Licantropia: A Reserva escrita por Paulo Carvalho


Capítulo 25
Capitulo 24: Um último boato.


Notas iniciais do capítulo

E aí, gente, tudo bom? Atrasei um dia, mas em minha defesa o capítulo tava pronto, eu que achei que hoje era domingo, ahahahah.
Bem, mais um capítulo.
Espero que gostem e desculpem pelo tamanho.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/521802/chapter/25

–--Mas quem descobriu sobre nós? --- Anna levantou a mão como fazia em quase todas as aulas. ---Quem foi o primeiro a descobrir sobre nossa existência?

Sam parou por um momento e observou as cinco crianças que lhe encaravam com os olhos cheios de curiosidade. Aquelas crianças lhe lembravam de seus amigos no orfanato. Eram as únicas em toda a Reserva que não riam dela ou lhe batiam quando chegava perto demais. Todas eram igualmente ignoradas e entendiam seu sofrimento. Aqueles meninos, com suas roupas remendadas e olhos enormes, pareciam entendê-la da mesma forma.

Anna tinha oito anos e era como uma versão mais jovem de Caly com olhos verdes e cabelos cor de areia. Zarin e Melanie devia ter algo em torno dos 10 anos e não se desgrudavam em nenhum momento. Aaron era o mais velho, com 12 ou 13 anos, mantendo-se calado e com os olhos fixos em Sam como se estivesse tentando absorver ao máximo. Daren era o mais novo com sete anos. E o mais inteligente, também.

Sam deixara o Defumador há algumas semanas a pedido de Raniah para ajudar as poucas crianças da alcateia a aprender a ler e escrever. Todos na Reserva aparentemente poderiam fazer isso, contudo, nenhum deles tinha a ´´didática`` de Samantha de acordo com Ran. Ela aceitara prontamente a possibilidade de deixar a fogueira gigante responsável pelas queimaduras na sua mão e suas quedas de pressão.

Inicialmente sua função fora basicamente ensinar às crianças a ler e escrever com mais fluidez e auxiliar na alfabetização do pequeno Daren, mas rapidamente seu trabalho se expandiu em mostrar a eles tudo o que ela havia aprendido durante seus dezoito anos na Reserva.

Até seus doze anos, sua educação resumia-se a escola que atendia a Cidade Protegida. Ela aprendera a ler, escrever, fazer contas simples. Apenas quando ingressara no treinamento militar aprendera sobre política, história, biologia avançada, primeiros socorros, física e química. E era isso que ensinava as crianças depois que elas se entediavam de ler os livros rasgados que Soren encontrara em alguma local da cidade. A maioria continham assuntos desinteressantes às crianças, discutindo sobre questões filosóficas e políticas do passado que não tinham mais sentido.

Para Aaron ela mostrava tudo que sabia sobre biologia explicando o funcionamento do corpo humano, diferenciando espécies venenosas dos mais diversos animais e mostrando a ele como cuidar de ferimentos. Também lhe mostrara a química por detrás das plantas que podiam tanto curar quanto matar, além dos truques de cinética e dinâmica que poderiam auxiliar durante um combate. Zarin e Melanie se interessavam mais pela geografia do que antes fora o Arizona e adoravam ouvir as histórias sobre a vida das pessoas comuns que moravam na Reserva. Daren era o mais inteligente de todos e aprendera a ler e escrever, tornando-se tão fluente quanto os outros em questões de semanas. As contas, de somar e subtrair, foram assimiladas ainda mais rapidamente, e a multiplicação e divisão quase o entediavam de tão fáceis.

Sam sabia que se ele estivesse na Reserva estaria no preparatório de elite que trabalhavam com crianças prodígio de sua idade. Mas era Anna quem fazia as perguntas mais adultas. Ela não se interessava por histórias bobas das crianças no orfanato ou o que elas faziam para se divertir. A menina lembrava-a muito de si mesma, na verdade.

–--Ninguém sabe ao certo, Anna. ---Sam respondeu. ---O mito dos licantropos existe há muitos séculos. Muito antes da Guerra, já existiam lendas sobre os lobisomens. Criaturas que se transformavam em feras durante a Lua Cheia e eram feridas com prata. Vocês não são assim, obviamente, mas há muitas semelhanças entre os dois. Existem teorias de que os governos pré-Guerra sabiam da existência de vocês e por alguma razão resolveram impedir o avanço da infecção ou que o vírus foi criado por biogeneticistas em laboratório. São muitas possibilidades.

A menina ficou pensativa por um tempo, mas acenou positivamente depois de alguns minutos. Os outros ainda estavam terminando suas lições e, um a um, eles foram embora conforme terminavam, despedindo-se alegremente. Daren foi o último a acabar, pois se distraia o tempo todo com os pássaros amarelos que procuravam comida na árvore mais próxima. Ele por fim entregou uma folha de papel cheio de rabiscos mostrando equações algébricas com resoluções impecáveis. Na borda de toda a folha estavam desenhados pássaros idênticos aos dois que ainda caçavam insetos entre as folhas amareladas da árvore.

–--Sam, posso ficar aqui com você? ---Anna perguntou enquanto tirava a poeira da calça jeans um pouco grande para ela.

–--Claro, Anna. ---Sam sorriu. ---Alguma razão em específico para você querer ficar aqui?

–--Não. Eu só não tenho mais tarefas hoje e estou entediada. Pensei que talvez ficando aqui eu pudesse me distrair. ---Ela respondeu erguendo os ombros magros e pontudos.

Por alguns minutos elas ficaram em silêncio. Sam gostava de ficar com as crianças na área próxima a cerca que protegia a entrada de animais na cidade. Aquela área era geralmente mais vazia e calma e som da água corrente do lago e os pássaros que voavam de um lado para o outro era relaxante para ela e cativante para os meninos.

Sam se recostou no banco de pedra rachado que estava sentada e deixou a cabeça pender para fora do apoio, encarando um pedaço de céu azul por entre folhas amarelo-esverdeadas de árvores que ela nunca vira na Reserva. Tudo parecia tão em paz que seus pulmões se encheram espontaneamente do ar frio que corria e cheirava a vida e liberdade. O rosto bronzeado de Soren surgiu de forma intrusa em sua cabeça, fazendo-a sorrir.

–--Você pode me contar de novo sobre a história da Doença da Prata? ---Anna pediu algum tempo depois de silêncio.

–--Claro. ---Ela respondeu e encarou os enormes olhos verdes da garota. Eram como enormes esmeraldas que refletiam seu rosto como um espelho. ---O que você quer saber exatamente?

–--Como criaram essa doença? ---Anna perguntou primeiro. ---Não. Como ele funciona? Como se é infectado.

Sam contou-lhe tudo novamente. Talvez pela quarta ou quinta vez. Todos os detalhes ainda frescos em sua memória. As lembranças de uma Samantha mais nova vendo vídeos do vírus infectando células humanas e depois células de Filhos da Noite. Do geneticista explicando todos os detalhes técnicos da Doença e seu sorriso satisfeito.

–--Então essa doença é como a cura? ---Anna perguntou subitamente.

–-- De certa forma sim, Ann. ---Sam se virou com uma pontada de curiosidade. --- Mas, por alguma razão, quando a Doença da Prata mata o vírus, vocês também morrem. Não sei a razão. Talvez o choque seja muito forte. Mas inevitavelmente... se o outro vírus vencer é o fim.

A menina se encolheu ao final da frase e parecia estranhamente desconfortável. Ela se sentou novamente no banco de pedra e ficou encarando o lago resplandecente do outro lado da cerca com uma expressão vazia e melancólica.

–--Posso te fazer uma pergunta, Anna? ---Sam perguntou o mais suavemente possível e a menina apenas assentiu distraída. ---Por que você está sempre tão interessada por essa doença? Não é a primeira vez que me pergunta sobre ela. É apenas curiosidade?

–--É... ---a menina franziu a testa e seus olhos pareceram ficar mais brilhantes. Sam notou que eram lágrimas que ameaçavam cair. ---É o meu pai. Ele tem a doença. Começou há meses atrás quando nós ainda estávamos próximo às Reservas a oeste. Ele estava em um dos grupos de caça e acabou encontrando um grupo de Patrulheiros. Nós vencemos, mas meu pai foi infectado por um deles. Um deles carregava o vírus e o contato com meu pai...

–--Foi o suficiente para o vírus ser transmitido. ---Sam respondeu mais para si do que para Anna. Ela se lembrava das aulas de biologia sobre a Doença da Prata. Era um mecanismo genial, na opinião de todos na Reserva, atuando como um soldado invisível. O Último Soldado, ela se lembrou do apelido que o vírus recebera.

–--Exatamente. Ele voltou da caçada sendo carregado por Soren e Amish e parecia apenas estar machucado. Um dos patrulheiros acabou cortando-o na perna com uma faca e achamos que talvez a arma pudesse estar envenenada ou algo do tipo. Acreditávamos que ele fosse melhorar em algumas horas ou dias como sempre acontece quando ficamos doentes ou nos machucamos. Mas só piorou. Começou com febre alta, dores de cabeça. Depois ele passou a vomitar sangue, a ter problemas respiratórios e feridas começaram a surgir no seu corpo. Eu não posso sequer vê-lo. Eles acham que vou me contaminar se...

Sam notou que a garota estava chorando e seu corpo tremia. Ela parecia muito pequena e frágil naquele instante. Como se uma ventania pudesse quebra-la em vários pedaços. Foi instintivo e impensado. Samantha não considerou o fato que a menina poderia se sentir ameaçada ou que algum licantropo que estivesse próximo pudesse vê-la e não gostar daquilo, mas Sam apenas abraçou a garota. E se surpreendeu a notar que Anna estava se encolhendo em uma bola nos seus braços.

–-- Eles estão certos, Ann. ---Sam ela tentou acalmar a menina, mas não sabia como.

–--Mas Serena cuida dele. ---Anna se queixou. ---Por que elas podem e eu não?

–--Eu...não sei. Alguns de vocês são imunes à Doença.

–--Meu pai e eu... encontramos o grupo de Raniah depois de quase um ano sozinhos nas florestas ao Norte. --- Anna começou a falar muito rápido. --- Nosso antigo grupo foi detectado pelos Rasantes e as tropas da Reserva mais próxima invadiram nosso acampamento no meio da Noite. A maioria de nós foi morta naquele dia. Eles destruíram tudo o que tínhamos qualquer suprimento que alguém que tivesse fugido pudesse usar para sobreviver. No dia seguinte quando meu pai voltou procurando por sobreviventes tudo que ele encontrou foi uma pilha de corpos queimados. Eu não vi porque ele tapou meus olhos. Quando um grupo de Hounds nos encontrou, ele me escondeu e fugiu por dois dias seguidos para afastá-los de mim. Eu quase me afoguei, fui morta por pumas, quebrei a perna dezenas de vezes desde que nosso bando foi destruído. Meu pai estava lá sempre. Me protegendo. Meu pai cuidou de mim desde o momento em que nasci e eu não posso nem mesmo ficar perto dele quando ele está...mo...

–--Qual o nome dele, Ann? ---Sam perguntou. Não queria ouvir aquela garota pequena e frágil de oito anos de idade admitindo que seu pai iria morrer.

–--Greg....Gregory. ---ela respondeu entre soluços.

Ela se lembrou do nome e de Caly mencioná-lo. Uma súbita memória surgiu em sua mente. Nos primeiros dias de cativeiro quando fora capturada por Dragan, Serena e Soren. Eles estavam em uma cidade abandonada qualquer caminhando rumo à alcateia. Sam estava descansando sobre uma pilha de pneus novos, amarrada e contando as horas até sua morte. Serena e Dragan estavam procurando por suprimentos e então um deles dissera algo sobre Gregory. Encontrei morfina, esterilizantes, agulha e linha. Não é muita coisa, na verdade, a maioria estava estragada, mas ainda assim...Gregory poderá dormir melhor quando chegarmos.

Há quanto tempo ela estava ali? Três meses? Quatro meses? Ela não tinha a menor ideia, mas era tempo suficiente para que a Doença da Prata tivesse feito seu trabalho. Sam nunca ouvira falar de alguém suportando o vírus por tanto tempo e imaginou como o pai de Anna deveria estar naquele momento. Sua imaginação lhe causou calafrios.

Sam olhou para a menina mais uma vez e sentiu algo no fundo de seu peito se apertar. Ela não conseguia imaginar o que a garota deveria estar sentindo naquele momento e aquilo a fazia se sentir ainda pior. Em sua cabeça uma meia centena de ideias passava de um lado ou outro como os Rasantes que cortavam o céu volta e meia.

–--Eu poderia vê-lo, Anna? ---Sam perguntou enquanto lentamente um plano surgia em sua cabeça.

–--É por ali, Sam. --- Anna respondeu. ---Eu não posso ir mais longe do que isso. É a casa número 357.

A menina havia lhe levado até a área mais confusa da cidade onde escombros, construções caindo aos pedaços e caos reinavam. Tudo estava parcialmente encoberto por objetos quebrados, queimados e revirados. Havia meia centena de casas exatamente iguais separadas por poucos metros umas das outras.

As janelas das construções estavam fechadas com tábuas de madeira ou o vidro estava quebrado e haviam substituído por papelão. Havia pichações do que poderiam ser antigos clãs de Filhos da Noite, mas pareceram muito mais antigas a Sam. Uma delas dizia: Eles vivem aqui há muito tempo. Outra falava: Nem mesmo a Bíblia podia prever isso. Sam tinha um conhecimento muito parco sobre o que era religião. Tal coisa não era muito presente nas Reservas, mas havia os adeptos e até mesmo uma pequena Igreja na parte mais ao leste da Cidade Protegida. A Bíblia não era algo que ela tivesse visto ou tocado durante seus dezoito anos de vida, mas o conceito não lhe era estranho.

Ela caminhou por mais um tempo tendo que desviar das mais variadas ruínas. Ela passou pelo que parecia uma escola na qual desenhado no gramado, com tinta branca, estavam escritas as letras: S.O.S. Sam viu centenas de construções que pareciam abandonadas as pressas com mensagens que amaldiçoavam, perdoavam e suplicavam. Ela viu túmulos feitos às pressas e sentiu algo estranho no fundo de seu estômago. Quantas pessoas haviam morrido naquela Guerra? Por qual lado? Teriam sido só os licantropos, os responsáveis, como ensinavam na Reserva?

–--353, 355...357. ---ela finalmente chegou à casa de dois andares onde Anna havia dito que cuidavam de seu pai.

No gramado apodrecido da frente havia uma placa enorme escrita com carvão que dizia: Não entre, risco de contaminação. Abaixo da frase havia um R enorme que evocou o rosto de Raniah imediatamente na mente de Samantha. Ela quase sorriu ao ver aquilo. Havia dois carros estacionados de forma estranha atrás do aviso e Sam notou que era uma cerca improvisada uma vez que a antigo portão de ferro havia há muito caído. Ou derrubado, Sam pensou.

Ela pulou por cima de um deles e caminhou confiante até a porta que se abriu antes que ela pudesse bater e chamar por alguém. O rosto emburrado de Serena surgiu à sua frente alguns centímetros acima do seu. A Filha da Noite era alta e esguia como Sam nunca poderia sonhar em ser. Os músculos eram pronunciados em cada ângulo de seu corpo de forma rígida, intimidadora e de certa forma sexy. Os cabelos castanhos ondulados estavam soltos atrás de si e os olhos verdes semicerrados. Cheios de desconfiança e surpresa. Ela exibiu um sorriso e cruzou os braços displicentemente como Soren às vezes fazia.

–--O que você está fazendo aqui?–--ela perguntou com descrença. ---A cada dia fico mais surpresa com você, garota.

–--Anna me contou sobre...Gregory. O pai dela. Decidi que queria vê-lo.

–--Claro que queria. Raniah sabe que você está aqui? ---ela ergueu uma sobrancelha. ---Soren? ---o silêncio a fez rir. ---Claro que não. Aposto que Anna apontou o caminho e você veio sem sequer pensar no que isso poderia significar, não é mesmo?

–--Eu só preciso vê-lo, Serena. Anna estava falando comigo. Ela não tem nenhuma esperança que o pai possa sobreviver e eu... preciso...

–--Precisa o quê? Dizer para ela que o pai está bem? Que vai melhorar? ---Serena agora estava séria e seus olhos estavam tão duros quanto sílex. ---Se ela te falou sobre ele, então você também sabe que ele não vai sobreviver. É uma questão de tempo. Os malditos cientistas da sua Reserva infectaram seus soldados para que eles passassem essa droga para nós. Só alguns de nós sobrevive a isso e as dores durante o processo são a pior coisa que alguém pode sentir. O que adianta você vê-lo agora? Vai mentir para Anna, é isso? Nessa alcateia...

–--Não é isso, Serena! ---Sam respondeu o mais firme que conseguiu. ---Eu nunca mentiria para vocês. Não sou idiota. Sei que isso significaria minha morte. Eu só preciso ver com meus próprios olhos o que o meu... antigo grupo é capaz de fazer, entende? Eles me diziam que vocês eram os vilões, mas não acredito que isso seja verdade. Acho que vendo a verdadeira cara da Reserva serei finalmente capaz de esquecê-los de uma vez por todas.

A Filha da Noite semicerrou os olhos e parecia deliberar se ela estava dizendo a verdade. Sam não tinha medo. Estava sendo sincera. Apenas alguns de seus planos estavam ocultos e ela não pretendia revelá-los até que todas as suas suposições se mostrassem verdadeiras. Por fim, Serena se virou deixando que Samantha atravessasse a porta.

O interior da casa parecia fazer parte de outro lugar. Talvez um dos quartos na mansão onde Sam dormia ou as casas dos mais ricos dentro da Cidade Protegida, mas nunca o interior da construção caindo aos pedaços que Sam vira antes de entrar, cercado por carros quebrados e lixo acumulado.

A porta principal levava diretamente até a sala separada da cozinha por um balcão simples de mármore escuro. O papel de parede em forma de losangos estava manchado e rasgado, mas na maior parte das paredes ele havia sido arrancado, exibindo paredes de gesso brancas, nuas e sem graça. Não havia móveis em lugar algum. Havia um conjunto de portas fechadas a direita e uma pequena escadaria em espiral à esquerda que levava até o segundo andar. Todo o espaço cheirava álcool e alvejante, mas um cheiro acre e enjoativo permanecia no local como uma segunda atmosfera.

–--Venha. ---Serena respondeu enquanto subia as escadas. ---Você não pensou que poderia carregar o vírus para todos os outros quando saísse daqui, não é?

Sam congelou no meio da escada.

–--Mas, você cuida dele e não infectou ninguém.

–--Existem diferenças do vírus no organismo de um Filho da Noite e no de um humano comum. Nós o matamos. Vocês os carregam. Por isso nos mantemos o mais distante possível das Reservas. Para evitar que essa praga nos atinja.

–--Eu...eu não sabia. Não quero infectar ninguém.

–--Felizmente seus geneticistas não foram tão inteligentes ao ponto de transmitir essa porcaria pelo ar. É preciso contato físico para a transmissão. Então, não se preocupe. Não precisa ter medo. Greg vai ficar feliz em ver um rosto novo. Principalmente o seu. Eu tento mantê-lo entretido e você é um show e tanto. ---Serena respondeu do andar de cima.

Sam caminhou lentamente pelas escadas tentando entender como Serena podia saber tanto sobre o vírus. Mais do que ela mesma que havia vivido na Reserva por dezoito anos. Seus devaneios foram subitamente interrompidos quando Serena parou em frente a uma porta de madeira simples e lisa, mas cheia de marcas de dedos cravados profundamente nela.

–--Isso foi antes de chegarmos aqui. ---Serena explicou. ---Essa cidade foi uma das primeiras que sofreram os efeitos da Guerra. Pelo menos é o que me disseram. Não fomos nós.

–--Eu não estava pensando nisso. ---Sam mentiu.

Serena empurrou a porta e atravessou-a como já devia ter feito milhares de vezes. Ela se sentou em uma cadeira reclinável próxima a janela e pôs os pés displicentemente sobre o parapeito. Do lado de fora, nuvens cinzentas de chuva se acumulavam em um céu pesado e branco.

As paredes do quarto ainda exibiam o papel de parede com formas de losango, mas ele não estava sujo ou manchado, apenas velho. Como no andar de baixo, não havia muitos móveis no local, além de duas mesas abarrotadas de agulhas descartáveis, embalagens de remédios vazias e garrafas de álcool pela metade. Uma cama de casal baixa estava posicionada próxima a janela sobre a qual Serena descansava. E sobre ela uma montanha de cobertores verde clara cobria alguém.

–--Você tem visita, Greg. ---a Filha da Noite disse em uma voz calma e doce que Sam nunca antes ouvira.

–--Caly não é mais visita. ---Uma voz frágil e rouca respondeu.

–--Não é Caly. ---Serena respondeu sorrindo.

–--Soren também não.

–--Errado de novo.

–--Está me deixando curioso. Preciso de ajuda para me virar e ver esse convidado misterioso. ---A voz respondeu com um princípio do que parecia ser esperança.

Serena se moveu e pacientemente moveu o paciente sobre a cama que rangeu levemente. A pilha de cobertores verdes claros cedeu e exibiu a figura que Sam nunca acreditaria tratar-se de um filho da Noite se não tivesse reconhecido os efeitos da Doença da Prata.

Os ossos pontudos das bochechas e do maxilar pareciam prestes a rasgar a pele fina e pálida do licantropo. Os cabelos brancos como neve estavam grandes demais e cobriam parte dos olhos, mas Sam ainda podia enxergar as duas esferas azuis doentias que eram as íris do Filho da Noite. Não eram azuis claras como as de Sam. Eram de um tom de azul escuro, frio e duro. Um calafrio percorreu o corpo de Samantha que se indagou se ele ainda enxergava.

O corpo também estava muito magro, com os músculos esticados sobre a pele branca cheia de feridas avermelhadas e amarronzadas que causavam náuseas em Sam. Havia uma atadura enorme na perna direita e uma meia centena de pequenos curativos cobrindo partes aleatórias do corpo de Gregory.

Sam nunca vira alguém tão mal em toda sua vida. Geralmente quando alguém ficava doente na Reserva demorava poucos dias para melhorar com os remédios de última geração. Caso contrário, eles morriam. Ao menos que alguém tivesse quebrado alguma coisa, doenças não eram algo comum na Reserva. Isso atrasava o funcionamento do local e era cuidadosamente observado pelos médicos. Ver alguém tão fraco, machucado e moribundo foi um choque para ela.

–--Um rosto novo. E bonito, também. ---o homem sorriu e seus lábios estavam manchados de vermelho. ---Quem é você?

–--Eu...eu...sou Samantha.

–--A humana, não é? --- Gregory sorriu. ---Eu devia ter imaginado. Quem mais poderia ver esse pedaço podre de licantropo, não é mesmo? ---o homem deu um sorriso, mas aquilo pareceu ser muito intenso para ele, desencadeando uma tosse tortuosa. Serena estendeu um pano quando o Filho da Noite terminou e o tecido ficou manchado de sangue pálido e ralo. ---Ouvi muitas histórias sobre você, Samantha.

–--Me...chame de Sam. ---ela tentou sorrir e mostrar que não era uma inimiga. O cheiro acre era mais forte dentro do quarto e seu estômago estava se revirando.

–--Tudo bem, Sam. Serena me disse que você é louca.

–--É mesmo? ---Samantha ergueu uma sobrancelha interrogativamente para a Filha da Noite que apenas deu de ombros. ---E o que você acha?

–--Meu irmão costumava dizer que apenas nós podemos nos julgar pois somente nós conhecemos nossos propósitos. Então não posso dizer se você é louca. É você que deve me dizer. Então, Sam... ---o homem pronunciou a palavra como se achasse graça. ---Você é louca?

–--Eu diria... ---Sam se recostou em uma das mesas. ---Que sim.

–--E por quê? ---os olhos azuis do homem eram como vidro quebradiço, mas estavam fixados no rosto de Sam.

–--Bem...o único dia em que minha Reserva confiou em mim para ser uma Patrulheira, foi o dia em que decidi quebrar as regras. Por causa disso foi capturada. Eu poderia ter fugido, mas decidi lutar contra os Licantropos, mesmo sabendo que não tinha chances. Quando fui interrogada, me recusei veementemente a revelar o que sabia e quase fui morta uma dezena de vezes, por isso. Ataquei Filhos da Noite quando estava cercada por mais 30 deles. Tentei fugir quando estava completamente isolada e sem recursos. Fui presa, interrogada, espancada, perseguida, torturada e ameaçada de morte. Mas, apesar disso, escolhi ficar do lado dos meus torturadores. E sinceramente, a cada segundo, tenho mais certeza que estou fazendo a coisa certa. Se isso não é ser louca...

–--É ser inteligente. ---O homem a interrompeu e sorriu. Sam imaginou que se não fosse a Doença seria um sorriso bonito. Muito bonito. ---Não acho que seja louca, Sam, embora muitos, aparentemente, acreditem que sim. Você vê além do que tentam te mostrar. Não conseguiram te enganar.

–--Me enganar? ---Sam perguntou e se aproximou, instintivamente. Então se lembrou do aviso de Serena e se afastou novamente.

–--Não precisa ter medo. ---Gregory lhe avisou com um sorriso paternal. ---Vocês não são infectados pelo vírus.

–--Eu sei. Não quero infectar os outros.

–--Entendo. Não se preocupe. Pode se aproximar. O vírus só e transmitido pelo toque e eu não pretendo tocar em ninguém tão cedo. ---Gregory sorriu. ---Agora compreendo o que Serena quis dizer. Você é diferente. E acredite quando digo que aquela ali não se impressiona com qualquer coisa. --- Serena parecia levemente desconfortável ao seu lado.--- Diga-me, Sam. O que você faz aqui?

–--Eu... ---Sam respirou fundo. ---Eu estou ajudando sua filha com escrita, leitura e tudo o que eu aprendi na Reserva. Anna é uma grande garota. Muito inteligente. Ela me contou sobre o senhor e ...

–--Sim. Minha Anna é um anjo. A prova de que ainda vale a pena lutar contra a merda deste vírus. Por favor, não me chame de senhor, tudo bem? ---Gregory se virou e gemeu. ---Então você veio me ver para acalmar minha pobre filha? Acho que não é uma boa ideia contar como estou agora, não é? Deixará ainda mais claro que morrerei em breve.

–--Você não sabe disso! ---Sam respondeu e se aproximou, agora sem medo de ser infectada. ---A Doença da Prata foi criada para matar em poucas horas. Dias, nos Filhos da Noite mais fortes. O fato de você estar sobrevivendo por meses significa...

–--Que meu organismo é forte, eu sei. Mas que não consegue ganhar essa luta. ---Ele respondeu sorrindo --- Eu era como você, Sam. Fazia parte de uma Reserva até o dia em que fui transformado. Pela mãe de Anna. ---Gregory riu. ---Antes de me tornar um Filho da Noite minha família se resumia ao meu irmão, Dante. E essa é a única parte da minha antiga vida que ainda sinto falta. Na noite em que fui transformado, Sarah tirou a única família que eu tinha, mas também me deu uma nova. A alcateia dela me aceitou como eu nunca fui aceito na Reserva. Acredito que você entenda o que eu quero dizer. Serena me disse que você também é uma Impura, estou certo?

–--Sim. ---Sam respondeu confusa demais e imersa em muitos pensamentos para responder algo mais complexo.

–--Então você entende. A alcateia de Sarah me tratou como se eu fosse um irmão mais novo. E acho que eu era realmente. Logo depois, Anna surgiu e eu nunca me senti tão feliz quanto no dia em que ela nasceu. Ainda não consigo acreditar que pude ser tão feliz em meio às feras que haviam me ensinado a temer durante toda minha vida. Sabe qual a primeira lembrança que eu tenho de Anna? ---ele ficou em silêncio por um momento, mas não parecia esperar por uma resposta.

´´ Depois do parto, quando Sarah entrou em choque e os licantropos tentavam cuidar dela, eu me lembro de abraçar Anna, tão pequena e frágil que tive medo que ela me deixasse também. Acho que se isso acontecesse, eu seria o próximo. Mas minha pequena era forte desde o primeiro momento em que ela abriu os olhos nesse mundo caindo aos pedaços. E eu, chorando pela primeira vez em muitos anos, sussurrei para um bebê que não entendia nada, que eu não a deixaria até o dia em que ela pudesse se virar sozinha. E Anna parou de chorar imediatamente. Ela sempre confiou em mim, Sam. Eu nunca menti para aquela menina e sei que ela ainda acredita com todas as suas forças que vou sobreviver. Mas, está claro que não vou, não é? Olhe para mim. Seja sincera. O que você acha que vai acontecer? ``

Samantha tentava se acalmar, mas ela sentia sua cabeça prestes a explodir e seus olhos ardiam com lágrimas que ela se recusava a deixar cair. A Reserva não ligava para ela. Tudo bem, Sam sabia disso desde sempre. A Reserva não protegia ninguém. Ela descobrira isso com o passar dos dias como prisioneira de Soren. A Reserva exterminaria os licantropos. Também não era uma novidade; ouvia isso todos os dias. Mas Sam se recusava a permitir que inocentes que sequer haviam escolhido aquela vida, sofressem. Não se ela pudesse impedir. E eu posso.

–--Sam, aonde você vai? ---Serena gritou, surpresa.

Sam não respondeu. Ela simplesmente correu. Disparou pela casa, pulou pelos carros que serviam de barricada. Atravessou as mesmas ruas pelas quais viera. E a cada segundo suas pernas se moviam em um ritmo mais rápido e frenético. Mas , Samantha simplesmente disparou pelas ruas em direção ao grande armazém onde fora levada no seu primeiro dia de cativeiro. Onde conhecera Raniah e fora ameaçada e agredida pela primeira vez. Pelo homem que agora ela estava apaixonada. Nem mesmo essa constatação súbita, que ela nunca fizera antes, interrompeu sua corrida.

Ela empurrou as portas de metal do grande complexo e o cheiro de suor e o som das lutas foi como uma parede invisível que a fez desacelerar. Seus olhos procuraram por Soren e ela o enxergou ao longe, mais alto que a maioria, com os olhos dourados brilhando como tochas enquanto desviava com facilidade dos ataques de outro Licantropo. Ele a viu e fez um sinal de pausa para o outro homem que assentiu e se afastou. O Filho da Noite correu em sua direção com as sobrancelhas franzidas e um olhar preocupado.

–--O que houve, Sam? ---ele perguntou. ---Algum problema?

–--Sim. Mas eu tenho a solução. ---Sam respondeu determinada e respirando com dificuldade. ---Eu menti para você, Soren.

–--O que foi? Não entendi.

–--Eu não lhe contei tudo que sei sobre a Reserva. Estava guardando essa informação. É a mais valiosa que tenho. No inicio eu não lhe contei porque tinha esperanças de voltar para a Reserva. Depois decidi que essa informação só causaria mais problemas para vocês.

–--Do que você está falando? ---Soren parecia realmente confuso.

–--Eu sei de uma coisa que pode ajudar toda a Alcateia. É um boato que ouvi uma vez.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

E aí, o que acharam ?
O que será que Sam está pretendendo para ajudar Gregory ?
Até DOMINGO que vem. ;)



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Licantropia: A Reserva" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.