Realidade Imaginária escrita por Duda Mockingjay


Capítulo 51
O Derradeiro Final


Notas iniciais do capítulo

Voltei com o penúltimo cap!

Boa leitura!



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Certo, agora é sério.

Já entendi que bati o recorde do Jason há uns três desmaios atrás e se ainda tiver um neurônio normal na minha cabeça depois de tanta pancada é um milagre!

Juro que não desmaio mais até o fim dessa droga de missão!

Esses foram os únicos pensamentos que surgiram no momento que recobrei a consciência. Eu estava com raiva. Não, eu estava irada! Minha garganta vibrou com um rosnado baixo e abri os olhos na força do ódio encarando um teto baixo e que parecia ondular com as sombras projetadas por uma tocha que iluminava o local precariamente. Apertei os dedos sentindo algo macio e confortável sob meu corpo e me sentei em um pulo, minha cabeça protestando com o movimento repentino.

— Merda.

Massageei as têmporas e percebi, surpresa, que meu pulso deslocado estava curado. Quando o mundo parou de girar diante de mim franzi o cenho, intrigada. Porque de todos os lugares que esperei ser posta pelos capangas do Mestre nunca esperei algo tão...luxuoso. Apalpei a calma abaixo de mim, admirada com o dossel intrincado e os lençóis de linho fino e seda vermelha com travesseiros e almofadas macios dispostos perto da cabeceira além das cortinas diáfanas que pendiam dos quatro cantos do topo da cama. Pisquei, esperando acordar daquela loucura, mas tudo continuou igual. Afastei as cortinas apenas para ver que o luxo não terminava no móvel que eu estava deitada: Jarros de barros coloridos estavam dispostos ao lado da cama assim como uma bacia dourada, desenhos e pinturas pontilhavam as paredes de areia vermelha e um tapete felpudo cobria o chão completamente, um espelho enorme de moldura dourada estava disposto entre duas tochas, a única iluminação do local. Levantei quando senti minha cabeça parar de latejar, sentindo o tapete fazer cócegas em meus pés descalços.

Espera, onde estão meus tênis?

Encarei o chão, os olhos arregalados ao ver não só meus pés nus como minhas pernas expostas, apenas uma saia longa e de tecido quase transparente que ia até os pés. Em poucos passos rápidos eu estava em frente ao espelho e quase me engasguei ao ver meu reflexo.

Onde diabos foram parar minhas roupas?

Porque no lugar de minha blusa do acampamento e das calças jeans, meu corpo estava coberto com uma túnica de linho branco e aveludado, quase um vestido tubinho até o meio das coxas enquanto um tecido dourado e transparente, uma espécie de véu, estava jogado por cima, descendo até os calcanhares e preso na cintura por faixas coloridas, tão apertadas que modelaram minha cintura como um espartilho. As mangas curtas de linho branco também eram cobertas pelo véu estranho que fazia meu braço pinicar e deixavam as cicatrizes brancas em meus braços à mostra enquanto a gola ia do meu pescoço até pouco acima dos seios, larga e colorida, com meu colar de cobre sobre ela. Atordoada, arregalei os olhos me analisando dos pés à cabeça, sentindo meu corpo ferver de raiva ao imaginar uma daquelas criaturas idiotas trocando minhas roupas.

— Só faltou a peruca e o Kohl nos olhos para eu ser a verdadeira Cleópatra! – Murmurei, indignada quando tentei girar no lugar e senti o vestido de linho dificultando meus movimentos, minhas pernas limitadas à passos curtos. Rosnei, os punhos cerrados. – As egípcias não precisavam correr nunca? Muito esperto, Mestre maldito.

Minhas reclamações e xingamentos foram interrompidos quando ouvi passos do lado de fora, finalmente percebendo as grades de ferro que separavam meu quarto-cela do corredor do outro lado. Ainda sou prisioneira apesar de toda essa mordomia. Não esqueça disso, Eduarda. Os passos pesados se aproximaram ainda mais e desci minha mão até meu pulso, finalmente percebendo que minha pulseira não estava ali. Frustrada e irritada, me pus em posição de combate, ou tentei já que o vestido idiota mal deixava eu afastar os pés ou erguer os braços. Tentei rasgar a saia de linho, abrir uma fenda ou apenas despedaçá-la, qualquer coisa que me ajudasse a me mexer melhor, mas aquela droga parecia feita de aço e não de tecido. Sem uma lâmina não dá pra fazer nada! Olhei ao redor do local e segurei a bacia dourada, a única “arma” ao meu alcance, e erguia-a o máximo que as mangas apertadas permitiam. Os passos pararam em frente a cela e a tocha que a criatura trazia me permitiu ver o que era aquilo: uma harpia. Mas seus movimentos, sua postura, tudo indicava que ela não era uma das harpias idiotas e sem noção. Ela me encarou com as presas a mostra em um sorriso medonho e ouvi o tilintar de chaves. O ranger da cela abrindo encheu o ambiente silencioso e a coisa entrou calmamente, se aproximando rápido, as pernas longas e cadavéricas batucando o chão enquanto o corpo coriáceo e esquelético ondulava. As garras seguravam a tocha com firmeza e as asas estavam fechadas contra o corpo.

Mas o pior eram os olhos. Ela não tinha os olhos monstruosos e vazios, escuros como breu, como todos os monstros que sempre enfrentávamos. Aqueles olhos tinham um brilho de inteligência, algo humano demais naquela cara demoníaca. Perceber isso fez meu corpo arrepiar, minhas pernas se afastando automaticamente do corpo que estava a centímetros de mim. Apertei a bacia o que só fez a criatura aumentar o sorriso.

— Solte isso e me siga, cria dos deuses. – A voz gutural e arranhada fez meu corpo se sobressaltar. Trinquei o maxilar, contendo qualquer expressão de pavor que meu corpo pudesse demonstrar. A criatura apenas lambeu os lábios, a língua reptiliana surgindo e desaparecendo num piscar de olhos. – Se ainda quiser ver seus amigos vivos.

Aquilo me desarmou. Apesar de odiar seguir as ordens daquilo, não tinha nada que pudesse fazer ali, presa no quarto minúsculo e claustrofóbico. Passamos alguns segundos apenas nos encarando, não querendo mostrar que ela tinha vencido tão facilmente. Mas prolongar aquilo era idiotice então joguei a bacia do outro lado da cela e ergui o queixo, cruzando os braços.

— Vamos. Não vejo a hora de quebrar a cara de Apófis pessoalmente.

A criatura arregalou os olhos diante do nome, surpresa, e eu sorri superior. Finalmente uma confirmação! Mas logo aquele sorriso perigoso estava na boca sem lábios daquela coisa novamente.

— Muito corajosa para alguém acorrentada.

Antes que eu pudesse pensar senti algo frio e pesado contra meus pulsos e arregalei os olhos quando algemas douradas tilintaram nas minhas mãos, o metal puxando meus braços para baixo e se apertando mais cada vez que eu forçava os movimentos. Rosnei e avancei para a harpia que apenas segurou a corrente que unia as algemas e puxou forte me fazendo cambalear para frente.

— Chega de brincadeiras. Apófis aguarda.

Ela me puxou sem delicadeza por corredores e mais corredores, todos tão apertados quanto a minha cela. Que tipo de dieta era essa dos egípcios? Só sendo esquelético pra passar por aqui com tanta facilidade. Observei a tranquilidade que minha carcereira caminhava enquanto eu lutava para não sair completamente arranhada das paredes pedregosas, me apertando por trechos tão estreitos que me tiravam o ar. Senti as pedras do chão entrando na sola dos pés, mas qualquer tropeço só fazia a harpia idiota me puxar ainda mais. Meu sangue fervia a cada puxão, mas nada superava a ansiedade que martelava meu peito à medida que avançávamos.

Cada vez mais perto do Mestre. Cada vez mais perto de Apófis, o monstro mais poderoso da mitologia egípcia que nem mesmo o deus Sol Rá conseguiu derrotar totalmente.

Baixei a cabeça, me deixando ser levada cegamente, e apertei minhas mãos algemadas, controlando o desespero que ameaçava tomar meu corpo ao imaginar o que ele fizera com meus amigos, o que ele teria feito com meu irmão. Com Nico.

Por favor, qualquer deus que esteja me ouvindo e que se importe o mínimo, cuide deles.

Deixem que o sacrifício seja meu, não deles. Eles já sacrificaram muito.

Minha prece silenciosa foi interrompida quando a harpia puxou meu corpo mais forte e me lançou para frente. Cai de joelhos no chão terroso, o impacto repentino fazendo meus dentes vibrarem e pedrinhas afiadas entrarem em minha pele. Chiei de dor, a cabeça ainda baixa enquanto recuperava o ar, meus cabelos cacheados agindo como uma cortina, me impedindo de ver qualquer coisa a frente.

— Aqui está ela, como ordenado, Mestre.

A voz da harpia soou distante diante do zumbido que encheu meus ouvidos, o sangue palpitando por meu corpo quando apertei as mãos feridas contra o chão e forcei a cabeça a se erguer, divagando se Apófis era como nos meus livros de histórias ou muito pior.

Esperando tudo do ser mitológico.

Tudo.

Menos o que eu vi.

Pisquei. Minha garganta secou de repente, meu coração acelerado.

Confusa.

Pisquei novamente.

— Lucy?

Minha voz saiu rouca, falha e desorientada. Meus olhos não acreditavam no que viam: Os cabelos negros e lisos caídos pelas costas com um ornamento em forma de pássaro dourado no topo da cabeça, um vestido quase idêntico ao meu contornando o corpo pequeno e esbelto que permanecia sentado sobre um trono de bronze e rocha, os olhos castanhos e grandes voltados para mim com atenção, um sorriso grande nos lábios pintados.

— Lucy! Como você...?

Ela permaneceu imóvel enquanto eu forçava meu corpo a ficar de pé, meu equilíbrio precário devido o vestido e as algemas nos pulsos, mas não me importei, aliviada e feliz por vê-la bem, sem ferimentos.

Sem estar presa.

Meus olhos finalmente captaram algo na parede às costas de Lucy e travei no lugar ao perceber as silhuetas que balançavam nas sombras das tochas.

Seis corpos presos por algemas douradas, os braços erguidos, os pés mal tocando o chão. Minha respiração prendeu na garganta quando percebi que todos os meninos estavam sem camisa, os troncos expostos e pontilhados de arranhões e filetes de sangue, enquanto as meninas tinham as roupas em farrapos, pouco escondendo seus corpos enquanto sangue pingava dos lábios e nariz. Finalmente ouvi os gemidos e suspiros, a dor clara em cada som. Annie, Piper e Jason estavam desacordados, os corpos pendendo frouxos e seguros apenas pelas algemas no teto. Percy e Nico tinham os olhos baixos, mas seus pés ainda forçavam o chão para manter o corpo o mais estável que podiam, lutando contra a inconsciência. Então, diante das palavras da harpia, eles arregalaram os olhos e forçaram o pescoço a se erguer, focando em mim. Eles agitaram os braços e gemeram de dor, as algemas mágicas parecendo se apertar mais a cada tentativa de se soltar. Pude ver meu nome sair dos lábios inchados, nada mais que um sussurro e senti meu coração apertar diante das expressões de preocupação e desespero.

Eles estão nesse estado e ainda colocam minha segurança acima de tudo!

Tentei lançar um sorriso tranquilo, mostrar que eu estava bem, mas era impossível. Meus olhos logo se voltaram para o último de meus amigos, aquele que parecia ser o mais desperto de todos, apesar de estar tão machucado quando todos os outros. Leo tinha os olhos arregalados e tristes direcionados para Lucy, a respiração acelerada e o corpo se agitando no lugar. Logo sua expressão apavorada se volta para mim e ele balança a cabeça lentamente, negando.

Avisando.

Alertando.

Senti minha respiração presa na garganta, meu sangue gelando e as mãos trêmulas. Apertei os punhos, o metal arranhando minha pele apenas reafirmando que tudo aquilo era real. Voltei a cabeça lentamente para a garota postada altiva no topo da escadaria e finalmente percebi a cadeira imponente e grandiosa às suas costas.

Finalmente percebi que o olhar vívido e sagaz de Lucy não estava ali.

Na verdade, os olhos castanhos se desvaneciam diante dos meus olhos dando lugar a duas fendas negras rodeada por uma linha vermelha.

Olhos reptilianos. Olhos de serpente.

Naqueles orbes só havia maldade, pura e palpável. Ganância. Poder antigo e tenebroso.

O sorriso dela se alargou, satisfeita ao ver o entendimento nos meus olhos.

— Apófis. – O nome saiu como um sussurro, cada letra parecendo pesada demais na minha língua.

Apófis fechou os olhos, inclinando a cabeça para trás numa expressão de deleite, um suspiro profundo. Então voltou os olhos para mim, as írises castanhas se transformando em vermelho sangue enquanto o sorriso parecia grande e perigoso demais no rosto delicado de Lucy.

— Não sabe quanto tempo esperei para ouvir meu nome saindo da sua maldita boca, Língua Encantada. – Os lábios finos de Lucy carregavam uma voz grave, tão profunda que parecia vir dos confins da Terra, carregada de um sotaque arrastado como se não estivesse acostumados a falar aquela língua. Os olhos vermelhos brilhavam como chamas. – Cheio de pavor e desespero. Perfeito.

Meu peito se apertou com aquela voz grave e errada. Meus pelos arrepiaram com o sorriso macabro que ela lançou em minha direção e trinquei os dentes, tentando manter o medo e a tristeza sob controle, tentando afastá-los dos meus olhos.

Não deixaria aquele idiota ver o quanto aquilo me abalava. Não daria esse gostinho a ele.

Não desistiria de Lucy.

— Lucy... o que fez com ela? – Rosnei dando um passo à frente, as correntes tilintando em meus pulsos enquanto o vestido arrastava no chão. Meus olhos faiscavam sobre Apófis que parecia sorrir ainda mais largo, despreocupado com minha expressão ameaçadora como se eu não passasse de uma mosca irritante. – Por que a pegou?

O vilão suspirou, encarando as unhas e cruzando as pernas, os olhos subindo lentamente até estarem sobre mim mais uma vez, sorrindo antes mesmo das palavras saírem de sua boca.

— Porque ela quis.

Aquilo foi como um soco. Ouvi Leo agitar as correntes, furioso. Eu não estava melhor.

— Mentiroso! – Rebati, mais um passo à frente. O chão parecia quente demais sob meus pés, as pedrinhas rasgando minha pele e ardendo feito inferno, mas minha atenção era toda em Apófis. – Lucy nunca faria isso, ela nunca iria querer isso.

Apófis ergueu uma sobrancelha escura perfeitamente delineada, o corpo se inclinando para frente.

— Oh, mas ela quis. Na verdade, ela implorou por isso. – O sorriso diabólico deu lugar a uma expressão de inocência como se fosse apenas Lucy ali, a voz grave desaparecendo enquanto a voz aveludada e baixa de Lucy surgia. – “Por favor, quero que eles parem de me tratar como uma ninguém! Quero ser diferente! Quero ir embora daqui!”

Apófis revirou os olhos ao fim da imitação, a voz monstruosa retornando. Ele me encarou com um brilho maldoso naqueles olhos castanhos, a íris escura rodeada por uma linha vermelha cintilante.

— Foi fácil corrompê-la. Tudo que precisei fazer foi prometer que a levaria embora, que ela nunca mais teria que viver num lugar que a desprezava, isso se ela fizesse exatamente o que eu mandasse.

Senti minha garganta seca, os olhos arregalados diante das lembranças que voltaram a minha mente. Lembrei da Fogueira, quando Lucy observava Leo de longe e sua expressão mudou drasticamente enquanto ela se afastava para a floresta. Como se não fosse mais ela.

Como se algo tivesse tomado seu corpo.

Senti meu peito apertar, recordando de tudo que aconteceu depois disso.

— O crocodilo que invadiu o acampamento... – Murmurei para mim mesma apesar de minha voz ecoar livre pelo espaço amplo e silencioso. – O roubo da caneta encantada. Lucy, ela...

Apófis bateu palma, como um professor saudando uma aluna que acabara de descobrir a resposta certa.

— Finalmente o segredo revelado! Admito que esperei que fosse mais esperta, Língua Encantada. Sim, Lucy roubou a caneta, mesmo que tenha sido mais difícil convencê-la a isso. Ela estava próxima demais de você nessa altura do campeonato, quase desistindo de seu sonho de fugir já que você era “uma amiga de verdade, alguém que se importava com ela”. – Apófis falou com a voz de Lucy novamente, aquele olhar esperançoso fingido e fazendo uma careta de nojo logo em seguida. Então ele se empertigou no trono, o queixo erguido com o sorriso superior novamente no rosto. – Mas então algo mudou poucos dias depois. Eu pude sentir a raiva dela tão crua e forte que parecia renovar minhas forças. Ela finalmente me deixou tomar conta de seu corpo completamente e seu último pedido foi: Destrua a Filha de Poseidon, faça com que sofra como eu sofri.

Meu estômago revirou, meus punhos cerrados ao lado do corpo, meus olhos queimando na direção do trono, mesmo que eu não focasse em nada específico. Apenas lembrando, apenas me odiando. Porque eu sabia que Apófis não mentira, não daquela vez.

Apenas uma coisa faria Lucy me odiar tanto...

— Ela viu... – Falei baixo, o maxilar travado enquanto meus olhos se voltavam para Leo que parecia lívido, ainda lutando contra a inconsciência, me encarando de volta com pesar. - Ela viu o beijo.

— E esse foi o colapso da pequena Lucy. – Apofis ecoou, satisfeito, como se divagasse consigo. – Então acho que tenho que lhe agradecer, Língua Encantada. Sem sua traição meus planos seriam adiados.

Afastei a saia do vestido, irritada e desesperada, meus olhos e súplicas voltados para Lucy dessa vez. Apófis disse que ela só tinha se deixado tomar completamente depois do que viu, então ela ainda lutava contra ele antes.

Poderia lutar de novo.

— Lucy, foi tudo um mal-entendido! – Gritei, caminhando para frente e parando quase na base do trono. – Sim, o beijo aconteceu, mas não significou nada nem para mim nem para Leo! Eu amo Nico e Leo... ele... ele ama você, Lucy. Só você.

Por um segundo, apenas um lampejo, eu vi o brilho vermelho e diabólico desaparecer, os olhos castanhos retornando por segundos antes da cabeça de Lucy se voltar na direção de Leo. Mesmo ferido e exausto o sorriso de Leo foi grande, como se nada mais importasse além da atenção de Lucy, assentindo levemente como se confirmasse minhas palavras para ela saber que tudo era verdade, que ele a amava e a queria de volta. Lucy arregalou os olhos e eu vi o desespero e culpa cintilando ali quando ela desviou o olhar para mim novamente, o corpo tremendo levemente como se ela lutasse contra si mesma.

Ela ainda estava ali, em algum lugar. Eu ainda podia salvá-la.

Sorri com os olhos marejados ao ver a expressão angustiada da minha amiga, os lábios finos dela murmurando uma única palavra cheia de pesar.

— Duda...

— Sou eu, Lucy, e juro que nunca faria nada para te magoar. Aquele beijo foi um erro, nunca deveria ter acontecido e nunca vai voltar a acontecer. – Suspirei e me aproximei mais, ouvindo os resmungos e alertas irritados de Percy e Nico pela minha proximidade com Apófis. Mas ali não era ele, era Lucy. – Volta pra gente Lucy, você pode lutar contra ele, pode acabar com tudo isso!

— Eu... eu... – Lucy parecia prestes a chorar, o corpo encolhido no trono como se fosse uma criança, totalmente diferente da altivez que Apófis expressava. Então ela engasgou, o corpo se curvando pra frente de repente enquanto ela gemia de dor. Quando ergueu a cabeça de novo os olhos tinham voltado ao brilho vermelho perverso, dessa vez carregado de ira. – Basta! A garota pode até lutar, mas não levara a nada além de dor para si mesma. Eu sou o dono desse corpo agora e nada vai mudar isso, Língua Encantada. Agora vamos ao que realmente interessa, já adiei meus planos tempo demais depois que aquele filho de Seth escapou.

Dei um passo para trás com o grito de Apófis, raiva e temor lutando em meu peito diante de todo o poder contido naquelas palavras. Aquelas palavras...

Travei no lugar quando a expressão estranha me pareceu familiar demais.

Filho de Seth?

Minha mente voltou para dias antes quando saímos para a missão e eu ouvi aquela expressão pela primeira vez. Quando tive contato com o egípcio mesmo sem saber o quanto aquilo era parte de mim. E tudo por ter encontrado o garoto na floresta e...

Algo estalou em minha mente, todas as palavras de Arthur e sua história se encaixando como um quebra cabeça de mil peças finalmente sendo concluído.

Ele fugiu porque o Mestre queria usá-lo.

Mas é claro!

Como não percebi antes? Eu sabia que ele escondia algo, mas nunca imaginei...

Encarei Apófis com os olhos arregalados, incapaz de manter minha surpresa contida.

— Arthur, ele... ele é um Língua Encantada!

Apófis ergueu as mãos para o céu, uma expressão de puro deboche.

— Finalmente! Supus que fosse mais esperta, pequena Swan. – Ele riu, descendo do trono e se aproximando de mim com os lábios em um sorriso cruel. O vermelho em seus olhos parecia mais brilhante com a proximidade e dei um passo para trás, meu corpo tremendo enquanto ele analisava meu rosto com o sorriso se alargando – Mas talvez... talvez não tenha descoberto o principal. Bem, isso não tem importância, a questão é que aquele garoto escapou devido a incompetência dos meus lacaios e eu tive que ir atrás de você depois que o povo dele reforçou as barreiras mágicas contra mim. Eles me conhecem bem demais, ainda mais aqueles irmãos irritantes...

Apófis respirou fundo como se pensar nos tais irmãos o irritasse ainda mais. Então ele uniu as mãos na frente do corpo, seu corpo feminino ondulando a cada passo que dava para mais perto de mim, aquele sorriso maldito pregado no rosto de minha amiga.

— Mas agora você está aqui e vai fazer exatamente o que eu mandar.

— Nunca. – Rosnei, meu corpo se impulsionando para trás enquanto meus olhos queimavam de ódio sobre Apófis.

Senti algo em meu pulso por baixo das algemas e sorri discreta. Minha pulseira tinha retornado ao seu lugar, mas era impossível alcançá-la com aquelas algemas no meio do caminho. Antes que eu pudesse fazer qualquer tentativa ouvi Apófis estalar os dedos e num segundo dois monstros esquisitos seguraram meu corpo, me forçando a se ajoelhar no chão rochoso enquanto um terceiro surgia com uma bandeja, equilibrando-a com as garras como se fosse uma espécie de mordomo humanoide bizarro.

— Swan! – O grito desesperado de Nico me fez erguer a cabeça, meus joelhos ardendo em carne viva sobre o chão quente.

Percebi que todos os meus amigos estavam acordados e encarando a cena com olhares de puro pavor e raiva. Percy agitava suas correntes como se pudesse se soltar por pura força de vontade enquanto Leo não conseguia desviar o olhar triste e desesperado do corpo de Lucy, lágrimas manchando seu rosto coberto de areia.

Desviei os olhos, meu ombro já latejando de dor com a força que os monstros usavam para me deixar no chão, e encarei Apófis com os dentes arreganhados enquanto ele tirava o que quer que o monstro havia trazido na bandeja.

— Seu trabalho vai ser bem simples e depois juro que encontrará um fim rápido e doloroso. – O vilão falou como se contasse uma história divertida, a mão sacudindo o que reconhecia como um pergaminho em branco enquanto a outra segurava uma caneta. – Ou talvez eu mantenha você como meu bichinho de estimação. Línguas Encantadas são bem raros.

Ignorei as alfinetadas dele, meus olhos focados na caneta que eu vira apenas uma vez na vida, mas nunca esqueceria o estrago que ela poderia causar.

A Caneta Encantada.

Meu estômago revirou ao pensar em tudo que Apófis poderia fazer com aquela maldita caneta.

Não, ele precisa de mim para que ela funcione e nunca vou fazer isso.

O pensamento me deu força e, apesar da dor, sorri despreocupada.

— Espero que esteja escrevendo seu caminho só de ida para o inferno porque essa é a única forma de eu ler esse papel.

Apófis ergueu uma sobrancelha, a caneta pousada sobre o pergaminho no meio da frase. Ele me encarou como se observasse um inseto e voltou a escrever, terminando seu texto com um ponto final floreado demais. Ele pousou a caneta novamente na bandeja e soprou sobre o papel pardo, relendo o que escrevera e sorrindo satisfeito.

— Seu senso de humor é irritante e eu arrancaria sua língua por tamanha insolência, mas, infelizmente, ainda preciso dela.

Ele se aproximou mais um passo me olhando de cima. Mantive minha cabeça baixa não por submissão, mas como um desafio, meus olhos fixos no chão de areia e no sangue de meus joelhos que manchava o vestido ridículo. Os monstros ainda seguravam meus ombros e senti as unhas grandes de Lucy se prenderem em meu couro cabeludo, puxando minha cabeça para cima e me forçando a encarar seus olhos escuros, a linha vermelha rodeando as írises como um aro brilhante. Trinquei o maxilar com a dor que invadiu minha cabeça, lágrimas involuntárias saindo e meus olhos enquanto eu encarava aquele rosto delicado e carregado de ódio.

— Leia – Apófis rosnou, o papel erguido diante de meus olhos embaçados, as unhas cada vez mais fundo na minha cabeça.

— N-Não... – Murmurei, a voz rouca demais, o queixo erguido a força, meu corpo pulsando em dor. – Não importa... o que faça comigo... não vou ler nada!

O vilão ainda me encarou por segundos, a expressão irada dando lugar a resignação quando me soltou de repente e ordenou que os monstros me levantassem. O alívio em minhas pernas quase me fez chorar, mas engoli em seco e firmei meus pés encarando Apófis que se afastava de mim, caminhando calmamente em direção aos meus amigos.

— Oh, eu deveria ter me lembrado desse pequeno detalhe: você se acha uma heroína. – Apófis debochou, o vestido esvoaçando enquanto parava diante de Jason, a cabeça inclinada. – Sua vida talvez não importe, mas e a dos seus queridos amigos?

Meu corpo gelou, meu coração acelerando enquanto sentia meus membros fracos. Forcei o corpo para frente, os ombros queimando de dor na minha tentativa inútil de me soltar. Os monstros me puxaram de volta o que me rendeu um grito de dor. Apófis voltou o rosto pra mim num sorriso vitorioso.

— Então, quem eu escolho? A amiguinha esperta? – Ele divagou alto, caminhando em frente aos meus amigos presos, os dedos passando pelos corpos deles enquanto parava de frente para Annie, baixando o rosto dela em sua direção. Apesar de todos os machucados em seu rosto e de seu estado, Annie balançou a cabeça para se afastar do toque dele. Apófis ignorou aquele ato corajoso, soltando o queixo dela com um tranco violento o que fez Percy se remexer e xingar, chamando a atenção de Apófis. – Ou talvez o querido irmão?

Não consegui conter meu pavor quando ele parou diante de Percy, as unhas arranhando o peito exposto dele até tirar sangue. Meu irmão conteve o gemido, os dentes arreganhados de ódio na direção do vilão, os olhos verdes queimando. Apófis se virou entediado na minha direção, ainda parado na frente de Percy

— Mas também temos o namorado, você...

Antes que ele falasse seu corpo se projetou para frente, caindo na areia quando Percy chutou suas costas. Arregalei os olhos encarando os pulsos de Percy sangrando pelo esforço que ele fez ao ficar pendurado apenas pelas mãos enquanto impulsionava as pernas para frente. Seu corpo girava no lugar em reação ao golpe enquanto Apófis se erguia, os olhos como duas fendas de puro ódio.

Jism hashin waghabiyin — Apófis xingou em egípcio. Corpo frágil e estúpido! Ele ficou em pé, limpando o vestido e focando os olhos de serpente em Percy. Sua mão se prendeu ao pescoço de meu irmão num único movimento, apertando até ele tossir. – Bem, temos um voluntário então!

Ouvi Annie gritar, xingando e mexendo suas correntes sem parar. Mas nada adiantou quando um novo monstro surgiu, tirando os braços de Percy do gancho que prendia suas correntes no topo da parede e lançando-o no chão com violência. Percy expirou num único fôlego por causa do impacto e tossiu no chão, sangue escorrendo pelo seu lábio que se machucou na queda. Ele forçou as mãos ainda algemadas a erguer seu corpo do chão, quase caindo novamente quando seus braços tremeram, mas sendo colocado de joelhos pelo mesmo monstro que o soltou, uma espécie de harpia musculosa com cara de chacal e sem asas. Apófis parecia no auge do divertimento, os olhos brilhando em minha direção.

— Talvez agora você esteja mais disposta a ler?

— Não, Duda! Não faz isso! – Percy gritou e ouvi seu gemido quando o monstro o socou no rosto. Sangue escorreu de seu nariz enquanto seus cabelos negros cobriam o rosto, a cabeça baixa e o peito se enchendo de ar.

— Não, Percy!

— Um incentivo a mais então... – Apófis cantarolou e estalou os dedos mais uma vez. – Venha!

Rodei a cabeça pelo lugar, lágrimas encharcando meu rosto enquanto eu esperava que o novo monstro aparecesse, mas nada.

Até sentir meus pelos arrepiarem, meu corpo gelando com a sensação de algo maléfico surgindo então algo tremeluziu a frente de Apófis, ganhando forma aos poucos. Ou melhor, contornos. A fumaça deu lugar a uma sombra que eu conhecia bem demais.

— Sim, mestre.

A sombra se curvou na direção de seu mestre, logo erguendo-se e se virando para mim. Seu rosto não passava de escuridão e fumaça, mas seus olhos vermelhos brilhavam e eu podia jurar que ela sorria para mim, fome e morte queimando em seus orbes.

— Hoje terei minha vingança, mestre? – A voz sibilada da sombra me fez tensionar os músculos, seus olhos famintos não se desviando de mim. – Hoje cumpro minha promessa de destruir a Língua Encantada?

— Sim, meu servo, mas não da forma que imagina. O cobre de Maat do colar dela continua a protegendo, mas há outras formas de atingi-la. – Apófis respondeu, seu sorriso nos lábios pintados de Lucy parecendo errado e bizarro. Ele apontou para Percy ainda ofegando de joelhos, os olhos verdes furiosos na direção dos dois. – Você sabe o que fazer.

A sombra tremeluziu de excitação, flutuando até meu irmão como uma cobra serpenteando no ar. Forcei meus braços mais uma vez, aflita. Percy, imaginando o que viria, ainda conseguiu puxar sua caneta do bolso, mas foi lento demais para a sombra que invadiu seu corpo. Ele caiu pra frente com o impacto, as mãos apoiadas no solo rochoso, a caneta rolando de seus dedos. Mal percebi que gritava até sentir minha garganta arder e Apófis prender os dedos em meu pescoço, irado.

— Conserve sua voz, querida. Eu preciso dela bem!

Tive vontade de cuspir em sua cara e gritar até perder mesmo a voz, mas meu corpo paralisou quando encarei Percy se erguendo do chão, seu corpo seminu coberto de hematomas e arranhões, a caneta novamente na mão... e seus olhos sérios voltados para mim, uma linha vermelha circulando suas írises verdes.

Possuído.

Meu peito desabou diante do olhar vazio de meu irmão que se voltou para Apófis e curvou a cabeça.

— Meu mestre.

Um soluço irrompeu pela minha boca e mordi meu lábio com tanta força que senti o gosto cúprico do sangue. Apófis me encarava com uma satisfação diabólica e quando voltou os olhos para Percy ele assentiu.

— Quero que ele saiba o que está fazendo. Quero que ele sinta tudo.

Meu irmão possuído destampou sua caneta e numa explosão de luz Contracorrente surgiu em sua mão. Então vi o vazio dos olhos de Percy sumir, sua expressão confusa e ansiosa voltando apesar de sua mão com a espada continuar subindo até o metal frio estar contra o seu pescoço. Percy arregalou os olhos, o rosto se avermelhando enquanto ele usava toda a sua força para controlar sua mão.

— S-Sai de mim, desgraçado.

Mas nada adiantou e ele apenas assistiu sua própria mão possuída apertar a espada mais e mais contra seu pescoço. Eu podia ouvir os gritos e rosnados dos meus amigos ainda presos, mas não conseguir pronunciar um único som, tremendo de terror e chorando, chorando como nunca.

— Você pode salvá-lo. – Apófis sussurrou em meu ouvido, a voz grave lenta e preguiçosa como mel. – Basta usar sua bela voz, ela é a chave de tudo isso.

—N-Não, Duda... – A voz de Percy não foi mais que um murmúrio engasgado, o pomo de adão se chocando com o metal frio da espada cada vez que sua garganta se movia.

Saliva se acumulava em minha boca, minhas unhas fincadas em minha perna e não aguentei mais o silêncio quando vi o fio da espada se manchar de vermelho vivo, a pele de Percy maculada por um corte rápido que o fez tossir e engasgar, fazendo seu pescoço se chocar ainda mais com a espada e o corte aumentar.

— Chega! E-Eu leio, mas solte ele, agora!

Apófis ergueu o queixo pontudo em minha direção, os olhos reptilianos faiscando.

— Você não está em posição de barganhar. – Ele rosnou, erguendo o papel escrito com a Caneta Encantada na minha direção. – Leia primeiro.

Vi Percy negando com a cabeça, mas o sangue escorrendo de seu pescoço não me deixavam focar em mais nada. Pisquei, afastando as lágrimas, e encarei Percy tristemente.

Eu não era forte o suficiente, ainda não era heroica o suficiente para deixar meu irmão morrer em troca da proteção do mundo.

Era egoísmo, eu sabia, mas não era capaz de ser altruísta naquele momento.

Não era capaz de ver Percy morrer enquanto eu podia salvá-lo.

— Desculpa... – Sussurrei para ele e voltei os olhos para o pergaminho pequeno que Apófis segurava.

Ergui a mão para segurá-lo e Apófis me entregou, desconfiado.

— Espero que saiba que se destruir esse posso fazer muitos outros.

Encarei Apófis com fúria, mas não me dignei a respondê-lo. Meus dedos tremiam enquanto eu apertava o papel. Ergui os olhos uma última vez para Percy e seu rosto contorcido de dor e apreensão então deixei meu olhar vagar pela caverna até chegar aos meus amigos. Todos me encaravam com as emoções escancaradas no rosto, a principal delas sendo o temor por mim. Então meus olhos caíram em Nico e seu olhar negro foi como um bálsamo sobre minhas preocupações.

Aquele olhar dizia que ele estava do meu lado independente da minha escolha.

Que nós daríamos um jeito, juntos.

Que não importava o que eu lesse naquele papel, iríamos destruir Apófis no final daquilo.

Aquele olhar dizia o quanto ele confiava em mim.

E quando ele assentiu eu respirei fundo, acreditando em cada palavra não dita. Sorri fraco para ele e retribui o aceno, baixando os olhos para o papel e deixando que meu poder fluísse até minha boca, enrolando-o nas palavras egípcias e ecoando pelo lugar como uma melodia fúnebre.

Das profundezas do Duat o corpo da Grande Serpente deve ser liberto, qualquer feitiço e corrente será quebrado e ele emergirá até o mundo mortal em toda a sua glória.

Exaustão extrema me atingiu assim que a última palavra saiu de minha boca e meu corpo tombou de joelhos. A dor do choque de minha pele contra o chão rochoso foi intensa, mas meu corpo estava tão esgotado com aquela simples frase que até mesmo a dor pareceu diminuída. Pontos negros piscavam diante de meus olhos e eu sentia meu estômago revirar. Xinguei baixo, minhas mãos apoiadas no chão enquanto eu respirava fundo, apertando os olhos e lutando contra o cansaço. A soneca na cela esquisita não chegou nem perto de ser suficiente para recuperar minhas energias depois de usar o Alkalima contra o mar de monstros e trazer um corpo místico preso há séculos não deve ter ajudado em nada.

Apertei os dedos na areia, irritada com meu próprio corpo, encarando as cicatrizes pálidas que serpenteavam por meu braço e eram a prova viva de que eu era mais forte que isso. Vamos lá, você tem que aguentar! Só mais um pouco! Só até todos eles estarem a salvo.

Crispando os lábios, me forcei a sentar sobre os calcanhares o que demandou mais energia do que eu imaginava. Apoiei as mãos arranhadas sobre as coxas, o vestido fino já rasgado em diversos pontos, e ergui os olhos. Graças aos deuses minha visão melhorara, mas eu ainda sentia como se um elefante estivesse sentado sobre meus ombros. Percebi o olhar apavorado de Percy sobre mim, ainda dominado pela sombra maligna e tentei sorrir para acalmá-lo, mas até isso parecia me desgastar então apenas mexi a cabeça levemente, torcendo para ele entender que eu sobreviveria. No entanto, nossos olhares desviaram de repente quando uma luz estranha surgiu no centro da caverna, se intensificando a cada segundo até ser impossível encará-la diretamente. Fechei os olhos, a luz ainda piscando através de minhas pálpebras, e esperei. Quando o brilho finalmente diminuiu a risada de Apófis ecoando alta pelo lugar me fez reabrir os olhos instantaneamente.

Ali, sobre o chão rochoso, estava uma pele de cobra enorme. Tinha facilmente cinco metros de comprimento e eu suspeitava que estava em seu tamanho “miniaturizado”, era dourada com manchas vermelhas como sangue pontilhando da cabeça ao rabo. Franzi os olhos percebendo, abismada, que as manchas na verdade eram hieróglifos espalhado pela pele e contavam a história macabra de Apófis.

Era belo e tenebroso e tão surreal que apenas permaneci imóvel, admirando horrorizada o resultado de meu poder. Minhas mãos tremiam e senti todo meu corpo se afogar em culpa quando o sorriso malicioso de Apófis se voltou em minha direção.

— Ah, pequena Swan, eu realmente subestimei você. – Ele desviou os olhos de mim para caminhar até a pele que brilhava como um pequeno sol. Tocou-a com um cuidado devoto, as unhas longas de Lucy serpentando pelas manchas vermelhas. – Logo estarei novamente em minha forma perfeita e poderei me desfazer dessa...carcaça inútil.

Apófis se ergueu encarando o corpo de Lucy com nojo. Tentei me erguer em fúria, gritar e xingar, mas meu corpo estava completamente contra meu cérebro. Eu só queria dormir, cair naquele chão e deixar que a inconsciência me levasse.

Não! Não vou deixar isso acontecer. Não posso!

Abri os olhos firmemente, impedindo-os de piscarem em sonolência, a tempo de ver Apófis estalar os dedos e os dois monstros que estavam às minhas costas caminharem até a pele dourada

— Levem-na para um lugar seguro. – Ele ecoou, apontando para uma das saídas da caverna que provavelmente dava em outro compartimento esquisito e luxuoso. Seus olhos logo se voltaram para mim e seu sorriso fez minha espinha gelar. – Ainda não acabei com a Língua Encantada.

Rosnei quando Apófis caminhou lentamente em minha direção, o vestido de Lucy esvoaçando e seus olhos de fenda brilhando como chamas pelo efeito das tochas. Eu queria me erguer, queria encará-lo de frente com o queixo erguido, mas meu corpo não parecia me obedecer então apenas ergui o rosto, os dedos apertados nas coxas enquanto ele parava diante de mim com seu ar arrogante. Ele se inclinou, seus dedos finos se prendendo no meu queixo enquanto as unhas fincavam em minhas bochechas o que me fez conter as lágrimas de dor.

— Não se preocupe, querida. Apenas mais um trabalho e você poderá ir descansar. Não quero meu animalzinho exausto.

Trinquei o maxilar no momento que ele soltou meu rosto sem delicadeza, a unha arranhando minha pele, e caminhou a passos lentos na direção de meus amigos.

— Bem, me cansei do seu irmãozinho... – Apófis divagava, caminhando diante dos semideuses com ar pensativo, encarando os rostos com pouco interesse até parar diante de Nico. – Quem sabe agora eu não uso seu querido namorado como incentivo?

Encarei Apófis que passava uma unha pelo pescoço de Nico enquanto ele rosnava e se debatia no lugar. Forcei o joelho e empurrei o chão para me levantar, usando toda a força que ainda tinha.

— Lucy... por favor... – Supliquei e tossi, minhas pernas bambeando. Firmei o corpo o melhor possível, aquilo ainda não tinha acabado. – Você pode lutar, Lucy. Não... não deixe que ele vença.

— É tão divertido ver suas tentativas patéticas de trazer sua amiga de volta. – Apófis debochou, os olhos vermelhos e amarelos voltados para mim ainda sem soltar o pescoço de Nico. – Bem, onde eu parei...?

Meus olhos se desviaram de Nico por segundos e eu encarei Leo que retribuiu com desespero. Assenti, lembrando do que ele contara de seu encontro com Héstia.

Ele realmente seria a peça fundamental para tirar Lucy do controle de Apófis. Se ela ainda estivesse ali...

Afastei o pensamento e vi Leo assentir em resposta, talvez lembrando o mesmo que eu. Ele voltou o rosto para Apófis que já se preparava para soltar Nico do gancho.

— O nosso...encontro no campo de morangos....

A voz rouca dele não passou de um sussurro, mas foi suficiente para Apófis travar o movimento, a cabeça virando lentamente na direção do filho de Hefesto.

— O que disse, garoto?

Leo forçou um sorriso cansado nos lábios, os olhos fechando levemente enquanto ele respirava fundo, talvez lembrando do momento que relatava.

— Eu... eu disse que escolhi lá porque me lembrava de você. Você... sempre teve cheiro de morangos...

Apófis, percebendo o que Leo tentava fazer, se afastou de Nico com um grunhido baixo e caminhou até Leo, a mão se prendendo repentinamente ao pescoço dele.

— Então você também não desistiu de salvar a garota idiota? Que belo herói! Suas tentativas vãs de nada adiantarão.

Leo ignorou as palavras rosnadas, o sorriso nostálgico ainda nos lábios.

— E você disse que eu tinha um péssimo olfato porque... porque seu perfume era de cereja. – Ele riu e tossiu com a pressão das mãos de Apófis em sua garganta, mas não parou. Pelo contrário, ele ergueu os olhos e encarou o rosto de Lucy profundamente, as feições cansadas dando lugar a algo determinado e apaixonado. – Naquele momento eu quis tanto te beijar que era como uma dor física ficar longe de você.

As palavras de Leo pareceram atingir o alvo com sucesso. Não via o rosto de Lucy, mas suas costas antes tensas e eretas pareceram aliviar de repente, como se um peso invisível saísse dos seus ombros e os músculos finalmente estivessem livres. Seu corpo tremeu levemente, suas pernas dando um passo para trás, a mão soltando o pescoço dele. Vi o olhar de esperança de Leo diante da atitude dela.

— E eu deveria ter feito o que tanto queria, Lucy. Devia ter sido impulsivo, me arriscado, mas eu ainda tinha tanto medo de me magoar depois de tudo. – Ele suspirou, o corpo pendendo para frente como se quisesse tocar a garota e resmungando quando não conseguiu mais do que centímetros de proximidade. – Mas por você vale a pena me arriscar, agora eu sei!

O corpo de Lucy voltou à rigidez de repente, a mão voando para o pescoço de Leo novamente quando Apófis tomou o controle.

— Cale-se, cria de deuses! Cale-se já!

O olhar determinado de Leo queimou ainda mais forte sobre o rosto a sua frente, as palavras saindo sufocadas, mas firmes.

— Nosso beijo sob a macieira não foi um erro, Lucy. Foi a melhor coisa da minha vida. Você é a melhor coisa que apareceu em minha vida há muito tempo e eu fui um idiota por demorar tanto a admitir que eu te amo.

O corpo de Lucy sofreu um solavanco, cambaleando para trás quando a voz dela, aquela voz suave e baixa, soou cheia de dor e pesar.

— Leo... Leo...

O sorriso de Leo se alargou de alegria.

— Eu sabia que você ainda estava aí. É a minha garota.

Lucy balançou a cabeça, os cabelos longos balançando enquanto ela soluçava e fungava.

— V-Você... disse que me ama...

Leo forçou as algemas, o rosto a centímetros do dela.

— E fui sincero em cada palavra. Eu te amo, Lucy, e não importa o que qualquer outra pessoa fale ou pense sobre você, vou fazer meu amor ser suficiente.

Lucy tinha aproximado o rosto dele, hipnotizada por suas palavras, e, dessa vez, quando Leo se impulsionou seus lábios encontraram os dela num beijo apaixonado. Desviei os olhos rapidamente, minhas bochechas quentes como se aquilo fosse íntimo demais para ficar olhando, mas logo a voz de Lucy ecoou, firme e angustiada.

— Não vou conseguir contê-lo por muito tempo. – Ela falou, um gemido doloroso surgindo em seguida. Ergui a cabeça e vi os olhos dela em mim, tão arrependidos e desesperado. – Desculpa, Duda, eu... eu deveria ter sido mais forte. Mas ainda posso ajudar.

Com os dentes trincados, Lucy ergueu os braços se afastando alguns metros. Os dedos trêmulos, os olhos fixos nas algemas mágicas, seu corpo instável. Era visível a luta dela contra o controle de Apófis, a força que ela fazia para manter seu corpo para si. Suor pingava por seu corpo, brilhando contra sua pele clara até que com um clarão e um som abafado as algemas se abriram, fazendo todos os semideuses caírem no chão, o metal mágico e acinzentado tilintando. As minhas também caíram de meus pulsos machucados e senti como se pudesse respirar novamente.

Lucy desabou, seus joelhos se chocando com o solo arenoso com um baque surdo, mas um sorriso orgulhoso pontilhava seus lábios. Sua cabeça se voltou para mim, lágrimas descendo por seu rosto.

Ela conseguiu!

Sorrindo em meio as lágrimas tentei avançar em direção à minha amiga e vi Leo fazer o e mesmo, seu corpo ainda se recuperando após tanto tempo preso.

Mas nenhum de nós foi rápido o bastante.

— NÃO, SEU VERME IMUNDO!  - O gritou ecoou da boca de Lucy, a voz totalmente diferente da dela.

Travei no lugar, meu peito se apertando ao perceber que Apófis tomara conta mais uma vez. E ele parecia completamente fora de si de ódio. Ele se ergueu, os olhos vermelhos como chamas, e me encarou com um sorriso perverso.

— Eu realmente pensei em deixar um de vocês sair daqui com vida, talvez para que a história desse dia glorioso pudesse ser contada. Uma pena que desperdiçaram minha generosidade. – Apófis rosnou, os cabelos longos esvoaçando loucamente, o corpo contornado por uma áurea rubra e malévola. – Monstros! Atacar!

Urros e rugidos surgiram dos diversos corredores ao redor da caverna, mas antes que eu buscasse o resto de forças que tinha para lutar ouvi o grito de Annie mais alto que qualquer som.

E ela gritava o nome de Percy.

Meus olhos se desviaram para meu irmão e vi com pavor sua mão erguida novamente para a garganta, Contracorrente e sua lâmina mortal descendo na pele morena enquanto o resto do corpo permanecia paralisado. Seus olhos verdes se encontraram com os meus e não pensei em mais nada, apenas me lancei em sua direção.

Meu coração retumbava no peito, o vestido apertado se rasgando na lateral da perna quando meus joelhos se arrastaram no chão, enquanto alongava meu corpo o máximo que podia.

Mas como pararia uma espada?

Não! Não posso deixá-lo morrer!

Eu quase podia ouvir a risada maliciosa da sombra que possuía meu irmão. Aquela seria a vingança dela, me atingir no que mais me machucaria.

Mexi no meu pescoço, desesperada. Meu corpo esticado, o vestido em frangalhos.

Não, não posso... mas como...?

Meus olhos ardiam no momento que cheguei diante de Percy e consegui segurar sua mão livre, a espada já colada a seu pescoço.

O minuto final.

Apertei os dedos de meu irmão, sua palma quente esfriando sobre a minha, meus olhos buscando algo.

Então o movimento da mão com a espada parou.

E ela caiu no chão.

A mão onde antes ela estava permaneceu paralisada no ar, os dedos bem abertos assim como os olhos de Percy que me encaravam com terror.

As írises verdes rodeada por uma mínima linha vermelha, lágrimas descendo por seu rosto.

Sorri em triunfo erguendo a mão de Percy, que ainda estava bem presa entre meus dedos, na altura de seus olhos, meu colar de cobre reluzindo por entre seus dedos fechados.

Apesar da dor que irradiava por todo meu corpo, abri meu sorriso mais macabro.

— Volte pro inferno, desgraçado.

O terror se tornou ira pura nos olhos verdes, mas a magia do colar já fazia o corpo de meu irmão brilhar, rodeado por aquela luz que me salvara na Grécia, o campo de força repelindo todo poder maligno perto da joia. O grito da sombra foi tão alto quanto o urro dos monstros que se aproximavam, agudo e cheio de ódio. Ela foi arrancada do corpo de Percy por uma força invisível e se desintegrou no ar num piscar de olhos enquanto o corpo do meu irmão tombou sobre o meu, sem forças. Abracei-o pela cintura, ignorando minhas dores enquanto focava toda a minha atenção no rosto dele. Os olhos fechados e a respiração pesada me encheram de preocupação.

— Percy? Percy, por favor, fala comigo.

Os olhos verdes se abriram, me encarando por entre pálpebras baixas. Um sorriso cansado se desenhando nos lábios dele.

— Ser possuído é mesmo uma droga.

Ri por entre as lágrimas, apertando Percy em um abraço. Ele se ajeitou sobre os próprios joelhos e me puxou para seus braços, me transmitindo com seu calor a segurança que eu precisava antes do mundo explodir ao nosso redor.

— Duda!

Não reconheci a voz que gritava meu nome, mas quando ergui a cabeça do ombro de Percy entendi o porquê do grito.

Um monstro enorme com asas de couro saltava em nossa direção, os dentes pontiagudos a mostra e pingando veneno amarelo.

Me desvencilhei de Percy o mais rápido que pude, minha mão tentando alcançar a espada dele que estava caída a poucos metros de nós. Mas, seja pelo esgotamento ou pela exaustão, não foi suficiente. Meus dedos tocaram no cabo da espada, meu corpo ficando à frente de Percy num instinto de proteção automático, meus olhos fixos na criatura a centímetros de mim.

Não vai dar tempo! Não vou conseguir...

Então o monstro caiu com um guincho terrível, uma adaga brilhante cravada em seu pescoço onde sangue negro e viscoso esguichava. Virei a cabeça, espantada, vendo Annie parada a poucos metros de nós. O braço que lançou a adaga ainda esticado enquanto seu rosto era pura ira.

Totó estava sentado ao seu lado, o rabo balançando e a cabeça inclinada com a língua pendendo para fora.

Annie respirou fundo e afagou a cabeça do meu cachorro.

— Obrigada pela adaga, garoto. Agora se esconda. – Ela disse, apontando para uma brecha pequena em uma das paredes da caverna, provavelmente o esconderijo do meu cãozinho durante todo aquele tempo.

Totó ganiu baixo, os olhos me encarando como se não quisesse me deixar, mas sorri para ele e assenti.

— Vá, garoto. Vou ficar bem.

O cachorro escavou a terra com a patinha, quase relutante, mas acabou acatando a ordem e correndo para a parede, se camuflando nas sombras e sumindo de vista. Annie se aproximou rápido e, apesar de mancar de uma das pernas, apoiou o braço de Percy em seus ombros e usou toda a sua força para ajudá-lo a se erguer, o rosto se perdendo no peito dele enquanto o abraçava com força como se ele pudesse sumir a qualquer momento.

Dei a eles segundos de privacidade, era o máximo de tempo que tínhamos antes que mais monstros chegassem, os urros cada vez mais próximos. Com dificuldade, forçando minhas pernas bambas ao máximo, me levantei, caminhando até onde o monstro atingido pela adaga ainda sangrava.

O líquido negro empoçava o chão e os braços finos que terminavam em garras arranhavam o pescoço na tentativa de tirar a adaga. Ele parecia uma mistura esquisita entre harpia e algum ser reptiliano, com pequenos chifres saindo da testa e as pernas peludas com cascos.

Um híbrido entre monstro grego e outra coisa...

— Me liberte, cria dos deuses. – A coisa sibilou, os olhos negros e dilatados voltados para mim. – Quero me deliciar com sua carne...

Eu sabia que a adaga não seria capaz de matá-lo, mesmo atingindo algum ponto vital. Nenhuma arma grega ou romana o faria. Prendi o colar de bronze em meu pescoço novamente e suspirei, fechando os olhos e me concentrando naquele poder antigo e que já não era mais estranho para mim. Senti meu anel esquentar contra a pele, a onda poderosa invadindo meu corpo, se misturando com meu próprio ser, sugando parte de minha energia ao mesmo tempo que me enchia de uma força sobrenatural.

Abri os olhos no momento que ouvi a horda de monstros invadir a caverna e o som de luta estourar, mas tudo parecia distante, abafado pelo poder que fazia meus ossos vibrarem e meu corpo pinicar. Eu sabia que meu corpo brilhava levemente naquele momento, mas torcia para a algazarra conseguir me camuflar de alguma forma dos olhos do mestre.

De qualquer forma, não importava. Nada importava além da explosão que me dominava naquele momento, meu corpo em perfeita harmonia com aquele poder como nunca estivera antes. Seja pela necessidade ou por finalmente aceitá-lo como uma parte importante de mim, a questão é que eu me sentia completa e em total controle.

Eu finalmente era uma Língua Encantada e sabia o que fazer.

Me abaixei sobre o corpo contorcido do monstro, arrancando a adaga com um movimento fluido. A criatura suspirou de alívio, um som tão humano que fez meus dentes trincarem. A boca cheia de dentes se alargou numa sombra de sorriso que sumiu quando ela viu algo em mim, em meus olhos. Algo que a fez guinchar e tentar se manter distante.

— Não, se afaste, abençoada de Tot...

Antes que ela pudesse regenerar o pescoço completamente, antes que ao menos terminasse sua prece, murmurei baixo como um sussurro, meu hálito quente como fogo.

Mawt...

O monstro queimou de dentro para fora, fogo dourado consumindo tudo até não restar nada mais que cinzas e um urro de desespero. Cambaleei um pouco quando o poder se esvaiu, meu corpo curvado em busca de ar como se parte de mim tivesse sido levada.

A exaustão ameaçava me tomar, meus músculos parecendo pesados demais, meu corpo ansiando por descanso.

Mas não, ainda não...

Olhei ao redor, ofegante, como se tivesse corrido uma maratona. Vi Percy e Annie mantendo os monstros longe de mim o máximo que podiam, mesmo que eles parecessem tão cansados quanto eu. Pipe e Jason lutavam a alguns metros de nós, as costas coladas para proteger a retaguarda enquanto suavam e gemiam a cada golpe desferido. Leo e seu martelo destruíam todas as criaturas que surgiam em sua frente, mas ele parecia desesperado para chegar a algum lugar, seus olhos sempre se voltando para um ponto no canto oposto da caverna, seu corpo tentando abrir caminho o mais rápido que conseguia.

Voltei os olhos para onde ele encarava e senti meu corpo vacilar com a visão.

Apófis segurava uma adaga dourada e afiada contra o pescoço de Nico.

Os olhos vermelhos como sangue dele encontraram meu olhar e seu sorriso macabro se alargou, a cabeça se inclinando levemente para um dos corredores escavados na rocha e sumindo com Nico por ele. Eu quase podia ouvir sua voz debochando, sussurrando: Venha, pequena Swan. Siga-me ou ele morre.

Ódio queimou dentro de mim e torci para aquele sentimento ser combustível suficiente para meu corpo esgotado. Não chegou nem perto, mas eu não cederia ao cansaço.

Nunca deixaria Nico nas mãos daquele desgraçado.

Arranquei o tridente da pulseira e lancei os dois para o ar, recebendo de volta Tríaina e Kýmata que pousaram em minhas mãos com o equilíbrio perfeito. Girei a espada entre meus dedos, meu olhar voltado para Percy que me encarava sério, Annie ainda lutando com dois monstros há poucos metros de nós.

— Ele levou Nico. – Rosnei, meu corpo tremendo. – Preciso encontrá-lo.

Percy suspirou, sua espada cortando o braço de uma manticora com rosto de crocodilo que surgiu mesmo que a ferida logo se regenerasse. Ele assentiu para mim.

— Vá atrás dele, nós manteremos essas coisas ocupadas. – Ele falou apontando desleixado para o exército de criaturas. Seu sorriso debochado parecia deslocado demais no meio da situação tão crítica. – É, eu sei que nossas armas não adiantam de nada contra eles, mas Nico nos contou o segredo.

E, demonstrando na prática, Percy pegou o braço decepado da manticora híbrida e afundou as garras da pata no corpo já regenerado da criatura. Ela guinchou e se desfez em pó diante dos meus olhos.

— O feitiço contra o feiticeiro. – Murmurei, surpresa. Meus olhos encarando os verdes brilhantes de meu irmão que sorria de orelha a orelha. – Apenas eles podem destruir a si mesmo. Faz sentido.

Percy assentiu e inclinou a cabeça na direção que Apófis sumiu.

— Vai lá resgatar meu cunhado. – Brincou, mas seus olhos logo ficaram sérios. – Por favor, seu cuida, pequena sereia.

Sorri carinhosamente e acenei, voltando meus olhos para o corredor do outro lado da caverna e os mais de quinze monstros no meu caminho até ele.

Pisquei, afastando a tontura, e apertei o escudo.

Só mais um pouco. Só preciso aguentar mais um pouco.

Avancei, evitando lutar ao máximo, desviando de garras e usando o escudo contra os ataques. Minhas pernas quase cederam com um golpe mais forte de um monstro metade leão, metade hipopótamo, mas saltei para longe e voltei a correr sem olhar para trás. Eu sabia que minha espada de nada adiantaria e não tinha tempo ou forças para combater as criaturas.

Nico era meu objetivo e nada mais importava.

Quase suspirei de alívio quando driblei o último monstro e sumi pelo corredor apertado, a luz de tochas sendo a única iluminação do local. Segui por ele, me apoiando nas paredes quentes de areia, tropeçando em meus próprios pés. A lateral de meu corpo ardia, uma lembrancinha das garras de uma górgona, mas não parei para ver a gravidade do ferimento. Não parei nem mesmo quando meus joelhos falharam e eu me vi deslizando para frente, a saia de meu vestido idiota rasgada até a altura das coxas, meu corpo vibrando em dor.

Nada me faria parar.

Então o corredor finalmente se abriu para um salão escavado na areia, menor que a caverna que eu saíra e bem mais escuro, a luminosidade vinda apenas dos pequenos hieróglifos dourados que pontilhavam as paredes. Pude ver os contornos das rochas, os símbolos antigos que contava uma história de crueldade e morte seguiam até uma parte ao fundo do lugar onde um altar de pedra escura era rodeado por mais hieróglifos, esses marcados em vermelho sangue.

Um livro e uma caneta estavam pousados sobre o altar.

Senti meus pés me guiando para frente por uma força estranha, terrível, mas irresistível. Era algo tão poderoso quanto aquela que tomava meu corpo, talvez mais. Era hipnótico, me envolvendo como algemas, sugando e dando forças ao mesmo tempo.

Mas o feitiço se dissipou quando uma risada rouca ecoou como trovão.

— Vejo que meu templo lhe agradou, Língua Encantada. – A voz de Apófis vinha de um canto mais escuro por trás do altar. Ele caminhou para frente, seu corpo ficando visível pela luz dos hieróglifos assim como Nico que permanecia refém da lâmina banhada em ouro. Os olhos vermelhos de demônio brilhavam em minha direção antes dele circundar o local com um olhar saudosista. – Minha era de ouro, quando os humanos medíocres celebravam seu verdadeiro deus. Ainda sinto o sabor dos sacrifícios, do sangue das virgens, da carne dos imaculados.

Meu estômago embrulhou ao imaginar a cena e podia jurar que via manchas negras sobre o altar, como sangue ressecado há séculos. Minha expressão só o fez rir ainda mais.

— Esses dias logo voltarão.

 Ele lançou Nico para frente, forçando-o a ficar de joelhos. A adaga acariciava perigosamente seu pescoço pálido, mas o filho de Hades não desviava os olhos dos meus.

Aquele olhar cheio de determinação e confiança.

Cheio de amor.

Rosnei, enfurecida, mas parei quando Apófis forçou a lâmina ainda mais contra a pele dele, uma ameaça velada.

— Pare! – Gritei, as mãos erguidas em desespero. – Solte-o! É a mim que você quer.

— O garoto é tão importante para mim quanto um verme, é verdade. – Apófis debochou, o rosto de Lucy se contorcendo numa expressão de puro desprezo e nojo. – Mas você é irritantemente altruísta com um complexo de herói tão grande quanto aqueles Kane desprezíveis.

Ele lambeu os lábios, a mãos puxando a cabeça de Nico para trás pelos cabelos enquanto a outra afundava a adaga até um filete de sangue escorrer pelo pescoço dele.

— Mais prazeroso do que matar você vai ser ver sua agonia quando eu matar seu namorado.

Só pensar naquilo me fez tropeçar para frente, mas lutei para manter minha expressão neutra mesmo sentindo meu coração quebrar ao perceber que nunca seria rápida o suficiente para salvar Nico daquele golpe. Meus olhos desceram para os olhos de Nico e vi o medo ali.

Medo não por si mesmo, mas por mim. Por saber como eu me culparia, como aquilo me destruiria.

Como eu faria qualquer coisa para impedir aquele fim.

Encarei os olhos vermelhos de Apófis, ódio queimando em minhas veias.

— O que quer de mim?

— Swan, não... – A voz de Nico não era mais que um sussurro rouco, calado pela arma sendo apertada ainda mais em sua pele.

Apófis apertou os lábios cheios, a expressão de júbilo instigando ainda mais minha raiva.

— Boa garota. – Ele inclinou a cabeça levemente na direção do altar, os cabelos longos de Lucy ondulando com o movimento. – Pegue o livro e abra na marcação.

Caminhei lentamente até o altar, os olhos se desviando de Apófis apenas quando subi os degraus de pedra e minha mão tocou a capa fria do livro. O título na capa reluzia fracamente, as letras curvas de um dourado apagado preenchendo o topo enquanto uma imagem de luta enfeitava a capa.

O Sangue do Olimpo.

Ali, naquele momento, as letras inofensivas pareciam conter mais do que apenas um título. Pareciam uma premonição. A Caneta Encantada ao lado do livro fez minha espinha arrepiar em antecipação.

Apesar de não saber exatamente o que estaria naquele livro, foi o único que não tinha lido ainda, minha imaginação fértil criava mil cenários de tudo de tenebroso que poderia haver entre aquelas páginas. Tudo que a própria Caneta Encantada poderia ter reforçado.

Então tentei procrastinar, descendo os degraus com lentidão enquanto pensava em algo, qualquer plano, mas com Nico sob o poder dele eu não poderia arriscar.

Nunca arriscaria a vida dele.

Meu pé prendeu em uma das reentrâncias da rocha e tropecei para frente, minha exaustão visível na minha tentativa falha de me manter de pé. Meus joelhos encontraram o chão, a dor me fazendo trincar os dentes. Ouvi a voz preocupada de Nico antes dele ser calado mais uma vez, o rosnado impaciente de Apófis ecoando alto.

— Levante-se, garota. Não tolero mais atrasos por sua culpa.

Apertei a terra sob meus dedos, meu ódio fervilhando enquanto eu forçava meu corpo a ficar de pé. O vestido destruído cobrindo meu corpo parcamente, meus ferimentos parecendo latejar até os ossos. Apanhei o livro, limpando a capa e abrindo onde uma das páginas estava dobrada. Meus olhos passaram pela página rapidamente, se arregalando quando percebi o que Apófis planejava. Ergui o rosto na direção do monstro, meu corpo retesado, enquanto ele me encarava com aquele sorriso diabólico.

— Você... – As palavras se perderam em minha garganta, meu coração acelerado. Nico me encarava com preocupação diante do meu semblante espantado. – Você quer ressuscitá-la?

Gaia.

O nome não dito pesou como algo palpável no ar, como se a própria terra se agitasse com o simples pensamento de reviver a sua deusa. Os olhos de Nico pareceram triplicar de tamanho, desespero visível em cada um de seus traços, alheio a lâmina mortal em sua pele, talvez se lembrando de que trazer Gaia de volta à vida seria como condenar todos a um fim tenebroso de qualquer jeito.

Apófis alargou o sorriso macabro, tão errado no rosto delicado de Lucy.

— Oh, não, não tenho planos de dividir meu poder com qualquer outro deus. - Ele negou, a cabeça inclinada deliberadamente. - Não quero que a traga, quero que traga o poder dela para mim.

Pisquei lentamente, meu corpo congelando ao perceber que aquilo era ainda pior. Meus dedos apertavam a capa do livro, os nós ficando brancos com a força. Eu tinha que ganhar tempo, tinha que adiar aquilo, tinha que fazer alguma coisa, qualquer coisa porque fazer o que Apófis queria era condenar o mundo mortal e todos os outros. Ele já tinha seu corpo físico de volta e com o poder de Gaia ele se tornaria algo completamente diferente, uma entidade com poderes inimagináveis!

Encarei Nico de relance e seus olhos negros permaneciam fixos em mim, transmitindo em silêncio cada um de seus pensamentos.

Eu já o conhecia bem demais pra saber o que ele diria.

E não! Merda, eu não abriria mão dele! Franzi o cenho para Nico, ignorando seu olhar de alerta, de súplica. Uma ova que eu o deixaria se sacrificar sem tentar um plano B, C ou a droga do alfabeto inteiro!

Meu último olhar para ele dizia claramente: vamos sair dessa, juntos. Não aceito nada diferente disso!

— Por quê? - Minha pergunta para Apófis ecoou na caverna, meus olhos se afastando de Nico, que desviava os olhos para a entrada da caverna e de volta para mim, aflito, enquanto eu lutava para pensar em uma saída para nós dois. - Você já é superpoderoso, já conseguiu seu corpo nojento de volta, já tem um exército! Não é suficiente?

— Não! - Ele rosnou, o rosto contorcido em ódio. - Não é! Passei milênios acorrentado, nada além de um bicho de estimação atuando numa peça de teatro eterna com Amon Rá, e quando escapei, quando finalmente estava livre, os deuses idiotas usaram crianças para me derrotar como se eu não fosse nada! Um ser tão poderoso usado apenas para deixar a vida dos deuses menos monótona! Mas não dessa vez, não com um poder que vai além deles, além de qualquer coisa que já existiu.

O rosto de Lucy afundou numa expressão de pura luxúria e maldade, os olhos vermelhos como sangue, e senti meu corpo arrepiar completamente.

— O mundo estará diante de mim, os deuses ficarão impotentes e tudo com poucas palavras suas. - Ele concluiu, o queixo erguido em minha direção. - Sinta-se orgulhosa, Língua Encantada, você será a criadora de uma nova era: A Era da Serpente.

Apesar das palavras de Apófis fazerem meu corpo congelar, meus olhos relancearam na direção de Nico que tinha o rosto lívido, os olhos me fuzilando como se gritassem pela minha atenção. Quando me viu encarando ele piscou, a cabeça inclinando levemente para a direita, um movimento que passou despercebido por Apófis, mas que me alertou pela urgência expressa em seu olhar. Franzi o cenho, olhando para onde Nico indicou e não vendo nada na escuridão da parede da caverna. Mas o que…?

Então um movimento na parede. Apenas um ondular na escuridão como um véu sacudindo com um vento fantasma. Apertei os olhos, quase acreditando estar enlouquecendo, até o véu desvanecer lentamente revelando, aos poucos, o corpo de Leo recostado na parede com Totó parado a seus pés. Lutei para controlar minha expressão de espanto e alegria, apertando os lábios e contendo um sorriso quando Leo piscou maroto em minha direção e ergueu o dedo sobre os lábios, logo mexendo-os sem emitir som algum, dizendo: "Ao seu comando, Chica!"

Como ele…?

Então eu lembrei, meu coração agitado e meus olhos se voltando para Nico que retribuía com afinco, o véu retornando sobre Leo e Totó, os deixando invisíveis mais uma vez.

O momento que ele encarou a entrada da caverna com os olhos arregalados!, lembrei. Achei que fosse por preocupação comigo, mas com certeza era Leo que surgiu e Nico logo fez as sombras o cobrirem!

O filho de Hades parecia ler cada pensamento meu pois vi seus lábios se erguerem lentamente e com certa petulância. "Ainda tenho meus truques, cisne", era o que seu olhar dizia. "Não vou te deixar fazer tudo sozinha."

Meu peito se apertou em gratidão e amor, meu corpo clamando para sentir os braços de Nico ao meu redor mais uma vez, me dando forças. Eu precisaria daquilo para o que viria e não sabia se teria a chance de sentir a segurança dos braços dele ao meu redor mais uma vez. Se ao menos soubesse que nosso beijo seria o último…

— Agora sugiro que desista do seu plano infantil de tentar ganhar tempo. - Apófis falou, sua voz ácida e irritada me fazendo grudar os olhos em seu rosto, afastando os pensamentos mórbidos. Não podia fazer nada que o fizesse suspeitar da presença de Leo então mantive a expressão cansada e assustada enquanto ele dava um passo para frente forçando Nico a arrastar os joelhos no chão. - Seus amigos estão ocupados demais com meus monstros, se é que ainda estão vivos. Ninguém vai vir, criança, não importa quanto tempo espere. Então comece a ler, agora!

Engoli, a garganta arranhando e a boca seca demais, mas não achava que Apófis faria o favor de me dar um pouco de água. Pigarreei, lançando um último olhar à parede, torcendo para Leo e Totó estarem a postos para quando eu desse o sinal, qualquer que fosse ele.

Porque eu não tinha um plano verdadeiramente brilhante! Eu só precisava tirar Nico do alcance de Apófis e depois faria qualquer coisa para derrotá-lo. Precisava que Nico e meus amigos saíssem são e salvos dali e depois… bem, o sacrifício da profecia ainda não tinha se concretizado e eu sabia que as profecias sempre se cumpriam, de um jeito ou de outro.

E eu estava em paz.

Estava preparada para qualquer fim.

Talvez não tivesse tido tanto tempo assim, mas tudo o que vivi nesses meses, todos que conheci e amei, tudo que aprendi sobre mim mesma foi suficiente. Foi mais do que eu esperava viver minha vida inteira! Então morrer para que quem eu amava sobrevivesse não era amedrontador, mas tranquilizador.

Eu estava pronta.

Umedeci os lábios, meu dedo marcando o pequeno trecho destacado do livro onde algumas palavras tinham sido incluídas com a Caneta Encantada de forma apressada e descuidada, se sobressaindo como se quisessem escapar da página.

Como se seu lugar não fosse ali.

Respirei fundo, firmando minhas mãos que tremiam, e deixei que minha voz fluísse com aquele poder já tão familiar, as palavras ecoando como mel sobre minha língua, deslizando e enchendo a caverna com algo mágico apesar do desastre que elas causariam.

A terra sob meus pés tremeu, a montanha ondulando diante de meus olhos quando algo se ergueu lentamente, a montanha já não parecendo mais algo inanimado, mas um corpo tomando forma, as curvas de uma mulher. Então o poder de Gaia emergiu e…

Prendi o ar de repente, piscando para o resto da frase, contendo as palavras entre meus lábios cerrados, fingindo que precisava tomar fôlego e usando os segundos preciosos para ler mentalmente o resto da frase criada inteiramente pela Caneta Encantada: … e foi tomado inteiramente por Apófis que se tornou o ser mais poderoso da Terra. Isso seria um desastre completo, irreversível.

Se eu não tivesse uma última carta na manga: o Alkalima.

Respirei fundo, tirei os olhos do livro e proferi as palavras enquanto encarava Apófis nos olhos.

...e destruiu… os domínios… de Apófis.

Desabei antes mesmo que a última palavra saísse por meus lábios. Eu conhecia aquele poder há poucas horas e nunca tinha usado para formar uma frase inteira. Apenas palavras soltas e aquilo já tinha me desgastado.

Dessa vez, eu senti como se algo tivesse drenado todas as minhas forças, tudo o que eu era. Meu corpo não passava de uma casca, minha cabeça pesava uma tonelada e eu senti que piscava sonolenta, mas forcei meus olhos a se manterem abertos, focados na visão de um Apófis confuso e irado.

Encarei o teto, esperando. A qualquer momento…

— Isso não estava escrito! O que você…? - Mas antes que Apófis pudesse gritar, o chão começou a tremer e areia e rochas despencaram do teto, primeiro apenas fragmentos pequenos e então cada vez maiores. Ele arregalou os olhos, o corpo de Lucy desequilibrado com o tremor enquanto Apófis me fuzilava. - O Alkalima, você tem…

Eu vi a mão de Apófis escorregar centímetros para longe do pescoço de Nico, toda a sua atenção em mim e no que acabara de fazer.

Era o momento perfeito.

— A-Agora, Leo!

Forcei a voz o mais alto que pude, minha garganta arranhando como se estivesse em carne viva, mas foi suficiente. Nico sumiu com o véu de sombras na mesma hora que Totó saltou e mordeu o calcanhar de Apófis enquanto Leo retirava uma espada de bronze do seu cinto. O grito gutural que escapou dos lábios de Apófis era puro ódio, mas ele não conseguiu manter Nico sob seu domínio ao mesmo tempo que tentava se livrar do meu cãozinho.

Foi tudo rápido demais e eu estava paralisada de exaustão, assistindo imponente quando Apófis lançou Nico para frente, tirando a adaga do pescoço dele para voltá-la para Leo.

— Sai daqui, peste inútil.

Ele rosnou, chutando Totó do seu caminho com tanta força que meu cãozinho voou se chocando na parede oposta com um ganido alto de dor e parando de se mexer.

— Não, Totó! - Chorei, tentando me levantar para ampara-lo. Minhas pernas tremeram, sem forças e sem equilíbrio devido o terremoto que só aumentava.

Consegui ficar em pé, mas ainda não estava recuperada de todo o poder, meu corpo ainda estava lento e meus reflexos de nada serviam quando uma rocha se desprendeu do teto caindo em minha direção. Eu tentei me forçar para frente, xinguei meu corpo idiota por não responder rápido o suficiente e quase ri de mim mesma por ter destruído os planos de Apófis só pra morrer em seguida esmagada por uma rocha.

Que fim poético, não é mesmo?

Não desisti, mas fechei os olhos quando percebi que o impacto era iminente, ignorando os gritos por meu nome e o som de espadas retinindo ao longe.

Então todo o ar sumiu de meus pulmões quando algo se chocou contra meu corpo, me lançando ao chão e me fazendo rolar por areia e pedras. Tossi, engasgando com a poeira e abrindo os olhos quase esperando ver como era a pós-vida e me perguntando porque eu ainda sentia meu corpo inteiro doer se já estava morta.

Fui presenteada com a visão de dois olhos negros diante dos meus, brilhando de preocupação e alívio em seguida.

— Quando você vai cansar de quase morrer a cada minuto? Juro que já envelheci trinta anos de preocupação desde que te conheci…

Aquela voz! Deixei Nico continuar reclamando enquanto sorria de felicidade, afundando a cabeça no peito dele sobre mim e rodeando meus braços em sua cintura. Eu só queria ter certeza de que ele era real, que estava salvo nos meus braços e longe da adaga de Apófis. Seu cheiro amadeirado me atingiu em cheio quando meu nariz deslizou por seu ombro e eu respirei fundo acreditando, pela primeira vez, que sairíamos todos juntos dessa. Rezando a todos os deuses que aquilo acontecesse.

Afastei meu rosto apenas para voltar a encarar aqueles olhos que tanto amava e deixei um selinho rápido nos lábios dele, calando seu monólogo repressor e o fazendo corar levemente com o ato repentino.

— Bem, apesar dos trinta anos mais velho você continua um gostoso. - E apertei o abdômen dele para enfatizar minhas palavras.

Nico engasgou, seu rosto parecendo mais vermelho do que já vira em toda a minha vida.

— Swan!

E eu ri, gargalhei incontrolável apesar do terremoto, de Apófis e de que nem ao menos sabia se sairia viva dali. Ri porque tive a chance de olhar Nico mais uma vez, de abraçá-lo e de beijá-lo. Foi um presente, um que eu agradecia com todo o coração.

Eu achei que estivesse pronta antes, mas agora eu tinha certeza.

Porque o sacrifício tinha que existir e eu sabia que não poderia escapar do destino.

Nico se ergueu, segurando minhas mãos com delicadeza e me puxando para cima. Seus braços rodearam minha cintura, estabilizando meu corpo ainda fraco, uma das mãos afastando meus cabelos dos olhos.

— Você está esgotada, cisne. Precisamos sair daqui.

— Não posso. - Neguei, tentando me afastar de Nico que apenas firmou os braços em minha cintura como correntes inquebráveis. - Não posso deixar Apófis escapar, ele tem seu corpo físico a disposição por minha causa! E Lucy ainda está ali dentro em algum lugar! Não posso desistir dela.

Nico trincou os dentes, os olhos queimando sobre mim.

— Então vou ficar, só saio daqui com você ao meu lado.

Balancei a cabeça, meus olhos se desviando do rosto angustiado de Nico e encarando a luta entre Leo e Apófis. Apesar do vilão não estar em todo o seu poder, ele ainda era mais forte que o filho de Hefesto, mais habilidoso e rápido.

E Leo nunca machucaria Lucy.

Eu o ouvia suplicar por ela enquanto desviava precariamente dos golpes de Apófis, chamando por Lucy e pedindo que ela voltasse para ele, que lutasse contra aquele poder.

Mesmo que as chances fossem mínimas.

Nós amávamos Lucy e não desistiríamos dela, mas se nada funcionasse…

Não queria Nico ali. Não suportaria se Apófis o pegasse mais uma vez, e dessa vez, com seus planos frustrados, ele não faria apenas ameaças.

— Não, anjo, você tem que voltar para os outros. - Encarei Nico com pesar segurando o rosto dele entre minhas mãos antes que ele protestasse. - Com seu poder, é o único que pode abrir o caminho mais rápido para fora dessas cavernas. Tudo vai desabar em pouco tempo e preciso que todos estejam fora daqui quando isso acontecer.

Como incentivado por minhas palavras, o chão tremeu mais forte e Nico me puxou para mais perto quando mais pedras caíram a poucos centímetros de nós. Ele me encarou, sua risada amarga partindo meu coração.

 -Todos são e salvos e você se sacrifica no processo. Eu sei o que está pensando, sei que acredita que o sacrifício da profecia deve ser seu, mas já disse que não vou deixar isso acontecer!

Suspirei, quase indignada por Nico me conhecer tão bem em tão pouco tempo.

— E-Essa não é a questão! Vamos todos sair daqui, mas preciso ajudar Leo a trazer Lucy de volta e quando isso acontecer não teremos tempo de sobra para ainda procurar a saída desse inferno! Preciso que faça isso, anjo! Preciso que leve Totó e que encontre a saída, ou abra uma, antes que tudo desmorone!

Quando ouviu o nome do nosso cachorro, Nico desviou os olhos preocupados para o canto onde Apófis o lançara, perto da única entrada daquele santuário esquisito. Caminhamos até lá, meu corpo clamando por descanso a cada passo, mas escondi meu cansaço ao máximo enquanto lutávamos para desviar das rochas e nos equilibrar no chão trêmulo. Tropecei quando um tremor mais forte apareceu e Nico segurou meu braço. Quando chegamos perto do corpinho imóvel de Totó não controlei as lágrimas.

— Totó? - Murmurei, acariciando os pelos negros enquanto chorava. - Por favor, acorde.

— Vamos, garoto. - Nico sussurrou ao meu lado, a voz embargada enquanto alisava a cabeça do cãozinho. - Não pode nos deixar. Ainda nem te dei aquele osso que prometi quando nos ajudou a encontrar a Swan! Ainda tem muitos petiscos esperando…

Uma orelha minúscula se moveu e ri entre as lágrimas quando Totó abriu um olho lentamente, ganindo baixo de dor. Nico o pegou no colo com cuidado, beijando o focinho dele com um carinho que derreteu meu coração. Os olhos negros me encararam com determinação.

— Eu vou levá-lo e abrir uma saída pra nós, mas juro que se não aparecer até lá eu volto aqui e te levo. Não me importo se esse desgraçado do Apófis ainda estiver vivo, vou te levar embora de qualquer jeito.

Abri um sorriso pequeno e assenti. Nico se aproximou, a mão livre descansando em meu queixo e me puxando para um beijo profundo e delicioso.

— Prometa que vai sair daqui e que vai fazer de tudo para voltar pra mim. Prometa que vamos nos encontrar de novo.

— Eu prom…

— Prometa pelo Rio Estige. - Ele me cortou sério, a mão ainda repousada em minha bochecha, os olhos queimando sobre mim.

Respirei fundo sabendo o peso que aquelas palavras teriam. Mergulhei nos olhos negros e assenti.

— Eu juro. Juro pelo Rio Estige que vamos nos encontrar de novo.

Ouvir aquilo pareceu acalmar Nico. Ele deixou um último beijo rápido em mim, o nariz acariciando o meu antes de se afastar. Apertei seu braço antes que ele se afastasse.

— Nico, eu te…

— Não. - Ele interrompeu, negando. - Não vai dizer isso agora, como uma despedida. Diga quando nos encontrarmos de novo. Diga como se fosse a primeira vez do resto das nossas vidas e não a última. Porque eu também vou dizer, com todo o meu coração. Não esqueça: sempre e pra sempre, cisne.

Seu sorriso amoroso foi a última coisa que vi antes dele se afastar ainda receoso e sumir correndo pela entrada como se quisesse fazer aquilo o mais rápido possível e voltar para mim.

Lágrimas encharcaram meu rosto. Queria que ele tivesse me ouvido, queria ter falado que o amava mais que tudo.

Porque eu sentia que aquela tinha sido uma despedida. Que eu não veria aquele rosto que tanto amava novamente.

Eu tinha certeza de que nos encontraríamos de novo, eu sempre voltaria para ele.

Mas não nessa vida.

Se Nico tivesse percebido essa brecha quando me fez jurar…

Bem, era tarde demais e eu agradecia por ao menos ter me despedido, dele estar vivo e poder escapar.

Obrigada. Obrigada a qualquer deus que me deu esse presente. Juro que vou fazer valer a pena.

Me apoiei na parede, meus dedos aquecendo com o calor enquanto afastava os pequenos pedregulhos que caiam sobre mim. O salão, antes impecável, agora estava entulhado de pedaços de rochas, um labirinto de detritos. O altar estava quebrado, uma rocha enorme caída no meio. Meus olhos vasculharam o chão próximo de lá até encontrar o pequeno objeto brilhando no meio da poeira.

A Caneta Encantada.

Caminhei aos tropeços até ela, o chão parecendo ondular sob mim enquanto a voz de Leo se sobressaía ao barulho do desmoronamento.

— Não vou desistir de você, Lucy.

A risada de Apófis fez meu corpo tremer tanto quanto o terremoto.

— Ela se foi, cria de deus. E você logo vai segui-la para o Duat ou qualquer que seja o inferno grego de vocês!

Cai no chão quando alcancei a caneta, minha mão apertando o tubo fino enquanto encarava Leo cedendo aos poucos diante das investidas de Apófis. Ele estava exausto, não aguentaria muito mais.

Eu tinha que fazê-lo sair, seguir os outros para fora daquelas tumbas antes que eu destruísse Apófis ou ao menos mantivesse ele ali dentro enquanto tudo desabava sobre nossas cabeças.

Um plano fraco e idiota, típico daquelas fantasias mixurucas que o herói não consegue pensar em nada além de ser um mártir e se sacrificar, eu sei. Mas estando ali, vendo Leo prestes a morrer e meus amigos presos num lugar desabando por minha causa eu usaria qualquer plano que surgisse, até o mais clichê!

— Ei! - Gritei com o máximo de força que consegui. - Apófis! Fui eu que destruí seus planos, sou eu quem está com sua preciosa caneta e sou eu quem vai acabar com sua raça.  Isso é entre nós dois!

Os olhos vermelhos do vilão se voltaram pra mim por segundos, tempo que Leo usou para tentar desarmá-lo.

Mas era isso que Apófis queria.

Vi o sorriso macabro se abrir, aqueles dentes brancos sobre os lábios finos.

— Não, eu acho que não.

Meu grito saiu arranhando pela garganta no momento que Apófis segurou o braço de Leo mesmo que seus olhos vermelhos continuassem em mim. Girou o braço dele, fazendo a espada de bronze cair, e o puxou para perto no momento que encarou os olhos castanhos do meu amigo e cravou a adaga dourada entre suas costelas.

Minha visão embaçou com lágrimas e não pude desviar os olhos quando Leo caiu de joelhos, a boca aberta e os olhos arregalados em espanto.

Algo agudo e desesperado ecoou forte em meus ouvidos e podia jurar que era meu próprio grito até ver Apófis se ajoelhando na frente de Leo, as mãos puxando o cabelo longo e escuro enquanto a boca estava aberta num grito de dor.

E lágrimas desciam sem parar por seu rosto.

Lucy.

Lucy ainda está lá.

— Oh, m-meus deuses, Leo! Leo, por favor...

O choro dela era alto e doloroso, agarrando o corpo de Leo e embalando em seus braços.

— Não, não, e-eu não queria isso. Nunca quis isso! - Ela soluçava, desamparada. - Eu te amo, Leo. Sempre te amei. Por favor, por favor, me perdoa.

Leo ainda parecia acordado e podia jurar que aquele sorriso grande dele estava estampado em seu rosto pois Lucy sorriu em meios as lágrimas e se inclinou para beijar os lábios dele.

— Não, não vou deixar. Eu tenho pouco tempo, ele quer voltar, mas…

Então ela parou, respirou fundo e ajeitou o corpo de Leo em seu colo, pondo as mãos sobre o ferimento. Fechou os olhos e entoou algumas palavras em egípcios, tão baixas que só ouvi trechos.

Refaça.

Volte.

Cure.

Mal pousou o corpo de Leo a sua frente, o ferimento tendo parado de sangrar tão intensamente como estava antes, e pegou a adaga manchada de sangue, o corpo dela foi tomado por Apófis. Ela se curvou pra frente, lutando. Fincou a adaga no chão, apertando o cabo até o nó dos dedos ficarem brancos.

— Desista, criança. - A voz de Apófis ecoou pela boca dela, o corpo se contorcendo enquanto Lucy ainda lutava. - Não vou perdoá-la por usar nosso resto de poder para curar esse semideus. Você nunca sairá viva daqui e nem ele.

Os olhos castanhos de Lucy voltaram, sumindo com a linha vermelha das írises por segundo.

— Não, esse ainda é meu c-corpo! - A voz de Lucy, aguda e cansada, ecoou. Ela se engasgou, tossiu, mas não abriu mão do controle. - Não vou deixar que machuque mais ninguém.

Ela ergueu a mão com a adaga tentando lançá-la longe, mas Apófis dominou a mão e prendeu a adaga entre os dedos.

Era uma cena estranha, uma luta pelo controle do corpo e nenhum dos dois cederia.

Mas Apófis tinha séculos de força cultivada.

— Chega! - O urro dele tremeu ainda mais a caverna aos pedaços, Lucy sumindo completamente e deixando apenas a expressão de pura maldade e os olhos vermelhos da serpente. - Logo estarei em meu corpo glorioso e essa criatura inútil será descartada!

Ele então caminhou lentamente em minha direção, desfilando como se a destruição ao redor não fosse nada. Tentei me afastar, apertando a caneta e o livro em meu peito, mas minhas pernas não pareciam funcionar mais.

Eu tinha chegado ao fundo de meu poder. Mesmo a morte iminente não me fez reagir.

E eu estava tão cansada. Só queria me deitar e ficar ali em paz.

Com os cantos de minha visão percebi Leo se remexendo, seu gemido baixo, mas uma prova de que ele ainda estava vivo. O poder de cura de Apófis. Lucy usou em Leo. Suspirei de alívio quando os olhos castanhos de Leo pousaram em mim, cansados e cheios de vida.

Inclinei a cabeça discretamente na direção da saída da caverna, torcendo pra Leo entender. Ele arregalou os olhos e negou veemente, se recusando a me deixar forçando as mãos no chão para tentar levantar seu corpo e caindo novamente; o ferimento tinha sido estancado, mas ele não estava totalmente curado.

Teria bufado com sua teimosia se Apófis não estivesse bem diante de mim, bloqueando tudo de minha visão a não ser seu corpo e a adaga encostada em meu pescoço.

— Você é esperta, criança, mas essa pirâmide é apenas um dos meus esconderijos.

Sorri, arriscando ser decapitada, mas não perdendo o ar de superioridade.

— Por isso englobei em minhas palavras todos os seus domínios, não apenas esse lugar.

Vi a expressão debochada de Apófis se tornar afiada como uma lâmina, os olhos vermelhos parecendo lava derretida. Ele apertou a lâmina tirando sangue do meu pescoço e puxando meu cabelo para que minha cabeça se erguesse ainda mais e o encarasse face a face.

— Um contratempo, realmente. Mas com seu poder posso refazer tudo. - O sorriso reptiliano dele me fez arrepiar, o hálito me deixando zonza. - Há quanto tempo não via o Alkalima! Um poder desses… ah, meu bichinho! Você é realmente uma espécie rara que não pretendo perder tão cedo…

Apófis desceu a mão de meus cabelos até meu braço, pronto para me levantar e me levar embora. Leo ainda tentava se levantar, os joelhos contra o chão e as mãos apertando a terra.

— Duda, você tem…

Mas suas palavras foram engolidas por um som alto, molhado e tenebroso. Um som que ficaria em minha mente por anos.

O som de ferro cortando carne.

Arregalei os olhos esperando ver o sangue encharcando meu peito, meu pescoço jorrando o líquido viscoso e a vida me abandonando, mas quando ergui os olhos vi a cena que eu esperava, porém, acontecendo diante de mim.

O corpo de Lucy ajoelhado em minha frente, a lâmina dourada e suja com sangue ainda presa nos dedos longos.

O pescoço de Lucy aberto de um lado a outro enquanto seu vestido antes claro estava banhando em vermelho vivo.

Os olhos vermelhos ainda estavam ali, espantados.

— O q-que você fez? - A voz de Apófis soou fraca, irada e enlouquecida. - Como você…?

Então vi os olhos vermelhos perdendo a cor, clareando até estarem num tom castanho-claro como as folhas no fim do outono.

Os olhos da minha amiga.

— Lucy. - Murmurei, angustiada. - Não. Por que fez isso?

Ela sorriu, sangue escorrendo dos lábios, o corpo pendendo de um lado a outro.

— Prometi…prometi que não o deixaria machucar mais ninguém. F-Foi o único j-jeito.

Deixei o livro e a caneta de lado para amparar o corpo de Lucy que caiu sobre o meu, sem forças. Eu soluçava, impotente, vendo minha amiga morrer nos meus braços.

— Não, a g-gente ia dar um jeito, Lu! - Chorei, afastando os cabelos dela dos olhos, minhas mãos ficando empoçadas com o sangue de seu pescoço. - Você n-não pode…

— Era a única forma de enfraquecê-lo, Duda. Não sei se foi capaz de matá-lo, mas vai demorar até ele poder fazer tanto mal novamente. - Ela sussurrou, os olhos fechando lentamente e seu sorriso orgulhoso no rosto. - Me deixe ser a heroína dessa vez, garota.

A heroína…

Um sacrifício!

É isso.

O fim da profecia.

Ouvi Leo desabar em prantos do outro lado do corpo de Lucy, puxando-a para seu colo como ela tinha feito momentos antes com ele, quando eu finalmente entendi.

— É você. - Exclamei, meus olhos caindo sobre o casal que se abraçava. Leo acariciava os cabelos dela sem parar e Lucy parecia lutar para se manter acordada. Para se manter viva. - O sacrifício que salvaria ou condenaria o mundo é seu. Você salvou todos nós, Lucy. Você é a heroína da profecia.

Ela pendeu a cabeça na minha direção, sua respiração pesada e arranhada.

— Não, eu apenas consertei meu próprio erro. - Ela tossiu, sangue descendo por sua bochecha. – D-Desculpe, Duda. Por f-favor, me perdoe. Eu...eu não queria causar tanto mal. Juro que não queria.

Leo apertou-a contra seus braços, balançando enquanto suas lágrimas banhavam o rosto dela.

— Nós te perdoamos, meu amor. - Ele sussurrou com a voz embargada, os olhos presos aos dela. - Todos já fizemos escolhas ruins, mas você já se redimiu. Você é uma heroína, saiba disso quando…quando entrar nos Campos Elísios.

Lucy pareceu respirar fundo diante daquelas palavras, o rosto em paz quando falou:

— O-Obrigada. Eu te amo, Leo Valdez.

— Também te amo, Lucinda.

Ele a beijou e quando se afastou os olhos de Lucy tinham se fechado para sempre, o sorriso transmitindo a paz que ela finalmente sentia. Leo gritou, seu corpo tremendo com soluços e eu queria tanto desabar, chorar e dizer o quanto aquilo era injusto, mas não tínhamos tempo. O salão tinha pedras caídas por todo lado, uma delas tendo caído a centímetros de nós. Um monte já se erguia diante da entrada, crescendo a cada minuto. Tínhamos que sair antes que não houvesse mais saídas.

— Leo, temos que ir. - Murmurei. Nunca achei que fosse ser tão difícil ficar de pé, mas naquele momento estava usando todas as minhas forças para aquele simples ato. Toquei o ombro de Leo. - Temos que levar o corpo dela de volta. Ela merece uma linda mortalha.

Leo sorriu, os olhos brilhando em minha direção.

— Sim, cheia de livros.

Ri e assenti, a dor ainda recente demais, o cheiro repugnante de sangue me deixando enojada e fazendo as lágrimas aumentarem. Limpei o rosto, precisava deixar o luto para depois.

Precisava ser forte por nós dois porque Leo… ele não poderia e eu entendia. Imaginar Nico no lugar de Lucy, o sangue encharcando seu peito e os olhos sem vida, foi o suficiente pro meu estômago embrulhar de vez. Eu estava disposta a abrir mão do mundo para salvar Nico, não suportaria…

Afastei o pensamento quando uma parte maior do teto desabou. Tentei ajudar Leo a se levantar o que foi uma missão quase impossível porque 1) eu estava completamente desgastada, o poço do meu poder completamente esgotado, clamando por qualquer lugar onde eu pudesse me jogar e dormir por uma semana seguida e 2) Leo tinha acabado de ser empalado e, apesar do poder de Apófis ter curado a parte mais crítica, ele ainda parecia destruído e sem forças.

Mas talvez o desespero das rochas caindo cada vez mais e obstruindo a passagem tenha dado a adrenalina necessária para agirmos. Agarrei o livro e a Caneta Encantada, prendi a adaga dourada no cinto do vestido e Leo tomou Lucy nos braços com dificuldade.

— Leo, você…

— Eu consigo. - Ele falou definitivo, apertando Lucy contra seu peito e contendo uma careta de dor. - Vamos.

Assenti, seguindo Leo por entre o labirinto de rochas quando as tochas começaram a tremeluzir e se apagar por todo o salão.

E quando sumi pela saída da caverna atrás de Leo pude jurar que uma sombra serpenteou pela parede do fundo daquele santuário, desaparecendo pelo teto antes da última tocha se apagar e mergulhar o lugar na completa escuridão.

Não, não pode ser…

Caminhei pelo corredor escuro, as mãos deslizando pelas paredes e sendo guiada pelo som dos passos de Leo à minha frente. Focando em não tropeçar nos meus próprios pés.

Uma preocupação de cada vez!

Xinguei quando tropecei por causa de um novo tremor, minha mão arranhando nas pedras da parede. O livro pesava em meu braço, a caneta parecendo quente entre meus dedos, quando chegamos à outra caverna onde nossos amigos estavam antes.

Estava tudo tão destruído quanto no santuário, poucas tochas ainda queimando enquanto pedaços do teto e das paredes jaziam no chão assim como corpos de monstros se contorcendo levemente, alguns imóveis com pedaços de garras e espinhos transpassando seus corpos.

Um verdadeiro caos.

Alívio me inundou quando não vi nenhum corpo humano no meio dos escombros. Sorri apesar do cansaço.

Nico conseguiu, levou todos para fora em segurança.

Leo parou por segundos, a respiração agitada e os olhos procurando a melhor saída.

Todos os corredores pareciam iguais, escuros e cheios de rochas.

— Por onde vamos?

Olhei ao redor, a chuva de pedras ficando cada vez mais intensa.

— N-Não sei. Nico ficou de encontrar uma passagem para fora então…

Como se invocado, a cabeleira negra de meu namorado surgiu de um dos túneis, o rosto lívido de preocupação enquanto saltava por rochas e monstros sem parar até nos ver no meio da caverna.

O sorriso dele foi mais luminoso que qualquer tocha.

— Swan! Você tá bem. Pelos deuses, eu…

O chão tremeu mais forte, o teto desabou mais e eu sabia que tínhamos apenas segundos para escapar.

— Saída primeiro, beijo de reencontro depois, anjo.

Nico parou e assentiu mesmo que o sorriso não saísse de seu rosto. Ele nos guiou pelo túnel que viera, Leo o seguindo de perto e eu na retaguarda. A escuridão não era problema para meu namorado mesmo que eu xingasse cada vez que chutava as pedras com meus pés descalços. Um urro vindo de algum lugar às nossas costas nos fez acelerar. Apanhei uma tocha acesa que encontrei no caminho, aliviada por finalmente conseguir enxergar as costas de Leo à minha frente.

O som de guinchos e urros só aumentava, o que provava que o exército de Apófis era bem maior do que ele mostrara. Quase chorei de alívio quando uma luz forte e quente surgiu a nossa frente: a luz do Sol.

Não acredito que conseguimos!

Mas talvez eu tenha comemorado cedo demais.

Nico sumiu pela saída iluminada, mas antes que Leo pudesse sair algo grande surgiu de um túnel lateral às nossas costas, parando a sua frente com os dentes à mostra e o rabo cheio de espinhos, pingando veneno.

Pulei na frente de Leo por puro instinto, erguendo a adaga de Apófis. Talvez aquela fosse a única arma capaz de matar aquela criatura sem que eu tivesse que usar meus poderes.

O monstro, uma mistura esquisita entre crocodilo e serpente, saltou em minha direção e ergui a tocha lançando-a na cara dele.

— Vai, Leo. Corre! - Gritei no momento que a criatura se afastou para a parede com o golpe, o rabo fazendo mais rochas caírem diante da passagem para fora daquele túnel.

 Chutei a barriga dela, quase caindo no processo, mas ao menos conseguindo tirá-la ainda mais do nosso caminho até a liberdade. Aquele túnel não suportaria muito mais e a saída já estava quase completamente obstruída, apenas um pequeno trecho aberto na lateral.

Leo correu, mas se conteve para olhar pra mim cheio de preocupação.

— Duda , não vou deixar…

— Hey, vou estar bem atrás de você! - Prometi. - Agora vai!

Apesar de ainda incerto, Leo assentiu e sumiu pela abertura, ele não poderia fazer nada com o corpo de Lucy nos braços. Caminhei de costas pelo mesmo caminho, os olhos encarando o monstro que já se recuperava do golpe. O som de desmoronamento me chamou atenção e encarei o teto que parecia frágil e prestes a desabar. Sorri, parando bem abaixo daquele ponto mais precário.

— Vem me pegar, coisa feia. - Gritei, balançando o braço e a adaga de forma provocativa. - Juro que dou uma ótima refeição!

Se o objetivo era irritá-lo eu fiz um ótimo trabalho! A coisa pulou sobre mim, os dentes expostos e o rabo armado sobre sua cabeça com os espinhos venenosos se soltando dele em minha direção como flechas. Ok, essa eu não esperava!

O teto desabou completamente no momento que eu me virei e corri, deixando que o monstro fosse esmagado pelas toneladas de rochas.

Então algo se chocou contra minhas costas, lançando meu corpo pela pequena abertura como se eu fosse uma boneca de pano no momento que a entrada da caverna foi totalmente bloqueada pelo desmoronamento.

Valeu pelo empurrãozinho!, agradeci encarando o céu azul sobre mim e respirando fundo.

Ou tentando respirar.

Algo encheu minha garganta de repente, o gosto cúprico me fazendo engasgar e tossir. Tentei virar o corpo, desesperada para puxar mais ar, mas as golfadas continuavam superficiais e fracas. Baixei os olhos lentamente quando senti aquele líquido encharcando minha língua e descendo por meus lábios como uma cachoeira.

Primeiro eu vi o sangue.

Sangue em meus lábios, sangue escorrendo pelo queixo, sangue encharcando o vestido como vinho derramado.

Segundo eu vi o espinho que se projetava através de meu corpo, a ponta afiada emergindo de meu peito em direção ao céu.

Exatamente sobre meu coração.

Encarei aquele o céu claro e sem nuvens, a tempestade que estava no topo da pirâmide quando chegamos tinha desaparecido deixando aquela visão espetacular.

É uma boa visão final...

Senti a areia fina e quente sob mim enquanto ria da ironia de tudo aquilo. Rindo por ter realmente pensado que todos sairíamos bem dali, por ter acreditado nisso com todo o meu coração.

Rindo por lembrar de um sonho estranho, meses antes, quando cheguei ao acampamento e passei semanas desmaiada. Aquele sonho tinha se desvanecido com o tempo, mas agora parecia mais nítido que nunca.

Uma Duda se sacrificando para salvar Nico de um ataque.

E morrendo no processo.

Senti uma lágrima descendo e tossi, minha risada se transformando em um som estranho e rouco.

Então ouvi aquela voz gritando meu nome.

Merda.

—Swan? SWAN! Não, não, não! Deuses, por favor, não! Amor? Amor, por favor.

As mesmas palavras do sonho.

A mesma súplica.

Fechei os olhos, o desespero e a dor tão profundos na voz de Nico eram insuportáveis. Lembrei do estado de Leo ao ver Lucy morrer em seus braços e solucei, teria dado tudo para Nico não passar por isso.

Para não vê-lo tão destruído.

Abri os olhos marejados, encarando o filho de Hades que estava ajoelhado sobre mim. Sua expressão de pavor e descrença quebrou algo dentro de mim e mesmo os gritos ao redor pareciam abafados e distantes, tudo que importava era Nico e suas lágrimas que não paravam de descer.

Nunca pensei que o veria chorar tão abertamente. Na Rússia seu choro foi doloroso, mas contido, apenas lágrimas silenciosas.

Agora era desesperador e tenebroso, como se seu pior pesadelo estivesse virando realidade.

Nunca imaginei que eu seria a causa disso.

Tentei sorrir o que só o fez chorar ainda mais, o rosto uma bagunça de poeira, sangue e lágrimas. Eu deveria estar mesmo ruim. Ele soluçava e fungava como uma criança, sua mão apertando o ferimento em meu peito como se tentasse estancar o sangue, mesmo que nós dois soubéssemos que não havia nada que pudesse me salvar.

Ergui minha mão ensanguentada, tocando o peito desnudo de Nico. Ele segurou minha mão na sua antes que ela escorregasse sem forças. Pisquei, focando minha visão que já começava a embaçar.

— No fim sua visão da Itália não estava tão errada assim, heim? - Ironizei, minha voz não mais que um sussurro seguido de uma tosse rouca com sangue. – Consegui adiar por um dia, ao menos.

Nico apertou minha mão com delicadeza, seu rosto tentando voltar à carranca diante de minhas palavras e falhando.

— Não tem graça, Swan. Nada disso! Você prometeu! Prometeu que voltaria pra mim! Prometeu…

—...que nos encontraríamos de novo. - Completei, baixo. Meus olhos fixos nele, minha mão lutando para não cair, não perder aquele contato.  - Cumpri minha promessa, anjo.

— Não! Não assim! Você sabe que não era assim! - Ele gritou, desesperado. Seus olhos dançavam por meu corpo, as mãos se prendendo ao meu redor e me puxando para seu colo, embalando e me apertando em seu calor tão bem-vindo. Senti uma de suas lágrimas cair em minha bochecha enquanto uma de suas mãos parecia vasculhar loucamente uma mochila próxima. Então ele me fez engolir néctar e ambrosia, o sabor de tantas sobremesas se misturando ao sangue em meu paladar. Nada adiantou, nada fez o ferimento diminuir. Nico gritou, desolado. - E-Era pra ser o início de nossa vida, não o fim! Não a última vez!

Deixei minha cabeça se aconchegar em seu peito, minha respiração cada vez mais difícil.

— Não é a última vez, amor. Vamos nos ver de novo, não importa quanto tempo demore. Eu vou te esperar.

O gemido sofrido de Nico ecoou por meu corpo.

— Não, não aceito isso! Não aceito que termine assim. - Ele parecia alheio a qualquer um ao redor, sua voz carregada de ira e dor, apertando meu corpo ao seu como se assim fosse me manter consigo para sempre, soluçando e gemendo como se o ferimento tivesse atravessado seu corpo também. - Você estava bem atrás de mim, era pra ter saído de lá sem problema! O que…?

— Um m-monstro… apareceu. Consegui...consegui ajudar Leo a escapar… e fiz o teto cair sobre ele… mas o idiota tinha um rabo cheio de espinhos. Não fui rápida o suficiente… ou ele tinha uma bela mira. - Minha voz estava cada vez mais fraca, sumindo um pouco a cada palavra. Puxei o ar e gemi de dor, mas continuei a encarar Nico. Tinha medo de desviar os olhos e morrer sem que aqueles orbes negras e lindas fossem minha última visão. - Ao menos… ao menos todos vocês estão bem, salvos, e Apófis se foi. Eu estava pronta para qualquer fim, anjo. O sacrifício…

— Não me importo com a profecia! Não me importo com droga nenhuma! - Ele rosnou, o rosto vermelho e já inchado de tanto chorar. - Não e-era pra terminar assim. Não você…

— Tinha que ser eu, amor. - Sorri, meu corpo cada vez mais anestesiado, meu peito cada vez mais lento. - Não suportaria que mais ninguém morresse por minha causa…

Nico pareceu confuso até seus olhos se arregalarem, seu aperto parecendo ainda mais forte.

— Você não é culpada de morte alguma! Sua mãe, sua avó, Lucy! Nenhuma delas é sua culpa! Não pode realmente acreditar nisso!

— Talvez não ou talvez eu pudesse ter feito mais…

Senti uma mão diferente passear por meus cabelos, lenta e delicada. Virar a cabeça na direção do toque foi um ato doloroso, mas sorri ao ver meu irmão ajoelhado do meu outro lado. Seus olhos verdes brilhavam com lágrimas e ele estava ferido e sangrando, mas vivo. Isso era tudo que importava.

— Não, proíbo que pense assim, maninha. - Ele ordenou, sua voz saindo mais parecida com uma súplica, engasgada e cheia de tristeza. - Sei como é querer carregar o mundo nas costas, literalmente. Mas somos apenas semideuses, uma parte nossa ainda é humana e falha. Fazemos nosso melhor e isso tem que ser o suficiente. Você é uma heroína, nada além disso importa.

Ri apesar da dor, segurando a mão de Percy com todas as minhas forças.

— Falei o mesmo pra Lucy quando ela… talvez não tenha sido um só sacrifício, talvez...talvez precisasse ser eu no final. - Suspirei e ergui os olhos vendo todos os meus amigos ao meu redor, os rostos cheios de tristeza e dor. - Não quero que chorem, não quero que lembrem de mim assim. E-Eu estava pronta, eu sabia…sabia que era eu no fim. E t-tudo bem porque… vocês mereciam um final feliz depois tudo.

— E você não? - Nico explodiu, a voz embargada e rouca. - E nós não merecíamos? Não aguento perder mais ninguém, cisne! Não vou suportar…

Entrelacei os dedos da mão livre com os de Nico. Ele ignorou o sangue, seus olhos marejados e vermelhos focados apenas em meu rosto.

— Viva por nós dois, anjo. Até que nos encontremos de novo. - Supliquei e apertei a mão de Percy levemente. - Cuide dele, maninho. Não deixe que faça nada idiota.

Percy riu, o som embargado.

— Claro. - Ele fungou e deixou um beijo profundo em minha testa, suas lágrimas molhando minha pele. - Te amo, Duda.

— Te amo, maninho. - Murmurei, sorrindo em meio as lágrimas. - Amo todos vocês e agradeço pelo tempo que tivemos. N-Não foi muito, mas…foram os melhores dias da minha vida. Vocês são minha família e isso…é melhor que tudo o que já sonhei.

—E você nos uniu de novo, Duda. - A voz de Leo surgiu de cima, seus cachos bloqueando o sol em meus olhos e seu sorriso tristonho apertando meu coração destroçado. - Você reviveu essa família e ela nunca será a mesma sem você, chica.

Ri, mas o som se transformou numa tosse.

— Nada de choro, Valdez. Apenas me prometa a mortalha mais inesquecível!

O filho de Hefesto riu e assentiu, se ajoelhando para beijar minha testa e se afastou aos soluços. Senti uma lambida em minha orelha e logo ouvi o ganido baixo de Totó.

— Garoto, você é forte. Não poderia ter pedido um cãozinho melhor. - Sorri com a nova lambida. Totó se recostou em mim, choramingando. - Cuide do nosso fantasminha, Totó. Ele vai precisar de você.

Não percebi que meus olhos estavam fechados até a voz apavorada de Nico soar em meu ouvido.

— Não, não feche os olhos! Lute! Por favor, Duda, fique comigo. Non lasciarmi, cigno! Prego! Não me deixe!

— Você me chamou de Duda… deve mesmo ser o meu fim. - Brinquei, a risada não mais que uma tosse, sangue escorrendo por meus lábios pelo esforço. - Sempre vou estar com você, amor. Não importa quanto tempo passe, vou te esperar. Sempre.

— E pra sempre. - Nico completou, erguendo meu rosto para perto do seu, admirando-me com devoção e tristeza.

Ele baixou os lábios e tocou os meus colocando todo o amor e carinho no selar profundo.

Nem o gosto metálico do sangue pode atrapalhar nosso beijo.

Nosso último beijo.

E apesar de tudo, foi o fim perfeito.

Ele se afastou tão lentamente, como se continuar a me beijar fosse me manter viva, como se pudesse me curar com seu amor.

Como se o beijo de amor verdadeiro fosse a solução de tudo.

Mas a realidade não era esse mundo perfeito e imaginário. Eu sabia agora.

Meus olhos vislumbraram as irises ônix uma última vez antes de se fecharem para sempre.

Meu último suspiro carregando minhas últimas palavras.

— Eu te amo, Nico di Angelo.

E eu finalmente estava em paz.


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Notas finais do capítulo

QUE FINAL!

Nos vemos semana que vem com o último!



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