Cordas Percutidas escrita por Héracles


Capítulo 1
Por Una Cabeza


Notas iniciais do capítulo

Inspirei-me, em parte, na canção "Por Una Cabeza", de Carlos Gardel. Para quem não conhece, altamente recomendo: https://www.youtube.com/watch?v=hGekV_bUcts
Até o momento, este é o texto que mais gostei de escrever. Demorei quase dois meses para terminá-lo, sendo uma história muito importante pra mim.
Faço um enorme agradecimento à Ana Coelho, que fez a betagem do texto. Ela me ajudou bastante!
Tenham uma ótima leitura!



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Lá... Dó...

O som daquelas notas ecoou no ambiente. Uma delas não apresentava uma frequência adequada, deixando a música um tanto dissonante. Mesmo assim, Selene continuou a tocar. Cada vez que os pequenos martelos percutiam aquelas cordas, algo se manifestava ali, ocupando, juntamente com o velho piano, um lugar naquela sala.

Seguiu tocando, sempre admirando os finais das músicas. Ao ouvir a última nota morrer, algo especial transparecia. Poderia ser isso que o filósofo Heráclito explicava a respeito do devir, quando dizia que uma pessoa nunca poderia pisar duas vezes um mesmo rio, porque as águas sempre fluíam. Isso acontecia com Selene na música. Não importava o número de vezes que ela tocasse a mesma melodia: cada momento em que o fazia era diferente.

Descobrira aquele porão havia pouco mais de uma semana. Localizava-se num casarão que tinha menos de um século, de certa forma antigo para os padrões de sua cidade. Na ocasião, tinha acabado de chegar de... Não se lembrava com clareza. Ela estivera triste e não desejara permanecer na mesma condição.

A descoberta fora um presente. Selene tinha um piano em sua casa, porém, permanecer isolada de sua mãe, de barulhos metropolitanos e do resto do mundo era demasiado atraente e instigante. Desde então, visitava o seu refúgio com frequência.

Aos poucos, as luzes filtradas pela pequena janela foram esmaecendo. Selene fechou o piano e deixou o local. Subiu os firmes degraus de concreto até abrir a porta e se deparar com as vegetações rasteiras. Estava de volta ao mundo real. Agradecia aos dias ensolarados por indicarem o tempo mais facilmente. Temia o escuro. Nem os sons eram capazes de salvá-la. A ausência de claridade transmitia lembranças ruins. Ausência de ar. Ausência de espaço. Ausência de existência.

Selene afastou o mato e andou alguns metros até chegar à rua. O bairro era, em maioria, composto de comércios. Sendo o mais antigo da cidade, podia ver-se o passado como um intruso em meio às lojas estrangeiras, capitalistas e globalizadas, embora, juntamente com resquícios civis, ainda existissem lojas em que a cultura local predominava.

Não precisava andar muito até chegar a sua casa. Enquanto seguia seu caminho, os postes iam sendo acesos, fazendo com que Selene apressasse o seu passo. As lojas davam lugar a casas, ela logo encontraria a sua. Ao encontrar, deparou-se com o portão destrancado.

— Mãe? — chamou, não obtendo resposta.

Apenas a luz da cozinha estava acesa, obrigando Selene a passar pela sala escura. A cozinha estava com certa desordem, as panelas destampadas, muitas vasilhas sujas... Olhou para a mesa, encontrando um prato com a refeição inacabada.

A porta do quarto de sua mãe estava aberta. Andou até lá.

— Desculpe a demora, eu acho que me distraí um pouco na volta do cemit... — Parou, surpresa pelo que ia dizer. Estava um pouco desligada do mundo, esquecendo-se de algumas coisas. O que havia acontecido para ter que dizer cemitério?

— Enfim, a porta estava destrancada de novo, a senhora mesma disse que o bairro está perigoso, e eu não demorei muito dessa vez... — A mãe não se tinha mexido.

Resolveu, então, preparar, sozinha, a sua comida. Já tinha se acostumado. Tentava repassar suas últimas ações com o objetivo de encontrar o motivo de seus possíveis erros. Precisava descobrir o porquê de sua mãe agir daquele modo. Enquanto isso, lutava contra a umidade excessiva em seus olhos que insistia em permanecer...

Quando terminou, foi para seu quarto. Ele estava estranho. Sempre que sua mãe o arrumava, ele ficava com uma aparência muito monótona: a cama, muito bem arrumada à direita, o piano, a escrivaninha e o guarda-roupa... Exceto pelas fotos. Antes, encontravam-se pela casa. Agora, estavam todas em sua escrivaninha. Uma mostrava Selene dando os primeiros passos. Outras duas retratavam-na em eventos escolares. A última chamou mais sua atenção. Nela, Selene e um garoto posavam próximos a instrumentos musicais num salão. Selene no piano, e o garoto tocando um violino. A foto parecia ter alguns anos... O motivo de estas se encontrarem no quarto seria para que Selene olhasse como ela mesma fora quando criança? Sua mãe teria feito isso de propósito?

Ela deixou o seu quarto e se encaminhou até o da mãe. Tinha reunido coragem por todos esses dias. Encarou a porta entreaberta, respirando fundo, até que a abriu, lentamente, por completo.

— Mãe, por favor, fale comigo. O que aconteceu? — Selene implorou.

A mãe estava sentada na cama, de costas para Selene, de cabeça baixa. Vestia um roupão branco e tinha os cabelos soltos.

— Por quê, Selene? Por que se atrasa? — lamentou a mãe.

— Eu me atraso? Eu só comecei a sair de casa porque a senhora está me ignorando. Me desculpa. Mas a senhora precisa me dizer algo também. O que está acontecendo? Eu acho que não fiz nada de errado. — Deu um passo em direção à cama. Entretanto, sua mãe deitou-se e apagou a luz.

Dessa vez, não teve forças para resistir às lágrimas.

***

Enfrentando a extrema rigidez de algumas teclas, Selene tocava, descarregando suas frustrações. Ela estava no seu refúgio, mas não prestava atenção aos detalhes dos sons, não sentia a música do mesmo jeito de antes. Pressionava as teclas com força, não se preocupando com as partes mais suaves.

Respirou fundo e tentou começar de novo. Nesses dias, quando ela tocava, sempre imaginava uma orquestra de câmara a acompanhando. Naquele momento, almejou isso mais que tudo. Ao menos um violino para ajudá-la a sentir melhor a face das notas...

— Nos outros dias você não estava tocando assim. Estava bem melhor.

Selene se virou e encontrou um garoto. Com a situação pela qual tinha passado no dia anterior, não ficou tão impressionada quanto numa ocasião normal. Apenas sentiu audácia da parte do garoto. Ele a encarava. Seu olhar, antes amigável, ficou desconfiado devido à reação de Selene.

— Você estava ouvindo? — questionou Selene.

— Não sou um espião, se é o que está pensando. Eu ouvi sons nesses últimos dias, só que não fiquei curioso pra descobrir a origem. Mas hoje não ouvi o mesmo som dos outros dias, por isso vim aqui checar o que tinha acontecido.

— Tudo bem — respondeu Selene. Com o objetivo de se livrar do constrangimento de ter seu refúgio violado, tentou mudar de assunto. — Você gosta da música que sempre toco?

— Gosto. A letra é muito boa, mas o instrumental me atrai um pouco mais.

Ele se assentou ao lado de Selene. O banco rangeu por um momento, prestes a ceder. Selene olhou o garoto com censura, mas ele não se importou.

— E você? É claro que você gosta, afinal toca sempre. Mas por que gosta?

Selene retirou as mãos do teclado.

— Assim como você disse, o instrumental também me atrai mais. Mas a letra e as frustrações nela mostradas são bem interessantes pra mim. Parece que tudo é efêmero, ele sabe que não vai ganhar, mas aposta mesmo assim.

— Interessante reflexão. Por que não tenta outra vez? Quero tentar interpretar esse sentimento apenas com os sons.

Ela olhou-o estupefata. Estava mesmo recebendo — e cumprindo — ordens?

— Se quiser, — continuou ele — eu posso fechar os olhos ou me virar.

Selene agradeceu mentalmente. Não teria coragem de tocar na frente de um estranho. Eles nunca se tinham encontrado. Ela não poderia ter transparecido tanto seu nervosismo a ponto de ser perceptível.

Deu vida aos acordes. No início, a outra presença ainda martelava sua mente, contudo, com o passar nas notas, sua concentração aumentava. Só ela e o piano na partitura do momento. Parte de sua consciência precisava dar o melhor de si, afinal, um estranho a criticara. Durante o restante do tempo, continuou a tocar como se fosse uma ação familiar.

Após a morte do último som, escutou aplausos animados.

— Bravo! — Ele sorria. — Não é a mesma melancolia que me atraiu em outros dias...

— Melancolia? — interrompeu Selene.

—... mas esse sentimento de agora é novo. Você está esperançosa em fazer uma nova aposta?

Agora ela estava sendo encarada novamente. Não sabia o que responder. Nem se sentia mais invadida, mesmo não podendo considerar como seu aquele território.

— Eu acho que a música é como um jogo, realmente — considerou Selene. — No começo da música, o piano é um pouco discreto, mas quando se reproduzem seus acordes mais fortes, ele ressurge. Como uma revanche.

— Isso aí.

— Gostaria de ter um violino para duelar. — Riram.

Depois de alguns segundos e dúvidas surgindo, Selene perguntou:

— Quem é você?

Ele pareceu um pouco triste após ouvir a indagação.

— Sou o Heitor.

— Eu sou Selene.

Heitor não havia perguntado o nome de Selene, deixando-a com algumas suspeitas. Ele parecia comum. Não muito alto, pele levemente morena, cabelos escuros. Seu olhar carregava um misto de informações. Havia surgido naquele dia, depois de ter ficado secretamente ouvindo Selene por alguns dias.

— Você teve algum propósito ao vir aqui? — indagou, desconfiada.

Heitor afastou-se.

— Eu já disse. Só queria saber por que você não estava tocando como antes. O que houve?

— Não é nada, é que... Foi meio repentino isso. Você chegou, gostando dessa música e com pensamentos parecidos. Isso não é muito comum. — Deu um sorriso afetado. Naquela hora, havia percebido que se esquecera de pensar na sua situação com a mãe. Esse mesmo pensamento, ao invés de vir à tona, voltou a esconder-se.

— Selene, é comum, sim. Enfim, quero ouvir mais tangos. Se você não se importar em tocar de novo, claro. — Ele sentou-se na escada e ficou na expectativa.

Selene virou-se, escolheu um tango aleatório e iniciou a interpretação. Era um pouco irônico tocar tango, uma música argentina, em seu país, justo naquela certa época do meio do ano. Se estivessem em algumas décadas no passado, poderia, quem sabe, ter sido presa por anarquia?

Foi assim que o resto da tarde se consumiu. Havia um tempo desde que Selene não desfrutava das sensações da amizade. Ela poderia permanecer naquele pequeno porão durante muito mais tempo, apenas conversando. Por causa disso, não percebeu as trevas usurparem o lugar da luz.

— Eu preciso ir! — Selene se levantou do banco abruptamente. Heitor, que estava ao seu lado novamente, encarou o momento com normalidade.

— Também vou, já está tarde.

Tendo Heitor como companhia, Selene deixou que ele interferisse na sua rotina. Além disso, iluminados pelos fracos postes, Selene não teve mais medo do escuro.

— Será que aquele casarão velho não tem um dono? — indagou Heitor.

Selene estremeceu.

— Eu espero que não. Tomara que a prefeitura não resolva derrubá-lo para construir mais uma galeria fajuta.

— Onde você tocava antes de descobrir o lugar?

— Na minha casa mesmo. Treinando junto com... — Parou de repente em frente a um sebo vazio na esquina.

— Junto com...? — questionou Heitor.

Os carros passavam aos montes. Aquele bairro estava sempre cheio, mas, na medida em que a noite ia avançando, as multidões se dispersavam. As lojas de roupas já estavam sendo fechadas. Tudo aquilo provocava a mesma sensação de vazio em Selene. Por que o escuro era tão repelente? Por que parecia que no livro de sua vida faltavam páginas? Eventos importantes se esvaíam em sua memória.

— Selene?

Ela virou-se.

— Eu... Não sei. Não me lembro. Aconteceu algo há uma semana. Não sei por que me esqueci. — Ela se sentou e abaixou a cabeça.

Caminhada. Rua vazia. Ausência de prédios. Postes acesos. Noite.

As cenas aleatórias se passavam como flashes em sua memória.

— Você deve estar me achando esquisita. — Encarou Heitor.

— Não estou. Quem sabe não aconteceu algo ruim e você se esqueceu? Talvez não valha a pena lembrar. — Heitor se mostrava prestativo. Seu olhar revelava compaixão.

— No momento não queria me lembrar da minha mãe... — murmurou.

— O que disse?

— Nada de mais. Vamos continuar. — Selene não se lembrara da mãe com muita intensidade durante a tarde. No momento, a recordação crescia rapidamente, comprimindo seu coração numa sensação angustiante. Desejava adiar aquilo. Entretanto, tinha de escolher entre a noite e a mãe. Decidiu enfrentar a segunda opção.

Caminharam por mais alguns instantes, até que Heitor parou em frente a uma avenida e apontou:

— Bem, eu vou por ali.

— Tchau. Foi legal te conhecer... — disse Selene.

Heitor atravessou a rua, virou-se, e quando foi gritar algo, um caminhão passou em alta velocidade noutro lugar, encobrindo o grito. Desistindo, ele apenas acenou e continuou seu caminho.

“Foi bom te ver.” Seria impressão de Selene, ou tinha sido isso que ela lera nos lábios de Heitor?

***

— Sabe, eu sempre pensei que Por una cabeza quisesse contar alguma história sombria — disse Heitor, abrindo a porta.

As grandes janelas estavam todas abertas, deixando a luz incidir com total intensidade. O ambiente parecia embaçado, como se Selene tivesse um problema de visão.

Selene estava tocando um piano preto. Não se sentiu tão surpresa. Continuou o que fazia e apenas respondeu:

— Por que acha isso?

— Sei lá. O título dá a ideia de um preço, como se a música valesse uma cabeça numa bandeja.

— É só a cabeça de um potro, na aposta.

— Certo, mas ainda sim...

— Por que você está dizendo essas coisas?

— Não sei. Talvez essa música tivesse realmente o preço de uma cabeça. Você sabe, algumas músicas de qualidade costumam ser muito subjetivas. — Olhou Selene intensamente, sem desviar.

Anoiteceu rapidamente. O pedal que ecoava o som ainda estava pressionado, deixando a última nota ainda viva. Heitor continuava a olhar.

— O preço da minha cabeça — disse ele sem emitir som algum, apenas movendo os lábios.

— Você está doido, Heitor. — Ela disfarçou o medo que estava começando a sentir. Queria deixar o local imediatamente, porém, seu pé direito ainda pressionava aquele pedal, como se estivesse preso. A frequência sonora continuava intensa.

— Preço. Cabeça — repetiu Heitor, dessa vez, sorrindo. — Devem ser pagos.

— Como? Não entendo. O que está tramando dessa vez? — tentou argumentar.

Ele continuava ali, com o olhar fixo. Selene fez força e conseguiu desprender o pé. Iniciou uma corrida um tanto desesperada através do escuro.

Caos. Pessoas gritando.

O pequeno muro à direita era seu guia, mas Selene não podia ficar parada, por uma razão estranha e assustadora. Ela mal via as estrelas. Não sabia se era a poluição ou apenas o tempo nublado. Estranhamente, tinha uma visão mais nítida naquele momento, ao invés de ver os objetos embaçados do momento com Heitor.

Tropeço. Perigo. Pessoas sem expressão a rodeando.

Foi essa a última visão que teve antes de despertar e escapar da realidade onírica.

Selene estava desesperada. Aquelas visões seriam apenas uma ligeira criação de seu subconsciente ou memórias perdidas?

Levantou-se da sua cama, deparando-se com seu piano preto. O mesmo local embaçado de seu sonho. Por que a cena de Heitor ao lado de seu piano parecia tão rotineira?

Por algum motivo específico, encarou as fotos logo depois. Ela estava cansada dessas confusões na memória, por isso, procurava alguma resposta. Analisou melhor a foto em que aparecia perto do piano e ficou surpresa. O garoto que a acompanhava era o mesmo que havia aparecido em seu refúgio.

Já era o terceiro dia em que se encontrava com ele no porão. Nesse tempo, seus assuntos não haviam ultrapassaram a música. Fora um sonho bastante estranho, sim, contudo, explicável, uma vez que aquela canção era comentada por eles em demasia.

Por que havia se esquecido dele? Por que ele não se revelara? Nesses três dias havia se afeiçoado a Heitor, se afeiçoado novamente, pelo que podia perceber.

Decidiu que não o iria encontrar naquele dia. Ao sair de casa, tomou um caminho diferente. Rumou para o local onde se haviam despedido no primeiro dia. Andou mais um pouco até se deparar com o mesmo muro pequeno do seu sonho. Ele terminava num portão, onde, em cima, estava escrito: “Cemitério Santana”.

O porteiro do local, um homem com idade avançada, escutava, num rádio pequeno, um jogo de futebol qualquer. Parecia ter presenciado de tudo em sua vida, tanto que não se importou ao notar Selene estupefata diante do cemitério, como se fosse a primeira vez que via um.

Ela sabia que já tinha estado lá. Poderia até ter feito disso uma rotina, porque deixara escapar a palavra à mãe. Por causa de seu sonho, podia até imaginar que já tinha corrido de algo, próximo àqueles muros. Entretanto, a dúvida permanecia. Selene encontraria uma solução? Hesitou ao entrar para o reduto de túmulos. Não poderia esconder o seu receio.

Foi como se estivesse sob o domínio de uma hipnose. Selene foi guiada através das sepulturas. A maioria delas datava da primeira metade do século XX, não mais antigas que isso. Obviamente, devido à idade de sua cidade.

Estátuas de santos predominavam nas campas e nos mausoléus. Eles eram um tanto assustadores, com seus olhares injetados, acompanhados de um sorriso cético. Em alguns casos, estavam exagerados demais.

Selene passou por um túmulo novo e estranhamente familiar, mas sentia que ainda não era a sua meta. Dobrou a esquerda e, enfim, encontrou o que procurava.

Uma escultura de anjo guardava a sepultura. Sua face voltava-se para cima. Sua expressão, um misto de dor e súplica, não intimidou Selene. Finalmente, ela se lembrou. Havia visitado o local várias vezes na última semana. Por outro lado, quem estaria ali?

“Jazigo perpétuo”. Selene passou os olhos, lendo alguns nomes. O penúltimo datava de 30 anos atrás. O último era do ano atual.

Heitor Aquilino.

Então era isso. Seu melhor amigo havia morrido, e seu cérebro resolvera lhe pregar uma peça ocultando alguns fatos? Selene passou a, gradativamente, se lembrar de seus momentos com Heitor. Dúvidas martelavam, de leve, a sua mente. Estando Heitor morto, como fora capaz de vê-lo? Mesmo assim, não deixou que essa questão a preocupasse. Por fim, recordou-se da razão de suas tristezas. Porém, sua memória ia até ali. Depois disso ainda era um mistério. Aflita, sentou-se perto do túmulo, encarando, de forma deprimente, o nome ali inserido. Tocou as murchas rosas vermelhas e, imediatamente, se lembrou de que as colocara ali.

Depois disso, os fatos invadiram sua mente de tal forma que se sentiu puxada da realidade.

***

Selene ouvia, através dos fones, Por una cabeza. Era uma maneira de se manter conectada com Heitor: tinha sido essa a música que tinham apresentado no recital de sua escola de música, o Centro Cultural Gustavo Ritter.

Eles haviam sido muito amigos. Poderia dizer-se que eram irmãos. Nada mais que isso. Selene possuía outros, mas não tinha podido compartilhar com eles os pensamentos e ideias da mesma maneira que fazia com Heitor.

Já tinham terminado a escola e se preparavam para começar a faculdade de música juntos. Infelizmente, esse objetivo fora interrompido. Heitor morrera num acidente.

Algumas semanas haviam se passado e Selene não o superara. Visitava o cemitério todos os dias, criando um leve problema com a mãe, que sofria com as suas ausências constantes. Nessa vez, Selene extrapolara o horário e ficara no cemitério até de noite.

Heitor era uma excelente pessoa. “Por que tinha que morrer, enquanto assassinos e estupradores continuam a viver saudavelmente?” era o que Selene pensava, com suas lágrimas caindo.

Quando já eram sete e meia, ela começou a caminhar para a saída, e ocorreu um apagão. As pessoas que caminhavam pela rua começaram a dar gritos eufóricos. Selene, com seu medo de escuro, começou a andar rápido, tendo o muro do cemitério como seu guia. A fraca luz de seu celular não a auxiliava. Felizmente, a música continuava mantendo a razão de Selene.

Enquanto andava, uma forte mão segurou o seu braço, pedindo o seu celular. Selene não conseguia ver o dono. Seu coração acelerou e ela não ouvia mais nada. Estava deprimida, nunca que entregaria o seu celular com a música, o único meio que a deixava conectada com Heitor, que fazia com que ele ainda estivesse vivo em seu coração.

Então, começou a correr, tendo o assaltante em seu encalço. Por causa do escuro, tropeçou numa pedra e tudo se apagou.

***

A velha rosa voltou, gradativamente, a tomar forma.

Precisava ver Heitor. Tinha que ir até o casarão. Perguntava-se o que faria, agora que sabia a verdade.

Saindo, lentamente, do cemitério, encontrou alguém que não esperava, a pessoa que mais merecia um pedido de desculpas.

— Mãe? — Começou a chorar. Agora sabia por que não era ouvida. Desejava, com todas as forças, poder falar com ela.

Via o seu reflexo. Pele morena, cabelos curtos e encaracolados. A única diferença era que Selene ainda não trazia o olhar de cansaço e as marcas do tempo.

Sua mãe segurava flores. Ela estava encarando o cemitério, parada por algum motivo. Selene a abraçou por trás. Não sabia se ela ouviria, mas mesmo assim, cochichou:

— Me perdoa, mãe. Apegada com Heitor, acabei ausente da senhora. Queria tanto... — Parou o que ia dizer. — Eu amo você, mãe.

Soltou-a e se pôs a andar. Olhando, constantemente, para trás, observou sua mãe entrando no cemitério.

Selene teve o vislumbre de um sorriso?

***

Heitor estava concentrado, tocando um violino. Quando percebeu a presença de Selene, iluminou-se e deixou o instrumento acima do piano.

— Você demorou hoje, o que houve?

Selene não respondeu de imediato, avançou para Heitor e o abraçou.

— Eu tive um sonho e... Esse sonho me levou até o cemitério. Lá, eu me lembrei do que aconteceu. Por que não me disse que me conhecia? — Ela encostava a testa no ombro de Heitor.

Ele ficou em silêncio por uns instantes.

— Você aparentou estar sem memórias, daí achei que, se eu contasse tudo de uma vez, você se assustaria ou algo assim.

— Me desculpa, Heitor.

— Desculpas? Pelo quê?

— O seu acidente... Você estava indo pra minha casa quando aconteceu. — Eles se soltaram.

— Como poderia ter sido culpa sua?

— Bem, a gente ainda está aqui, e acho que isso não tinha sido resolvido. Eu fiquei com isso no coração e acabei...

— Selene, olhe para mim. Não foi culpa sua. Se fosse assim, eu também teria culpa, porque você estava perto do cemitério... As coisas acontecem por alguma razão. Mas concordo com você, acho que ainda estamos aqui porque não resolvemos algumas coisas. Eu ficava vendo você indo ao cemitério, tão triste, e não podia fazer nada. Agora estamos aqui. Juntos. Ninguém tem culpa. Temos que agradecer por termos nos encontrado de novo.

Selene assentiu. Voltaram a abraçar-se. Instantes depois, Selene foi para o piano, e Heitor pegou o seu violino. Assim, trocaram suas últimas emoções em silêncio, dançando aquele tango em sincronia, cada um com seu instrumento, deixando apenas as notas falarem por eles.


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Notas finais do capítulo

Em relação à imagem da capa, é um desenho feito por mim (isso porque não encontrei alguma imagem que gostasse e sou uma negação com editor de imagens). No decorrer da história, não aparece exatamente uma cena assim. Eu quis colocar, levemente, uma simbologia. Selene segura a rosa viva e rejeita a morta. Pelo fato de Selene estar morta e não ter ciência disso, ela segura a vida disfarçada (a rosa é de corte) e rejeita a morte, que continua a acompanhá-la. Enfim, tive necessidade de colocar essa interpretação.
Você, que está lendo, fez uma interpretação diferente? Conte-me! Adoro ouvir (no caso, ler hahaha) outras opiniões!
Muito obrigado por terem lido. O que acharam?
Até mais!



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