porém, ele resolvera me enviar um e-mail que quase me matara do coração:

Filha, que saudades de você! Parece que foi ontem que te vi pela última vez, aquela coisinha rechonchuda, de bochechas rosadas e sorriso grande. Estive pensando em você, querida, gostaria muito de vê-la, depois de tanto tempo. Lembro-me de como éramos ligados um ao outro. Você não vai se lembrar, filha, mas eu me recordo da época em que passávamos as tardes juntos, assistindo desenhos animados, enquanto eu te ninava no berço. Vinte e cinco anos se passaram, meu amor, e talvez pense que eu a abandonei, mas estive trabalhando num grande projeto, algo realmente brilhante, que acrescentou muito à insignificância da minha vida. Sua avó vai ser extremamente contra, mas quero encontrá-la, minha querida. Sei que agora, aos vinte e seis anos, você não espera uma figura paterna em sua vida, mas ainda assim, precisa de uma. Espere apenas mais um pouco, minha querida, estou indo te buscar! Agradeço se não mencionar nada disso à sua avó. Com amor,

Papai.

– Eu realmente achei que fosse o papai – comentei, relendo o e-mail. Bem, qualquer um teria achado que se tratava de um pai escrevendo pra filha que não via há vinte e cinco anos.

Vovó soltou uma risada, voltando a espanar os móveis.

– Só se ele estivesse escrevendo do túmulo, meu bem.

– Por que Emppu se refere a mim como filha o tempo todo? E por que assinou com “papai”?

– Apesar de tudo, Emppu era muito afetuoso com você, eram muito ligados. Ele costumava dizer que era seu segundo pai, chegava até a te tirar do seu pai às vezes, dizia que era mais responsável e que cuidava melhor de você. É claro que ele se considera seu pai até hoje. Esqueça isso, Ruby, esse homem não vale o chão que pisa!

– Está bem – suspirei, agora muito calma. Meu coração até parara de bater como se fosse pular do peito – Posso perguntar uma coisa?

– Ih, lá vem! – vovó largou o espanador e se esparramou numa poltrona velha, cuja estampa estava desbotada – Quando você começa a perguntar não para mais.

– O que aconteceu à família do papai? Nunca mais deram sinal de vida?

As narinas dela voltaram a se dilatar. Exprimiu um muxoxo de antipatia.

– Nem quero saber daquela gentinha. Me desculpe, minha filha, mas aquelas pessoas são da pior espécie. Não sei como teu pai foi nascer em meio àquele bando de cobras. Ele era a ovelha negra da família, mas nesse caso, até que era uma coisa boa. A única coisa que sei é que moram no Canadá. Você sabe, era para lá que você e seus pais estavam indo no dia do acidente, a família dele queria te conhecer. Depois me culparam pela morte dele como se eu o tivesse obrigado a dirigir até lá! Ora, eles mesmos exigiriam ter direito de ver você! E a mãe dele, aquela velha ordinária, se achou no direito de berrar comigo por telefone, dizendo que eu matara o filhinho dela. Ora, faça-me o favor! Eles nem quiseram saber de você no final das contas... Apenas esqueça essa história, minha filha, foque no presente!

Bem, se o passado era um livro de sofrimento e fatalidades, o presente era uma massa homogênea: uma mistura de novidades, amor, alegria e complicadas equações. E com complicado me refiro ao nosso amiguinho chapeleiro, cuja mente era tão difícil de decifrar que seria mais fácil decorar todos os algarismos de Pi. Ele não tivera a indecência de me procurar novamente, mas eu temia que ainda estivesse na cidade. Claro, nada disse a Gancho, ou ele iria atrás de confusão. Ao invés, continuei determinada em focar nos estudos.

Depois que o mal entendido da mensagem foi esclarecido, voltei a me animar com a faculdade. Minhas expectativas talvez estivessem muito elevadas, mas o fato é que eu imaginava meu primeiro semestre acadêmico como um daqueles filmes colegiais da Disney. A mocinha que vai pra uma nova escola e fica amiga dos nerds, aos quais lidera numa revolução contra a opressão dos jogadores de basquete, lindos, porém burros. Uma história bem clichê, com direito a cantoria e bailes de inverno. Brincadeiras à parte, devo confessar que estava uma pilha de nervos, tão ansiosa que precisei tomar calmantes.

– Ora, Ruby-Loob, não há nada com que se preocupar – disse Gancho, me fazendo cafuné – Tenho certeza de que vai ser a aluna mais brilhante da classe. Não me surpreenderia se todos os professores a elegessem como aluna preferida.

– Até parece! Vai ser realmente uma surpresa se eu conseguir a atenção de algum deles. Você viu como as outras pessoas são comunicativas...

– Como se você não fosse uma tagarela!

Dei risada.

– Sim, mas aqui é diferente... Eu tenho um problema com público, não sabia? Não gosto de multidões e não sou aberta a dar minha opinião publicamente.

– Você vai se sair bem!

Ora, falar é fácil! De qualquer modo, tentei não pensar demais no que estava por vir, de modo que, em meu primeiro dia de aula, pude ir pra faculdade tranqüila. É claro, toda minha tranqüilidade se foi assim que pus meus pés no campus. Tentei dar meia-volta e correr para o carro, mas Killian me impediu. Ele praticamente me arrastou até o prédio da Faculdade de Moda e Artes, dizendo que eu não desistiria antes mesmo de começar.

– Eu não enviei dezesseis cartas de aplicação pra você simplesmente desistir na última hora, sabe? – disse ele, uma mão segurando meu braço e a outra levando minha bolsa. – Aí está, a sala de aula dos calouros! Acho que você está um tanto atrasada, uma vez que todos os lugares estão ocupados, menos aquela cadeirinha bem lá no meio...

O único assento vago me pareceu mais difícil de alcançar do que escalar o Monte Everest.

– Eu não vou entrar aí! – estaquei, recusando-me a atravessar a porta – Deve ter umas cem pessoas!

– Não seja boba! Uma sala dessas comporta cento e cinqüenta alunos...

Filho da mãe! Esse é o momento em que você se sente idiota por ter medo de atravessar uma sala com cento e quarenta e nove pessoas. Mas fazer o quê? Do meio da multidão, um par de mãos se ergueu, acenando pra mim. Jenna. Graças a Deus, um rosto conhecido!

– Vai logo, Ruby-Loob, eu ainda tenho que investigar um caso de assombração. Sua bolsa... e meu beijo?

Trocamos um rápido selinho e Killian me fez entrar na sala, desejando boa-sorte. Com minhas pernas tremendo mais do que gelatina, atravessei a enorme distância da porta até o assento vago. A sala era um daqueles típicos auditórios parecidos com salas de cinema, só que composto por compridas mesas distribuídas em degraus. O lugar vago era bem ao lado de Jenna, que ficou felicíssima por me ver e pôs-se a tagarelar como se me conhecesse há anos. Ainda trêmula, imitei os outros ao depositar meu notebook sobre a mesa. A meu lado esquerdo, um rapaz batucava com uma caneta, lançando-me olhares de esguelha de quando em quando. O murmúrio de vozes me incomodava, pois eu estava exatamente no meio da multidão e imaginava que todos os olhares estavam sobre mim. Killian mal se separara de mim e já me enviara umas dez mensagens, dizendo que tudo ficaria bem e que estava mais nervoso com meu primeiro dia do que eu mesma estava.

– Seu namorado? – perguntou Jenna, esticando o pescoço pra olhar meu celular – Aquele bonitão que te trouxe até a porta e te acompanhou no dia do tour?

– É. Ele está mais nervoso do que eu.

– Por que está nervosa? – ela me encarou com seus olhos pequenos, apoiando a cabeça a uma das mãos.

– Você não está?

– Não, só estou ansiosa. E eu falo demais quando estou ansiosa, não falo?

De fato. Em todo caso, toda aquela tagarelice serviu pra quebrar a tensão e logo ficamos muito amigas. Quando um professor entrou na sala dizendo que lecionaria História da Moda, eu nem me lembrei de que estivera preocupada. Talvez você não entenda, mas o primeiro dia de faculdade representava muita coisa. Representava, em primeiro lugar, independência. Sim, porque faculdade traz responsabilidade, que traz maturidade, e, conseqüentemente, cria independência, uma vez que você aprende a se virar sozinho. Também representava um novo patamar na minha vida, algo que me traria não apenas ensinamentos, mas resultaria numa melhor oportunidade de futuro. É claro, também me daria a oportunidade de conhecer novas pessoas e, em se tratando de relações sociais, a primeira impressão era o que contava. Ou seja, estava me esforçando ao máximo em passar uma boa impressão.

E, por um momento, pude rir de mim mesma e de minhas preocupações bobas. Faculdade não era um bicho de sete cabeças. Não sei o que estivera pensando... Logo a vida universitária se revelou como algo maravilhoso, embora exaustivo e desafiador. Ao fim da primeira semana, já tinha um pequeno círculo de amigas, uma montanha de trabalhos e meia dúzia de admiradores. Gancho, é claro, não gostou nadinha. Não bastasse nosso amiguinho chapeleiro, agora eu também tinha de aturar rapazes grudentos e cheios de expectativa. Eles pareciam cegos à palavra comprometida, de modo que precisei ignorá-los pra que entendessem que não teriam nada comigo.

– Oh, pobrezinha! Eu entendo você. Beleza traz muitas coisas boas, mas também atrai coisas ruins. Eu sei... sempre tendo de fugir dos admiradores... Sabe, minha beleza me cansa ás vezes...

Toda vez que Killian vinha com seu poço de autoestima eu revirava os olhos. Mal nos víamos ultimamente, embora nos falássemos por telefone quase o tempo todo. Apesar de não querer me deixar sozinha, ele voltara a fazer longas viagens. Percorrera boa parte do norte do país caçando vampiros e bruxas negras, que pareciam se multiplicar com a mesma velocidade com que setembro avançava. Killian negaria mil vezes, mas eu sabia que ele estava atrás do Alfa, o vampiro que matara Milah. Contanto que ele tivesse cuidado, não me importaria se encontrasse e matasse o Alfa. Talvez fosse apropriado podar o mau pela raiz, embora não houvesse como erradicar a multiplicação de vampiros apenas livrando-se do mais poderoso deles.

Em todo caso, setembro passou voando e no último dia do mês Killian voltou pra casa. Conforme o colocava a par das novidades (que já contara umas mil vezes pelo telefone) e organizava a casa, lembrei-me de mencionar algo que estava tirando a paz da comunidade acadêmica. Medo se espalhara pelo campus da faculdade, infiltrando-se em todos os cantos e levando os alunos ao desespero. Cinco pessoas haviam desaparecido só na última semana. Dois alunos de Medicina, um de Computação e outro de Engenharia. Vítimas sem nenhuma ligação, a não ser pelo fato de freqüentarem o mesmo campus.

– Pessoas desaparecendo como fumaça. Acha que é alguma criatura? – perguntou Gancho, que desenhava para se distrair.

– Talvez. Pode ser qualquer coisa. A polícia ainda não encontrou os desaparecidos.

Killian fez cara de preocupação. Remexeu na bolsa de lona que sempre levava pras caçadas e voltou com um spray de pimenta e uma arminha de choque, dizendo que eu devia estar sempre prevenida, para o caso de um maluco tentar me atacar.

– Acha que essas pessoas foram assassinadas? – indaguei, vendo o jornal local noticiar os desaparecimentos. Mães chorosas e fotos dos desaparecidos passavam pela tela. Ao fundo, a repórter informava que a polícia vasculhava os arredores da universidade, ainda sem sucesso na busca por pistas. – Quem daria sumiço a universitários.

Gancho deu de ombros. Foi verificar os pesados, empoeirados e antigos livros que tratavam de criaturas. Fez uma lista de possíveis ameaças, enquanto eu me ocupava em escrever uma dissertação sobre moda européia. Com o acúmulo de trabalhos acadêmicos, deixara meu trabalho de assistente um pouco de lado. Killian me dispensara de meus serviços, ao que eu contestara, uma vez que amava aquele emprego. Minhas experiências quase mortais haviam sido intensas demais pra que eu largasse o emprego assim, de uma hora pra outra.

As coisas estavam acontecendo rapidamente em minha vida. Num dia eu era uma pobre garçonete órfã, meses depois namorava um caçador bonitão que me convencera a prosseguir com os estudos. Pra alguém que não costumava ser muito sociável, eu até que estava me relacionando bem com as pessoas. Quero dizer, agora eu tinha muitos amigos. Isso com certeza era algo em que se pensar. Porque, de alguma forma, as pessoas sempre sumiam da minha vida sem eu saber por quê. Desta vez, porém, acreditava que aquelas pessoas tinham vindo pra ficar.

A manhã de primeiro de outubro estava sombria. O outono deixara as árvores do campus nuas, todas com seus galhos retorcidos lançando sombras sinistras pelo gramado de entrada da Universidade de Seattle. Havia névoa naquela manhã, o que era incomum, uma vez que o tempo não costumava ser tão frio naquela época do ano. O cenário também não era usual. Ao invés de grupos de alunos sentados pelos gramados, encontrei meia dúzia de policiais respondendo às perguntas dos jornalistas. Uma mulher choramingava agarrada ao pescoço de um homem. Parecia que outro aluno sumira. Aproximei-me de Jenna, que observava a cena a poucos metros de distância.

– Outro desaparecimento? – perguntei e ela confirmou com a cabeça.

– Lembra do Derick? Aquele garoto que vive batucando com a caneta? Saiu do dormitório ontem à noite e não voltou mais.

Derick era da minha sala. Nunca trocáramos mais do que duas palavras. Eu, no entanto, senti-me péssima por alguém que conhecia ter desaparecido.

Ouvi quando, diante das câmeras, os policiais declararam não haver pistas que revelassem o paradeiro dos seis alunos. Desconfiavam que os desaparecimentos se tratassem de seqüestros, o que, para a polícia de Seattle e o FBI, significava que o seqüestrador era alguém da instituição. As câmeras de segurança da universidade haviam sido desligadas na noite anterior. O responsável pelo monitoramento das mesmas dissera que fora drogado por alguma substância colocada em seu café, de modo que não fazia ideia de quem poderia ter desativado o sistema de filmagem. Agora a polícia investigava os funcionários, tentando descobrir quem teria drogado o pobre homem.

O ambiente acadêmico se transformou em lugar de desconfiança. Ninguém caminhava pelos arredores da faculdade sozinho. Mesmo durante as aulas, o medo se fazia presente. Ficávamos imaginando se o seqüestrador estaria entre nós, nos observando, tramando um jeito de nos pegar quando houvesse oportunidade. Enquanto investigadores da polícia tentavam descobrir o que motivava o seqüestrador, eu rabiscava teorias em meu caderno, quando na verdade devia estar prestando atenção às aulas. Bem, você pode me julgar, mas a verdade é que ninguém conseguia se concentrar direito nos estudos. Não quando o perigo se encontrava por entre aquelas paredes, sentando-se num daqueles grandes auditórios, ou, quem sabe, caminhando entre nós disfarçado de reitor.

Depois do sétimo desaparecimento, uma caloura do curso de Jornalismo, o reitor reuniu toda a comunidade acadêmica para anunciar que a instituição cancelaria as aulas por tempo indeterminado caso os desaparecimentos continuassem e a polícia não conseguisse encontrar o responsável por eles. Anunciou também que policiais fariam rondas dentro e fora da universidade, além, é claro, de haver dois deles monitorando as câmeras. Esperava-se que com isso o seqüestrador ficasse intimidado, o que daria mais tempo pra que descobrissem algo sobre ele e o principal: onde estavam os desaparecidos.

Com tudo isso, meu faro investigativo estava a mil e eu desconfiava de todo mundo. O reitor, um senhor de cabelos brancos começando a ficar careca, atraiu meu olhar de suspeita quando ouvi sua conversa ao celular. Nervoso, ele afirmava à pessoa do outro lado da linha que faria o que precisava ser feito e que seria discreto. Claro, bastou apenas isso pra que eu bolasse milhões de teorias, que mais tarde pensei em levar à polícia.

– Ficou louca? Você não pode provar nada! - dizia Éden, aluna veterana de Moda, que virara uma de minhas amigas. Por mais que ela tivesse bons argumentos para me convencer de que aquela ideia era idiota, eu refutava sua opinião com argumentos contrários.

– O que eu ouvi é prova suficiente! Não devia contar minhas suspeitas à polícia? E se o reitor for o seqüestrador? Cada minuto que ele passa aqui dentro, entre os alunos, é uma oportunidade a mais de raptar outra pessoa.

– Ruby, Éden está certa! – Cherry, melhor amiga de Éden, falou um tanto tímida – O que você ouviu não prova nada. De que serve uma conversa suspeita se você não a tem gravada?

Burra! Burra, burra, burra! Eu devia ter gravado o que ouvi! Em todo caso, acabei por concordar com elas. Uma conversa entreouvida não provava nada. Não seria certo acusar alguém sem provas.

Ruby, eu não quero você metida nisso! – Gancho brigou comigo por telefone, quando lhe contei minhas suspeitas. Ele estava em Maple Valley caçando wendigos – Deixe isso pra polícia! Tem acompanhado os noticiários? Eles têm noventa por cento de certeza de que se trata de um seqüestrador ou algo do tipo. Sabe o que significa? Que você não pode ficar andando por aí sozinha, bancando o Sherlock Holmes.

– Eu não estou bancando o Sherlock Holmes, pelo amor de Deus, tenho mais o que fazer! Só achei que devia contar à polícia o que ouvi.

Não faça isso, você não tem certeza de nada, não vai querer queimar seu filme com o reitor, não é?

E ele estava certo. Mais tarde ouvi boatos de que o reitor se envolvera amorosamente com um dos professores, o que chegara aos ouvidos de sua esposa, que exigira que ele terminasse tudo com seu amante. Isso explicava seu nervosismo ao telefone. Não queria que soubessem que ele, muito provavelmente, era bissexual. De alguma forma, porém, a informação fora repassada de boca em boca, o que gerou um burburinho durante alguns dias. Claro, o escândalo só não foi maior porque havia coisas mais importantes com as quais nos preocuparmos.

Quando o oitavo aluno desapareceu, a reitoria da universidade decidiu pelo cancelamento das aulas. Mães revoltadas pressionavam a polícia e o FBI, que ainda não tinham respostas. O assassino, seqüestrador, ou o que quer que aquela pessoa fosse, fizera um bom trabalho escondendo as pistas. Não havia rastros, filmagens, ou qualquer outra coisa que levasse a um suspeito. Pessoas próximas das vítimas deram depoimentos, o que não ajudou muito. A única coisa que as autoridades conseguiram fazer foi reconhecer um padrão: os desaparecimentos aconteceram no mesmo intervalo de tempo, com um desaparecimento por dia. É óbvio, qualquer retardado reconheceria aquele padrão e chegaria à conclusão de que outro aluno sumiria no dia seguinte.

Por mais que os policiais se esforçassem em criar segurança na comunidade acadêmica, muitas pessoas criticavam seu trabalho. Alguns achavam que eles não estavam tão empenhados assim na missão. Pelo amor de Deus, era o FBI! Como era possível que não tivessem encontrado uma única pista? Além do mais, havia rondas de policiais armados vinte e quatro e horas. Como é que um seqüestrador passara por baixo de seus narizes?

– Não se pode confiar nem na polícia, a verdade é que estamos sozinhos, cada um por si – dizia Cherry, na manhã seguinte ao oitavo desaparecimento.

Sentadas em círculo, conversávamos sobre, entre outras coisas, nossas inseguranças. Éden se vangloriava por ter um namorado fortão que a protegia. Infelizmente, para desespero de Cherry, Jenna e eu, estávamos desprotegidas. Porque, cá entre nós, não confiava que spray de pimenta e arminha de choque pudessem me ajudar em alguma coisa. Nem mesmo um namorado fortão e com cara de mau meteria medo no tal seqüestrador.

Gancho e eu ainda estávamos num dilema. Por mais que a teoria dos policiais parecesse a mais aceitável, ainda acreditávamos na possibilidade de algo sobrenatural estar agindo pelas redondezas. Acabei por descartar essa hipótese, no entanto, e disse isso a Killian quando ele me ligou naquela manhã.

Já descartou a possibilidade de ser alguma das criaturas que listamos, Ruby-Loob?

– Já. Tenho observado atentamente, não há evidencias sobrenaturais. Não há nenhuma pista, na verdade. – me afastara das garotas e observava a movimentação pelo campus. Pastores alemães acompanhavam os policiais, que caminhavam tranquilamente e conversavam entre si – Seja lá quem está fazendo isso, é bem humano. A não ser que fantasmas tenham aprendido a raptar pessoas...

– Hum... espero que peguem logo esse desgraçado. Não queria deixar você sozinha mais uma noite, mas surgiu um caso pelas redondezas e Bobby me pediu pra investigar. Ah, só pra você saber, já fiz as pazes com o Grammy. Vamos caçar juntos.

– Bom saber! Tenha cuidado, Killy.

Você também, Rubes. Te amo!

As garotas riam quando tornei a me sentar no gramado, isso porque Damon, namorado de Éden, estava entre elas. Com seu senso de humor irônico, fazia as pessoas rirem de suas piadinhas. Ele era um cara bacana, embora um tanto exibido. Naquele exato momento estava nos mostrando o que faria com o seqüestrador se topasse com ele, dando socos e chutes no ar. E bem teria terminado sua demonstração se um grito agudo não reverberasse por toda a extensão dos jardins da universidade, assustando-nos.

– Ele está ali! Ele está ali! Derick! – berrava uma colega de turma, apontando para um ponto distante.

Dezenas de pessoas saíram correndo em carreira desabalada. Amontoaram-se em volta de uma forma caída na vala pela qual água da chuva que caía do telhado escorria para um ralo. Aproximei-me o mais que pude e avistei Derick, o garoto que gostava de batucar a mesa com a caneta. Inconsciente, seu corpo entalado na vala, tão inchado que estava quase irreconhecível. O coitado estava parecendo um sapão enorme e com uma imensa papada. Sua pele parecia pegajosa e assumira uma coloração pálida, que indicava que ele estava morto. O que chamava mais atenção, porém, era seu redondo e vasto abdômen. Derick tinha físico de esportista antes de ter desaparecido, agora, no entanto, exibia uma barriga tão grande que parecia estar grávido de quadrigêmeos. O pior de tudo é que a barriga era molenga, asquerosa, dava impressão de que iria arrebentar.

– Que nojeira... – Jenna torceu o nariz, vendo alunos de Medicina examinando o corpo. Tocavam nele sem usar luvas, sem nem saber qual fora a causa da morte – Como foi que ele ficou assim?

– Vai saber... – falou Cherry, imitando os outros, que tiravam fotos sem respeitar o cadáver – Não faz nem uma semana que ele desapareceu, de onde surgiu uma barriga desse tamanho?

Foi quando alguém teve a brilhante ideia de cutucar a barriga com um graveto. Algumas pessoas sem respeito riam da cena, filmando tudo com intenção de depois divulgar na internet.

– Ei, o que estão fazendo?! – finalmente um dos policiais, que estivera fazendo sabe se lá o quê, notou o que acontecia e veio correndo – Não toquem no corpo! Não toque no...

Tarde demais... O graveto afundou na barriga, a barriga se contraiu e da contração veio uma explosão de sangue, pele e carne podre. Os que estavam mais próximos levaram chuva de sangue no rosto e uma gritaria sem fim atraiu ainda mais gente. Logo o local se transformou num pandemônio. Câmeras surgiram de toda parte; jornalistas pareciam brotar do chão; garotas histéricas guinchavam e choramingavam; cães latiam e circulavam em volta da área; policiais irritados berravam com todo mundo, mandando nos afastarmos.

– Meu cabelo! Que horrooooor! Ai que nojo! – Éden fora atingida pelo sangue e guinchava sem saber o que fazer. Damon fora pego por uma intensa crise de risos e estava a ponto de rolar no chão.

– Acho que vou vomitar! – anunciou uma Jenna pálida.

Poças de vômito tingiam partes do gramado a cada vez que alguém sentia o estômago revirar e não conseguia chegar ao banheiro. Pessoas banhadas de sangue caminhavam de um lado para o outro, paralisadas de susto, enquanto outras saíam desembestadas em direção ao chuveiro mais próximo. O corpo de Derick ficara lá, completamente vazio, com as tripas pra fora e os fluidos vazando para o chão. O cobriram com plástico preto e isolaram a área, o que não impediu a aproximação de curiosos. Vovó me ligou aos berros, tão logo viu as notícias ao vivo. Liguei para Killian minutos depois.

– Gancho, estava enganada... Tem algo de muito sobrenatural nessa universidade!

***

– Imbecil, pare de rir! Eu ainda estou traumatizada! – Éden colocava a mão no coração, indignada com o comportamento infantil de Damon, que começava a rir toda vez que se lembrava dela suja de sangue. – Tem ideia do quanto foi trabalhoso tirar toda aquela porcaria do meu cabelo? Eu quase não parei de vomitar...

– Alguém pode me explicar o que foi aquilo? – indaguei, impressionadíssima com a cena – A barriga dele simplesmente explodiu...

– Olha, eu vou lhe dizer... em meus vinte e dois anos, nunca vi nada parecido com aquilo. – falou Cherry, encarapitada no murinho que dava volta à universidade – Deus me perdoe, mas parece coisa do lá de baixo...

Damon gritou de repente.

– Olhem! Meu vídeo está bombando na internet! – virou a tela do celular pra que pudéssemos ver. Um vídeo do YouTube, intitulado “Barriga explosiva”, já chegara a marca de dez mil acessos em apenas duas horas.

– Pelo amor de Deus, Damon! Não tem respeito pela morte dos outros? – guinchei, indignada.

Menos de dez minutos depois, fomos retirados do campus junto com outros alunos, que levavam malas, reclamando por terem que voltar pra casa. A morte de um dos desaparecidos apenas complicava as coisas, por isso decidiram cancelar as aulas e evacuar a universidade. Levou apenas dois dias pra que encontrassem o seqüestrador. Isto é, quem eles achavam que era o seqüestrador. Pra mim estava muito claro que o fenômeno da barriga explosiva não podia ter sido causado por alguma nova anomalia, como disseram os médicos, que ainda realizavam autópsia no corpo de Derick.

– É isso que eles dizem? Uma anomalia? – perguntou Gancho, muitíssimo interessado no caso. Seria questão de tempo até ele próprio começar a bancar o Sherlock Holmes.

– Exatamente! Na verdade, não sabem como explicar o fato de as entranhas de Derick terem derretido. O intestino grosso já estava em estágio de decomposição. – expliquei, lembrando-me do que ouvira no noticiário. Killian torceu o nariz, fazendo cara de nojo. – Você devia ter visto, a carne podre explodiu pra todo lado!

– Me poupe dos detalhes...

O responsável pelo monitoramento do sistema de filmagem, ou gordinho das câmeras, como o chamavam, fora preso após os policiais descobrirem fotos e detalhes sobre os desaparecidos em seu loft. Ele afirmara em frente às câmeras não ter nenhuma ligação com o caso, mas claro, as provas apontavam o contrário. DNA de algumas das vítimas fora encontrado no local. Agora a polícia tentava fazê-lo confessar que assassinara as vítimas, o que não explicaria a barriga explosiva de Derick, mas certamente seria explicação plausível que acabaria com os questionamentos de um bando de jornalistas grudentos e familiares chorosos e revoltados. É claro, não conseguiram colocar palavras na boca de um inocente, mas o fato de o gordinho estar preso trouxe tranqüilidade à comunidade acadêmica, de modo que as aulas retornaram rapidamente.

– Graças a Deus prenderam o criminoso! – exclamara Jenna, ao me encontrar na manhã de retorno das aulas – Eu já estava com saudades do dormitório, não agüentava mais a casa dos meus pais, tendo de dormir com minha irmã gêmea...

– Você tem uma gêmea?!

– Claro! Nunca lhe contei? – ela riu – Ela não é maluca assim que nem eu, nem tão engraçada...

De fato, duvidava que a gêmea, ou qualquer outra pessoa, pudesse ser tão maluquinha quanto Jenna. Apesar de baixinha e aparentar fraqueza, Jenna era durona e enfrentava as pessoas se necessário. No entanto, me sentia na necessidade de proteger a garota. Eu era a mais velha do grupo, me sentia como uma mãe para as outras. Até pra Éden e Cherry, que eram apenas quatro anos mais novas.

– Ah finalmente podemos caminhar por este lugar sem temer por nossas vidas – sorria Éden, no horário do intervalo. Pessoas agiam de modo normal, como se dias antes um aluno não tivesse morrido e um funcionário parado atrás das grades. Embora os outros ainda estivessem sumidos, ninguém parecia se importar. – Já souberam do funeral do Derick? Querem fazer uma cerimônia solene.

– Ouvi que vai ser simbólico. – Cherry abaixou a voz, como que temendo ser ouvida – Me disseram que o corpo inteiro derreteu. Os legistas não sabem como explicar. Em todo caso, não há nem o que cremar.

– Então o tal Derick virou geléia? – riu Éden, ao que fiz cara feia.

– Não é hora pra brincadeiras, Ed!

– Ah esqueci que você tinha uma leve atração por ele – provocou ela – Até que era bem gatinho... Uma pena ele ter virado uma poça nojenta de sangue. Sabe, acho que você e ele teriam dado certo...

– Não seja boba! Eu tenho namorado!

– Ué, nada a impede de se divertir uma vez ou outra.

– Espera até o Damon ouvir você dizendo isso – Cherry deu risada.

– Ouvir o quê? – Damon caminhou até nós e, sem esperar por resposta, desatou a falar – Vocês não vão acreditar, mas bloquearam meu vídeo no YouTube. Logo agora que ele estava prestes a completar um milhão de acessos. Em todo caso, ouvir dizer que nosso amiguinho Derick virou geléia, de modo que não haverá uma cremação. Vocês não acham estranho que um corpo tenha apodrecido com essa rapidez? Quero dizer, era uma pessoa de carne e osso, que simplesmente se dissolveu... e cara... eu não queria estar no lugar dele...

– Sabem o que eu estava pensando? Ai, vocês vão me achar louca... – riu Cherry, escondendo o rosto por trás de um enorme livro de modismo europeu. A incentivamos a continuar e ela ficou muito séria – Pode parecer bizarro, mas vocês não acham que... bem, e se, de alguma forma, os desaparecidos têm ligação? Eu quero dizer, já ouvi falar de rituais que envolvem pessoas de determinado sexo ou idade. Por exemplo, uma vez ouvi falar de um ritual com virgens... Entendem o que quero dizer? Talvez a coisa com o Derick tenha sido uma espécie de ritual ou vingança. Cá entre nós, pra mim aquilo parecia coisa de bruxaria.

É, fazia sentido. Por que eu não pensara nas bruxas? É claro! Um único saquinho enfeitiçado escondido entre as coisas de Derick e pronto, ele virava geléia! Jenna fez cara de assustada, claramente pensando na possibilidade de Cherry estar certa. Eu me limitei a ficar calada, pensando com meus botões, enquanto Damon se dobrava de tanto rir e Éden ralhava com ele.

– Podem rir! Vou provar que estou certa! – Cherry marchou em direção à biblioteca e corri para alcançá-la.

– Ei, ei! Espere aí! Você realmente acredita nisso?

– Acredito! – ela se virou bruscamente, incrivelmente séria – Pode não parecer, mas eu me interesso por coisas obscuras. Já li sobre bruxaria e rituais pagãos. Não que eu queria fazer esse tipo de coisa, mas acredito que funciona. Derick é prova suficiente!

– Eu acredito em você!

– Mesmo? – fez cara de espanto. Levou uns segundos me encarando, analisando minha expressão como se decidisse se eu parecia estar falando sério ou tirando uma com sua cara – Não achei que acreditasse nessas coisas. Você parece um tanto certinha demais...

Ah se ela soubesse...

– Em todo caso – continuou -, estou indo à biblioteca pesquisar e talvez precise de uma mãozinha...

Killian não precisava saber que eu ia bancar o Sherlock Holmes...

***

Estranhamente, encontramos na biblioteca um antiguíssimo exemplar que tratava de bruxas e magia negra. O que aquele livro estava fazendo na ala de pesquisa nós não sabíamos, mas, por sorte, nos revelou muito do que precisávamos saber. Obviamente, eu já lera algumas coisas sobre bruxas, principalmente depois de descobrir que duas de minhas melhores amigas tinham feitiçaria no sangue. Mas meus conhecimentos não eram vastos, pelo menos não tanto quanto eu achava. Agora, porém, eu sabia o suficiente para abominar ainda mais as bruxas negras e querer dizimá-las. Cherry faria questão de esfregar o livro no nariz de Damon, mas eu a convenci a manter as descobertas apenas entre nós. Não era prudente sair revelando o mundo da magia negra pras pessoas.

O livro não tratava de rituais, de modo que não pudemos estabelecer ligação entre os oito desaparecidos e a horrível morte de Derick. Eu me lembrava de ter lido sobre um ritual de bruxa uma vez, mas envolvia crianças, não jovens. Tratava-se de um ritual realizado numa Lua de Sangue. Doze crianças, seis meninos e seis meninas – cada um nascido num mês –, sacrificados na noite da Lua de Sangue, dariam imunidade às bruxas de todo o mundo, de modo que elas seriam invencíveis. Killian dissera que esse ritual era uma baboseira sem tamanho, afinal, ainda era possível matar bruxas.

– Talvez se alimentem de pessoas – sugeri, a cabeça abaixada na mesa devido o cansaço. – Quem sabe algumas delas sejam como vampiros, que precisam de sangue? Isso explicaria o fato de os desaparecidos não terem sido encontrados. Talvez tenham começado a se alimentar de Derick antes de ele conseguir fugir. Ou algo assim...

– Faz sentido... – Cherry bocejou, fechou o livro e o repôs na prateleira – Preciso descansar, toda essa leitura me deixou tonta.

– Tudo bem. Eu vou pra casa.

Gancho estava caçando, como sempre. Ele e Graham estavam atuando como parceiros, o que eu considerava bom, uma vez que Grammy era um tanto solitário. Com Ruppy no colo, tentei me concentrar nos estudos, mas não parava de pensar naquele caso. Eu devia querer uma vida normal, longe de sobrenaturalismo (acabei de inventar essa palavra) e barrigas que explodiam. Começar a faculdade fora um incentivo a me afastar de tudo aquilo. Quando você se envolve no negócio das caçadas, direta ou indiretamente, passa a ver o mundo de outra forma. Depois do lobisomem, nunca mais consegui sair na rua sem temer por minha vida. É claro, eu não era tão paranóica a ponto de nem sair de casa, mas não posso dizer que me sentia segura, mesmo com Killian por perto. E agora, no entanto, não conseguia me distanciar daquela história. Prometera a Gancho que não iria me envolver e estava fazendo exatamente o contrário...

Minhas notas caíram desde que os “seqüestros” começaram. Achei que seria fácil conciliar vida normal com trabalho anormal. Querendo ou não, estava levando vida dupla e isso sempre me desgastava. Fingir que era a secretária de um renomado advogado; agir como uma jovem estudante, tão normal quanto os outros; e no tempo livre ler livros sobre criaturas e dar assistência a um caçador... Isso não era pra qualquer um.

Fui acordada pelo toque do celular às seis da manhã. Tateando cegamente, apanhei o aparelho barulhento e o levei ao ouvido.

– Alô...

Ruby, é a Éden! – a voz dela soava apressada, preocupada – Cherry está aí na sua casa?

– Cherry? – sonolenta, mal conseguia raciocinar – Não... por que estaria?

Ah meu Deus! Eu não a vejo desde que ela ficou com raiva por Damon ter rido dela.

Me sentei bruscamente, minha respiração falhando por breves instantes, conforme Éden continuava a falar.

Ela não veio para o quarto, a cama dela está intocada! – dizia ela, praticamente berrando em desespero – Ah meu Deus, meu Deus... Ela não atende o celular! Ruby, pelo amor de Deus...

– Calma, espera aí... Ontem à tarde, depois que saímos da biblioteca, ela fez o caminho do dormitório. – me ergui da cama e corri a apanhar uma muda de roupas – Talvez tenha acordado mais cedo e saiu pra caminhar...

Até parece que você não conhece a Cherry! Ela jamais acorda antes das sete e meia.

– Espere aí, por que só está me ligando agora? Não percebeu que ela não estava aí quando foi dormir?

Eu... ah, bem, eu não dormi aqui... fiquei no quarto de Damon e...

– Tá bem, já entendi! – coloquei o celular no viva-voz, enquanto me vestia rapidamente – T-talvez ela esteja com a Jenna... Você sabe como aquelas duas são malucas! Já foi verificar?

Jenna está aqui! – gritou Éden, esganiçada, quase me deixando surda – E me disse que não vê a Cherry desde ontem! Sabe o que significa? Minha melhor amiga foi seqüestrada!

Éden caiu no choro. Saí desembestada em direção à garagem, quase rolando escada abaixo ao descer os degraus correndo (não confiava mais no elevador desde que ele parara comigo). Em menos de dez minutos estacionava na universidade. Corri em direção aos dormitórios, driblando as pessoas nos corredores. Não vi um de meus professores vindo na direção oposta e trombei com ele, derrubando os livros e esboços que ele levava.

– Professor Midas! Ah meu Deus, me desculpe! – abaixei-me, catando o que caíra.

– Você está bem, senhorita Lucas? – perguntou ele educadamente, apanhando os esboços que eu lhe entregava – Parece um tanto preocupada. Aconteceu algo?

– O senhor não viu a Cherry por aí, viu?

– Cherry Moore? – ele pensou por uns instantes, tentando se lembrar – Não, sinto muito, querida. Não vejo a senhorita Moore desde ontem à noite...

– Ontem à noite? Onde foi que o senhor a viu?

– No jardim, caminhando com o senhor Salvatore. Talvez devesse perguntar a ele.

Abordei Damon quando ele ia saindo de seu quarto. Pelo visto, não sabia do sumiço de Cherry, pois agia da maneira usual. Mãos nos bolsos, um sorriso torto, assobiava enquanto gingava pelo corredor, cumprimentando as pessoas bocejantes (também inventei essa palavra) que estavam por perto.

– Boooom dia, senhorita Lucas! – disse ele, depositando um beijo em minha mão. Damon costumava ser cafajeste com as outras mulheres, mas era brincalhão e cavalheiro com suas amigas. Comigo não era diferente. Ele arregalou os olhos azuis para mim, arqueando as sobrancelhas – A que devo a honra de sua visita às... – verificou o relógio – às seis e meia da manhã?! Uou! A Senhorita Certinha resolveu acordar mais cedo!

– Cadê a Cherry? – fui logo perguntando, impaciente.

– Cherry? – franziu a testa – Não sei da Cherry... Minha namorada é a Éden, lembra-se? Mas já que mencionou a Cherry, poderia, por favor, dizer pra ela me perdoar por ter rido daquela teoria louca sobre bruxas? Você sabe, nunca tenho intenção de magoar minhas amiguinhas – ele passou um braço por meus ombros e foi me levando em direção a uma das cantinas. Estaquei e o forcei a parar e me olhar.

– Damon, Cherry sumiu!

– S-sumiu? Como assim sumiu?

Contei rapidamente tudo o que Éden me dissera e Damon franziu a testa mais uma vez, o que o deixava ainda mais atraente.

– Espere aí, Éden não dormiu comigo ontem à noite.

– Mas ela me disse...

Éden mentira pra mim. Seja lá o que ela estivesse fazendo na noite anterior, não queria que eu soubesse. Sem esperar por Damon, deslizei pelo chão de mármore branco em direção ao quarto que Éden dividia com Cherry. Sem me preocupar em bater, escancarei a porta. Encontrei Éden ofegante, as mãos apoiadas à parede, tremendo como se sofresse algo.

– O que foi, Ed? – atravessei o quarto e depositei uma mão em seu ombro. – Fique calma, nós vamos encontrar a...

Éden avançou em mim, incontrolável. Nem tive tempo de entender o que acontecia, desabei sob o peso do corpo dela, que abriu a boca revelando... Puta que pariu! Ah meu Deus, meu bom Deus... Os caninos dela estavam relativamente maiores e pontudos! Ela exibia um olhar ferino, sedento por sangue. Seus olhos vermelhos brilhavam como duas pedras rubis. Lutava contra ela, tentando mantê-la afastada de meu pescoço. Meu esforço era inútil, ela era muito mais forte, mais rápida e mais ágil. Seus sedosos cabelos negros me cegaram ao cair sobre meus olhos e, segundos antes de ela poder atacar meu pescoço, a porta se abriu bruscamente, com uma força que quase a arrancou das treliças.

Damon pulou sobre Éden, jogando-a contra a parede. Os dois se atracaram, medindo forças. Com uma rapidez incrível, rolaram pelo chão. Éden bateu a cabeça do namorado contra a parede e se livrou de seus braços, avançando em minha direção em seguida. Damon a segurou pela canela esquerda, arrastando-a pelo chão, para em seguida prensá-la contra o carpete. Me encolhi contra a parede, perto da porta, trêmula e sem fala. Éden jogou Damon para o lado, então se ergueu, agarrou-o pela camisa e o jogou contra a cama de Cherry, que desabou. Ela avançou para mim, as presas brilhando com a luz matutina que vinha da janela. Damon a agarrou por trás, segurando-a com toda a força que possuía. Os dois ainda lutaram por mais uns instantes, desferindo socos e pontapés um contra o outro. A cama de Éden quebrou e ela simplesmente bateu nas costas de Damon com um pedaço da cabeceira. Em resposta, ele despedaçou o abajur na cabeça dela, para então atirar o criado-mudo em sua direção. Ela desabou, um tanto atordoada, o que deu a Damon tempo de apanhar uma pequena bolsa de sangue na parte interna do casaco. Ele a ofereceu a Éden, que sorveu o sangue com avidez.

Tudo isso aconteceu em pouco mais de um minuto. Respirando sofregamente, me mantive estática, observando de olhos arregalados enquanto Éden se alimentava. Damon a segurava por trás, acariciando seus cabelos como se pedisse desculpas. Durantes longos minutos, nenhum de nós disse nada. Surpreendentemente, ninguém apareceu no quarto. Era de se esperar que as alunas dos quartos vizinhos acordassem com a barulheira. Supus que considerassem normal o barulho vindo do quarto de Éden, uma vez que... bem, ela e Damon pareciam animais ferozes quando estavam se agarrando. Quando ela pareceu saciada, largou a bolsa, ainda com um resto de conteúdo, e limpou o sangue que se acumulara em seus lábios e queixo. Damon me olhou, pela primeira vez muito sério, livrando-se do casaco de couro e avaliando o estrago que Éden fizera em sua camisa branca.

– E-eu posso explicar... – balbuciou Éden, recostada à parede, sem fôlego. As presas sumiram e seus olhos voltaram a se assemelhar aos de um humano.

– Não precisa – respondi num sussurro, quase sem voz – Eu já entendi tudo...

– Me desculpe, Ruby. Eu não me alimento há dias... seu sangue me atiçou... – abaixou a cabeça, envergonhada.

– Ela não consegue se controlar quando está com fome – explicou Damon, sentado no chão, ao lado de Éden. A camisa rasgada me permitia ver seu tórax definido – Ela não teve intenção de te atacar.

– V-você também é um... – não consegui terminar a pergunta. Damon assentiu.

– Pode sair correndo se quiser – disse Éden, me olhando como se esperasse que eu fizesse exatamente isso – Sei que está acostumada com esse tipo de coisa, mas... não é todo dia que se descobre que seus amigos são vampiros...

Ela disse: “sei que está acostumada com esse tipo de coisa”. Quer dizer que ela sabia quem eu realmente era? Franzi a testa e, antes que pudesse perguntar, ela riu:

– Eu sei... Acha que não reconheço um caçador quando vejo um? – ergueu-se, caminhando até mim e capturando uma mecha do meu cabelo – Você tem o cheiro dele, do seu namorado... Eu sabia, no momento em que o vi, que era um caçador. Ele tem o olhar duro de quem teme o que odeia. Você, pelo contrário, ainda está aprendendo. Tem o olhar de quem abomina as mentiras que conta para manter oculto um grande segredo: o mundo do qual você quer se afastar, mas não consegue... porque sabe que, por alguma razão, o destino quis que ajudasse a salvar vidas... É exatamente o que quer fazer por Cherry...

Soltei uma expiração que soou como um suspiro. Ela conseguira me decifrar, quando eu mesma tinha dificuldade de entender o que estava se passando comigo.

– Você sabe que pode ser uma caçadora, Ruby! – ajoelhada à minha frente, ela agarrou minhas mãos e olhou no fundo dos meus olhos – A coragem está aí dentro. Você sabe que pode, só tem medo de nunca mais se livrar dessa vida... porque quer continuar a ser normal...

Balancei a cabeça.

– Eu nunca fui normal. Mesmo antes dessa vida... nunca fui normal...

– Você sabe o que levou a Cherry? – perguntou Damon, que estivera muito calado.

– Não tenho certeza... pensamos que pudessem ser bruxas...

– É uma boa teoria. Eu ri porque Cherry não devia achar que acreditávamos nela. Ela não sabe de nós.

– Sabe sim! – revelou Éden.

– Você contou pra ela?! – Damon praticamente rosnou, seus olhos se estreitando. Temi que suas presas também fossem aparecer, mas ele nada fez.

– Foi há muito tempo. Eu quase a ataquei enquanto ela dormia, estava faminta e não consegui suportar o cheiro daquele sangue... – ela fechou os olhos e respirou fundo, o cheiro provavelmente vindo à sua memória – Por sorte, ela tinha um crucifixo pendurado ao pescoço, aquilo me afugentou para longe. Depois disso Cherry virou minha melhor amiga. Nunca me julgou, manteve o segredo. Eu preciso salvar minha amiga!

– Podem encontrá-la pelo faro? – levantei a custo, apoiando-me à parede. Minhas pernas estavam tão bambas que não sabia como suportaram meu peso.

– Eu posso fazer isso, Éden precisa se alimentar, ainda está fraca. – Damon acariciou o rosto da namorada, que assentiu. Ele então apanhou o travesseiro de Cherry, cujas penas vazavam por um buraco. Levou-o ao nariz, aspirando. Seus olhos imediatamente ficaram vermelho-vivo e ele saiu para o corredor, farejando, dizendo que não demoraria.

– Éden... – comecei, meio sem saber como perguntar – onde esteve ontem à noite? Por que não ficou com a Cherry?

– Eu estava caçando! Faz alguns dias desde minha ultima refeição, estava enlouquecendo... Sei o que está pensando... Acha que todos os vampiros são ruins, sanguinários... Eu não sou assim, Ruby, eu não queria ser isto. Damon e eu fizemos um pacto quando nos conhecemos. Não atacamos inocentes, apenas pessoas ruins, pessoas das quais o mundo não precisa.

– Quer dizer... você matam?

– Sim. Mas não atacamos inocentes. A não ser que estejamos insaciáveis. Não fazemos por mal, nunca matamos inocentes... Quando Damon me transformou, não tinha intenção de me matar. Sei o que vai pensar, mas o que eu podia fazer? Me apaixonei por ele... o cara que fez isto comigo... Em todo caso, nem me importo mais. Estou nessa há 400 anos!

– 400?! Espera... você não devia ser um pouco pálida?

Ela gargalhou.

– Querida, já ouviu falar em bronzeamento artificial?

Damon surgiu à porta.

– Ela está aqui! Está nesse campus, no subsolo!

– Subsolo? Um porão ou algo assim? – indaguei.

– Não sei, você vai ter que descobrir... – ele atirou o travesseiro esburacado de Cherry pra dentro do quarto.

– Você não vai comigo? – franzi a testa.

– Não, não posso! Não só localizei Cherry, como também um caçador.

– Que caçador? – arregalei os olhos e Damon apontou pela janela para uma figura que atravessava o jardim frontal.

Jefferson...


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "'Til We Die" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.