O homem de cabelo branco escrita por Marimisty


Capítulo 3
A luz do túnel- parte 2


Notas iniciais do capítulo

Resolvi retomar a fic depois que eu já tinha abandonado, graças a um comentário. Comentários incentivam bastante, então comentem mesmo em todas as fics ♥ (Principalmente de animes como mushishi que o fandom é quase deserto). Espero que gostem do capítulo, foi feito com muito carinho!



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“Natsu...” ele ainda podia ouvir a voz de sua mãe ecoando “Natsu, não fique bravo com seu pai, ele tem trabalhado muito”, ele deitava-se ao lado dela e a sentia afagar seu cabelo. Ela era sempre tão quente, tão pálida, tão rouca... Estava sempre doente, desde que Natsu nascera.

Era difícil viver numa casa tão afastada, e com tantas tempestades a plantação morria frequentemente. Com a mãe o tempo todo de cama, o pai ficava sobrecarregado e irritável. Embora pequeno, Natsu entendia a responsabilidade e a ausência do pai, mas não era isso o que o incomodava. O pai era sempre tão frio. Seu olhar era sempre tão acusador.

Natsu sabia, sem muitos detalhes, de uma longa história de amor e felicidade. De um camponês pobre que lutara para construir uma casa e poder desposar uma bela mulher. Eles se amavam e enfrentaram juntos muitas críticas e dificuldades. Quando conseguiram, viveram alguns anos de alegria plena, de uma rotina simples e próspera, que daria inclusive um outro livro, mas esta não é a nossa história. O camponês queria muito ter filhos, então depois de nove meses Natsu veio ao mundo chorando em plenos pulmões. A mãe, que já tinha uma saúde frágil, nunca se recuperou.

E talvez tivesse melhorado o suficiente para caminhar e fazer pequenas atividades caso não insistisse em amamentar e dedicar-se tanto ao filho após o parto. O pai implorou para que deixassem Natsu com alguma família na vila, mas aos olhos da mãe ele era tão pequeno e parecia ainda mais frágil que ela. Doía ao pai cada vez que via a esposa debilitada, e ali ao lado dela aquela pequena criatura sugando sua saúde. Foi você. Natsu passou anos tentando entender o motivo daquela indiferença em sua mente infantil.

Porém quando estava ali, aninhado no colo da mãe, Natsu até esquecia essas questões complexas do mundo adulto. Ela o olhava com ternura e sussurrava seu nome. Sim, ela era sempre tão quente... talvez devido às constantes febres ou ao amor ardente que tinha à sua família, apenas esse amor a manteve viva por um longo tempo. Tão quente até aquele dia. Aquele dia em que suas mãos ficaram geladas e seus olhos se fecharam, quando o garoto aterrorizado constatou que ela não respirava.

Ele chorou por muito tempo sem acreditar, e chorou ainda mais ao pensar na reação do pai. Fechou-se no quarto e esperou o cair da tarde, quando o homem voltava da lavoura. Cada minuto era infinito, a tarde parecia se arrastar, até que o sol foi se pondo e o tempo nublado, de dia cinzento, deu lugar a uma noite vermelha. Seria a primeira tempestade daquela estação.

O pai finalmente chegara. Natsu encolheu-se, com seus dedinhos levemente tremendo apagou a vela do seu quarto, esperava se esconder no escuro. O som dos grilos, um trovão ao longe, passos no corredor. Ouviu a porta do quarto da mãe sendo aberta. Alguns instantes de silêncio, ele não saberia dizer quantos. Então novos passos no corredor, viu a luz da vela do pai pela fresta debaixo da porta. O pai estava parado ali em frente. Silêncio. Por que não entrava? Natsu tremia com medo daqueles olhos, tinha medo de ficar sozinho, tinha medo de o pai estar certo. Seria ele realmente esse monstro assassino de sua própria mãe? Não! Não! Eu nunca quis isso! Natsu não conseguiu abafar um pequeno soluço.

–-Eu vou caçar.— a voz do homem ecoou do outro lado da porta, baixa, desprovida de sentimento. Natsu podia sentir o olhar acusador atravessar as barreiras e atingi-lo em cheio.

Então o pai se moveu, o garoto pôde ver a luz da vela se afastando no corredor até sumir. O pai simplesmente foi embora. O garoto ficou dividido entre a confusão e o medo, e pouco depois do homem deixar a casa o temporal desabou. Natsu correu para o quarto da mãe, encheu-a de cobertores, abraçou-se a ela para aquece-la, assustado pelos trovões, pela chuva e pela solidão.

Temia que o pai o abandonasse e temia que o pai voltasse. Como seria a vida depois daquela noite? Queria chorar, pedir desculpas, se ajoelhar, implorar, mas desculpas pelo quê? Ele também estava sofrendo!

Mas quando o pai voltou na manhã seguinte não tinha mais aquele olhar. Não tinha mais olhar nenhum, parecia sempre sonhando acordado. Não falava nem fazia nada. Como um casulo vazio.

–-E quanto tempo você ficou desse jeito?

–-Eu não sei.— respondeu Natsu, cabisbaixo. Estava magro e sujo, apenas a sombra do garoto rosado que fora antes.—uns meses.

–-Nossa, pobrezinho!!—a garota (Yuki) o olhou cheia de pena e carinho, ela lembrava-lhe sua mãe, alguém que queria logo esquecer. —Você não tentou buscar ajuda? O que comeu esse tempo todo?

–-Eu pegava frutas e ovos na floresta, e tinha comida aqui o armazém.—o pequeno respondia inseguro—mas, eu sempre me perdia quando ia mais além... tinha medo de não conseguir voltar e deixar meu pai.

O garoto olhou para o canto onde Ginko examinava o homem magro e doentio, que parecia nem se dar conta que estava sendo examinado. Era o tempo todo alheio a tudo, comia, dormia, mas não era capaz de raciocinar ou reconhecer nada, tampouco se lembrar.

–-Você sabe aonde ele foi caçar na noite em que aconteceu isso?— o mushishi perguntou, sem tirar os olhos do paciente.

–-Acho que foi perto da trilha. Ele sempre ia caçar veados lá...

–-Ele voltou molhado ou sujo? Pegou algum animal?

–-Não. Ele voltou seco, só um pouco sujo de terra.

–-Ele voltou seco... sabe algum lugar que ele possa ter se abrigado da chuva? Uma gruta talvez?

–-Não tem grutas aqui, as casas mais perto estão na vila.— Natsu respondia, sem entender o objetivo de todas aquelas perguntas.

Hm... Ginko analisava os olhos, a boca, os ouvidos, a pele, o pulso, mas estava tudo aparentemente em ordem. Havia pouca informação e infinitas possibilidades.

–-O metabolismo está normal. Tenho certeza de que é algum mushi parasita.—declarou, enquanto afastava-se do homem e acendia um cigarro.

–-Você pode curá-lo então? Vai ficar tudo bem?— Yuki deu um salto, cheia de esperança.

–-Ah, não é bem assim...—Ginko caminhou até a janela—Existem milhares de Mushis catalogados e ainda mais não catalogados. Esse não é um caso comum, só pesquisando muito pra ter certeza. Vou encaminhar esse caso pra outro mushishi.

–-O quê? Você não pode resolver?

Não era como se ele não quisesse ou não tivesse capacidade. Eles não podem ver, só eu. A casa estava cheia e mushis, mushis retorcidos e disformes que se alimentavam da sujeita e da escuridão. Estavam se aglomerando muito rápido ao redor dele, nem o tabaco mushi estava mais surtindo efeito. Sem possibilidade de eu ficar aqui.

–-Tenho que partir—ele falou—Quando chegar na próxima vila vou avisar as pessoas dessa situação. Talvez haja um médico ou alguém para cuidar do garoto.

–-Não íamos passar a noite aqui? Quer dizer... não pode deixar esse menino aqui sozinho... não com aquele cadáver..—Yuki reclamou, puxando a manga da camisa do mushishi.

–-Você quer vir também então?— ele convidou o garoto, surpreso com sua própria prestatividade. Quando foi que comecei a andar em caravanas? —Até o vilarejo.

Natsu espiou com seus olhos chorosos o pai encostado no canto da sala.

–-N-não posso... Não posso deixar meu pai aqui sozinho.

–-Ele pode vir também!— Yuki precipitou-se

–-Não, não pode. Ele vai nos atrasar ainda mais. Não podemos esquecer que tem outra tempestade a caminho. Quanto mais cedo formos, mais cedo enviaremos ajuda.— Ginko cortou. Era preciso ser racional, pensar no futuro.

–-Mas, não podemos fazer nada? Nadinha?!—os olhos da garota se encheram de lágrimas, era a primeira vez em sua vida que via pessoas em estado tão deplorável. Como coisas tão ruins podiam acontecer? Ela olhou pra Ginko, ele parecia estar bem calmo. —Como você consegue ficar tão indiferente?—enfureceu-se

–-Não é isso, é que...—não havia como explicar. O peito de Ginko se encheu de um sentimento desconhecido, semelhante a ternura. Ele havia estado tanto tempo vagando sem rumo, vendo o que há de mais lindo e mais obscuro da vida, ajudando famílias, casais, vilas, mas sempre estado tão alheio. Ginko conhecera o sofrimento e o pior lado das pessoas, o mundo era cruel, o que se podia fazer? Yuki derramava lágrimas por estranhos, ainda era inocente e cheia de sonhos. Ginko até sentiu uma pontada de inveja, será que algum dia ele tinha sido assim? Antes de perder a memória, talvez?—Mas, acho que podemos fazer algo antes de ir.

Abriram as janelas da casa para que o sol entrasse (Natsu havia fechado, com medo), Yuki cortou os cabelos do garoto e seu pai. Sobrou pra Ginko cavar no quintal a cova mais funda que podia e colocar o defunto da mãe lá, já que Yuki ficava com náuseas só de senti o cheiro. Ao anoitecer fizeram o enterro. Um enterro bem esquisito nos fundos da casa, com uma estranha chorando como se conhecesse a família, um marido olhando para o nada como um vegetal e um mushishi reclamando internamente que estava cansado de cavar e enterrar. Natsu também chorava: Adeus, mamãe.

Ginko aproveitou um momento de distração para tentar sair sem que Yuki o percebesse, mas quando ainda estava no começo da trilha ouviu um “Ginko-saaaan!”, seguido pelo barulho de alguém correndo sobre as folhas secas.

–-Não tente se esconder, eu estou vendo a fumaça!—Yuki reclamou.

–-Por que não fica com eles na casa até a ajuda chegar? Pode ajudá-los, e é mais seguro que a estrada.—ele sugeriu, saindo detrás de uma árvore. Maldita fumaça...

–-Se eu quisesse ficar segura cuidando de uma casa, um homem e uma criança não teria nem saído do meu vilarejo.—ela retrucou, uma resposta que não admitia questionamentos.

A trilha continuava ainda mais bonita sob a luz do crepúsculo, mas a imagem daquela criança abandonada e do cadáver em putrefação não saía da cabeça de Yuki. Ela nunca imaginou que coisas assim existissem na vida real. Um trovão interrompeu seus devaneios.

–-A chuva vai nos pegar de novo.—Ela comentou, mal via a hora de saírem daquela região chuvosa.

Ginko observou o céu e tirou o cigarro da boca, algumas ideias começaram a lhe ocorrer. Estavam na mesma trilha, no mesmo horário e na mesma situação climática de quando o pai saíra pra caçar. Ele com certeza procurava um abrigo, e encontrou, já que não voltou molhado, entretanto não havia cavernas nem casas próximas... Quando uma pessoa quer se abrigar o que ela procura? O que poderia chamar sua atenção no meio de uma floresta à noite?

–-Garota.

Yuki olhou surpresa.

–-Ontem... como você me encontrou? Como achou a caverna?

–-Deixa eu me lembrar...—ela murmurou. As lembranças da tempestade eram meio confusas e borradas—Foi a luz da fogueira, eu acho. Sabe, estava tudo escuro e foi a única coisa que eu vi.

–-Hm. Se vir alguma luz me avise.

A lua desceu sobre a floresta, quase encoberta pelas nuvens de chuva. Ginko podia ver o rio de Kouki emanando luz debaixo deles e dezenas de mushis pequenos e luminosos pairando no ar, mas nada disso uma pessoa normal podia ver.

Depois de alguns minutos de caminhada em silêncio Yuki avistou um pequeno brilho entre as raízes de uma grande árvore, era tão suave que nem teria dado atenção se não fosse pelo pedido do mushishi. Era um brilho azulado, que ondulava às vezes. Eles afastaram as raízes e surpreenderam-se ao ver que a luz era mais forte do que parecia ser a princípio e era irradiada por um buraco no chão. O buraco entre as raízes era grande o bastante para a entrada de uma pessoa de cada vez, fazia uma curva e parecia continuar no subterrâneo, como um túnel.

–-Vamos entrar?—Yuki estava impressionada

–-É preciso ter cautela, buracos são perigosos, tem os loopings de tempo, buracos de minhoca, vácuos onde a pessoa podia ficar perdida pra sempre e... garota?—Ginko olhou para os lados mas estava sozinho.

–-Meu Deus! Você precisa ver isso!!—gritou uma voz de dentro do túnel.

–-Obrigado por me deixar falando sozinho.—ele murmurou enquanto entrava no túnel. Essa menina vai acabar se matando. E me matando.

–-Essa é a coisa MAIS LINDA que eu já vi!

O túnel não era muito grande e acabava numa câmara subterrânea média, com o chão de terra e pedra e o teto sustentado por raízes. No centro, numa cavidade, havia se formado um pequeno e raso lago de águas cristalinas, provavelmente da água de alguma chuva que conseguira penetrar o túnel e se acumular ali. Dentro do laguinho havia dezenas de pontinhos de luz, como estrelas de uma pequena galáxia. A água projetava o brilho nas paredes, fazendo a câmara inteira ficar iluminada de um jeito mágico, como numa atmosfera de sonho.

–-Incrível...—Yuki murmurou, meio hipnotizada, esticando a mão para tocar em um brilho na água. Eles eram lindos, miudinhos, pareciam ter vida própria. Seus dedos estavam perto, queria tanto senti-los... Deve ser a sensação de tocar uma estrela.

–-O que está fazendo?!—Ginko vociferou e correu como um raio, empurrando-a antes que ela pudesse alcançar a água. Yuki caiu pra trás assustada.

–-Ai, o que foi? Você me machucou!

–-Garota maluca! Não está vendo as cobras?!

Yuki franziu as sobrancelhas. A água era totalmente cristalina e iluminada e não havia nada nela. Esse negócio de ser mushishi deve afetar a cabeça...

Ginko percebeu pela expressão perplexa da garota que ela não via nada, mas lá estavam elas deslizando no lago. Quatro grandes cobras negras ziguezagueando entre as luzes, mas se Yuki não via é porque não eram apenas cobras. Olhando mais de perto as criaturas não tinham olhos e nem narinas.

–-Claro!— Ginko lembrou-se subitamente. Sentou no chão e abriu a mochila, abriu um dos compartimentos e pegou o pergaminho. Lá estava o desenho da cobra seguido de algumas informações. O mushi de águas calmas.—Bem que eu imaginei.

–-Será que dá pra me explicar o que está acontecendo aqui?—Yuki aproximou-se aborrecida, tentando espiar o pergaminho.

–-O mushi parasita é o Kuro-hebi. Eu desconfiei, mas descartei a hipótese porque ele costuma viver em lagoas e rios e o caso não parecia ter conexão com nada disso. É um mushi pacífico que se alimenta do movimento das ondas, mas quando entra em contato com alguns animais como o ser humano, passa a comer as ondas de suas atividades cerebrais como as lembranças e os pensamentos. Algum rio deve ter transbordado, não sei como, mas eles vieram parar aqui.

–-Não tem nada nessa água. São esses pontinhos?

–-Não, esses pontinhos são outro tipo de mushi mais raro. Um dos poucos que pessoas normais conseguem ver. Poucas pessoas nascem com a capacidade de ver os mushis, por isso você não está vendo.

–-Que horror...-Yuki imaginou as cobras nadando pelo lago e estremeceu pensando que poderia ter ficado como o pai do garoto—Mushis são criaturas cruéis.

–-Não são cruéis.—Ginko encostou-se na parede, respirou fundo e soltou a fumaça pela boca.—Não pode culpá-los. Todos estão apenas vivendo do jeito que são.

Essa frase estava cheia de nostalgia, de quando exatamente ele não sabia. Teve várias vezes o mesmo sonho onde via uma mulher com longos cabelos brancos como ele, ela sussurrava essa frase e dava-lhe as costas. De alguma forma ele sentia-se conectado e sabia que ela era a resposta pra todas as suas perguntas, ou pelo menos a maioria delas. Mas, ela sumia. Ele tentava correr atrás dela e de repente tudo ficava escuro. Ouvia sussurros. Dê o seu olho. Lembre seu nome. Seu nome? E então ele ia sentindo sua memória se apagando, já não conseguia se concentrar em nada. Milhões de imagens aleatórias passavam em sua mente. Seu olho. Seu nome. Qual era seu nome mesmo? De repente não sabia mais seu nome. Procurava desesperadamente algo para se apoiar. Lembre-se de algo. Lembre-se de seu nome ou a escuridão vai te devorar. Ele tentava, mas milhões de coisas passavam por sua cabeça sem que ele conseguisse se concentrar em uma. Estava sendo consumido, precisava de uma palavra. Precisava do seu nome.

Ginko.

E então ele acordava ofegante em alguma hospedagem ou em algum acampamento. Ou em uma trilha ou em um gramado sob a luz das estrelas. Forçava-se a reprimir os pensamentos e dormir de novo, pois no dia seguinte teria uma longa estrada pra percorrer.

O barulho da chuva despencando o fez voltar à realidade. Ginko e Yuki arrumaram as coisas para passar a noite no túnel.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por me acompanhar até aqui! Em breve novas aventuras... (que poderão sair mais rápido com a ajuda de favoritações e comentários hehe)
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Estou feliz de ter retomado, é a minha primeira fic e até agora são três capítulos relativamente grandes... Obrigada a todos!