Era uma noite fria de fevereiro, a neve estava caindo, o vento parecia rugir e eu tinha voltado para casa na nevasca. Foi a noite do enterro de minha mãe e eu estava de preto, com Patrick embrulhado em vários cobertores nos meus braços.

Meu pai não estava lá, chorando no túmulo da esposa. Ao contrário, tinha ficado o dia todo no bar próximo à nossa casa. Ele voltou totalmente bêbado, como seria nos próximos anos e brigou comigo pois eu havia pegado parte do dinheiro que mantínhamos em cima da geladeira e comprei leite materno para Patrick no hospital. Papai estava furioso. Por que ele estava tão furioso? Eu estava tentando manter o filho dele, meu irmão, vivo. Ele não entendia? Nós discutimos e eu estava aterrorizada por enfrentá-lo daquele jeito. Eu nunca tinha feito aquilo antes. O jarro de vidro que eu segurava cheio de água caiu no chão e se espatifou, lançando cacos afiados para todos os lados. Meu pai gritou ainda mais. Patrick acordou chorando. Esqueci totalmente a briga. Eu precisava acalmar aquele bebê.

Dei as costas a meu pai. Grande erro.

Ele aproveitou minhas distração e rasgou com um caco afiado as minhas costas, pouco abaixo das costelas. O sangue ensopou o meu vestido escuro.

Acordei arfando, olhando para os lados. Eu não estava em casa, e sim no palácio e quase seis anos haviam se passado desde aquela noite. Várias novas cicatrizes surgiram, a maioria do mesmo modo que aquela. Com meu pai bêbado.

— Senhorita Alexia? A senhorita está bem?

— Podemos fazer algo por você?

— Deus, está tão pálida! Devo chamar o médico?

Fiz um gesto para calar minhas criadas. Respirei fundo e contei até dez com a cabeça entre as pernas.

Faziam anos desde que eu não pensava naquilo e claramente eu sabia o porquê.

— Eu estou bem… foi apenas um pesadelo. Que horas são? Estou atrasada?

Diana deu um passo a frente e tomou minhas mãos.

— São apenas sete, não se preocupe, a senhorita tem bastante tempo. Quer um pouco de chá para se acalmar antes do banho?

O rosto ansioso dela deixava claro que não estava apenas tentando ser gentil ou prestativa. Ela realmente se importava. Todas elas se importavam comigo.

Retribuí a pressão na mão de Diana, ela pareceu surpresa e feliz.

— Não foi nada. Apenas um sonho ruim. Acho que vou tomar um banho. Vocês se importam de me ajudar? — Não sei se elas puderam ouvir o desespero em minha voz tão claramente quanto eu, mas acho que sim.

Mesmo assim ajudaram de forma entusiasmada.

Eu era muito grata por elas não serem bisbilhoteiras.

— Senhorita, o que deseja vestir hoje para conhecer o príncipe? Acho que um vestido muito espalhafatoso possa assustá-lo mas algo muito simples talvez passe a impressão de que não se importa com a Seleção.

Eu realmente não me importava com a Seleção mas seria falta de educação dizer-lhes.

— Oh, eu não faço ideia do que vestir. Sou um desastre ambulante em relação à moda. Algo bonito e simples está ótimo para mim. Vocês podem escolher. Pensem que sou a boneca em tamanho natural de vocês. Podem me vestir, maquiar e pentear como quiserem.

Os olhos delas brilharam. Acho que elas esperavam uma megera difícil de lidar que queria tudo do seu jeito. Como Kayla, por exemplo.

Depois do banho, Marcie passou em mim um creme que eu reconheci como o mesmo do dia anterior, no Salão das Mulheres. Quando reclamei que não queria ficar com cheiro de sobremesa ela riu.

— Nada disso. Você é nossa boneca em tamanho natural. Agora fique parada.

Ri tanto que chega funguei. Uma coisa que eu nunca me permitia.

— Oh, Deus! Estou começando a me arrepender disso.

As três riram também. Eu não esperava fazer amizades no palácio mas tive certeza de que pelo menos aquelas três eu tinha a meu lado.

Gabe passou um vestido verde claro por cima da minha cabeça e abotoou-o atrás. Em seguida pegou sapatos prateados de salto.

— Ah, ficou ótimo, Gabe — elogiou Diana. — Agora eu vou cuidar do seu cabelo e maquiagem, senhorita.

— Como se eu tivesse opção — brinquei.

— É, você não tem.

Alegremente ela se pôs a trabalhar em um penteado simples porém cheio de grampos na parte de trás de minha cabeça. Por fim ela pediu à Gabe que lhe passasse "aquela tiara de brilhantes que você gostou" e passou um pouco de maquiagem em meu rosto. Marcie se encarregou de pegar algumas joias. Depois de um leve debate escolheram um par de brincos minúsculos da coleção real e um colar de prata com o símbolo da clave de sol que estava nas minhas coisas. Voilá: eu estava pronta.

Não podia negar que elas realmente trabalhavam muito bem. O cabelo posto para trás realçava os meus olhos azuis, o vestido abraçava minhas curvas e meus seios pareciam maiores do que realmente eram.

— Ah, não é que vocês são boas mesmo? Eu deveria pagar a vocês um extra.

— De forma alguma, senhorita. Nós gostamos muito de nossa boneca em tamanho natural.

— Que bom, porque essa é uma cena que provavelmente vai se repetir com certa frequência, senhoritas.

Com uma reverência divertida a elas eu saí do quarto.

O corredor estava lotado de garotas. Todas com vestidos muito chamativos e joias pesadas.

Olhei aquilo com certa curiosidade. Algumas estavam com vestido que eram obviamente para a noite, outras pareciam palhaças de tão maquiadas. Será que eu tinha perdido alguma coisa? Algum evento surpresa?

— Alexia! — Quem estava me chamando era Pietra, que também usava peças muito chamativas. Ela não parecia uma árvore de natal como a maioria.

Caminhei em sua direção.

— Hey.

— Por que você está com essa roupa tão simples?

Ergui uma sobrancelha.

— Eu gostei assim.

— Não estou dizendo que você não está arrasando, porque está. Mas uma das criadas deixou escapar para Nala que o príncipe gosta de garotas bem produzidas. Você não viu que todas as garotas estão fazendo isso?

Ah, agora tudo começava a fazer sentido.

Dei de ombros.

— Não vou mudar nada. Se o príncipe for gostar de mim ele vai ter que aceitar o meu jeito.

Alguém riu. Era Kayla que assim como eu não estava muito enfeitada, apesar disso a diferença entre nós era gritante.

–- Não se preocupe, querida. O príncipe não gostaria de você mesmo se você se vestisse como uma mulher de verdade.

Não me intimidou.

— Não me lembro de ter te chamado para a conversa, Kayla.

Algumas garotas riram.

Kayla abriu a boca para responder mas não saiu nada. Havia um brilho irreconhecível em seus olhos. Tive um momento de oh-oh antes que Kayla saísse de perto e fosse para junto de suas seguidoras, Emily e Aubrey.

Todas nós permanecemos aguardando, sussurros nervosos pontilhados de silêncio.

—Estão todas aí? Ótimo. Acompanhem-me, senhoritas.

Mais uma vez seguimos a mulher que eu não sabia o nome até o Salão das Mulheres. Os móveis do salão tinham sido afastados para os cantos de modo que uma mesa longas pudesse ocupar todo o centro do cômodo.

— Sentem-se nos locais indicados. Nesse primeiro momento vocês receberão aulas básicas de etiqueta, depois tomarão café e por fim poderão conhecer o príncipe.

Assentimos em uníssono.

A aula foi mortalmente chata. Ensaiamos a maneira certa de nos servir, fazer reverência e até mesmo rir como uma dama.

Fomos liberadas para a sala de jantar bem quando meu estômago começou a se rebelar.

Quando passaram pela porta as primeira garotas estacaram. Tive que ficar na ponta dos pés para vislumbrar a família real sentada à mesa. Ei, eu sou baixinha!

O príncipe Caleb estava conversando com o pai de forma séria.

— Maryse. — O rei cumprimentou, fazendo um gesto para calar o filho. Então era esse o nome dela. — Senhoritas.

Fizemos as reverências e cada uma sentou onde queria. Os lugares perto da família real foram os primeiros a serem ocupados.

Vi o príncipe George, o filho mais novo dos monarcas, sentado ao lado da rainha, rindo das garotas muito enfeitadas. Vi também o rei lançar-lhe um olhar de repreensão.

Me sentei entre Pietra e Annabeth Gudren, uma das garotas que parecera desconfortável na noite anterior.

O rei Maxon abençoou a refeição e os mordomos destamparam os travessas de prata. Aquele cheiro maravilhoso de comida encheu o ar.

A maioria das meninas só comeu uma fatia fina de pão e tomou chá. Um desperdício.

A tensão era palpável ao redor da mesa. Se eu estendesse a mão provavelmente poderia pegá-la.

Servi-me de bolo e suco de laranja, além de um pouco de torrada e torta. Como tudo no palácio, era mil vezes melhor do que qualquer coisa que eu já tinha provado antes.

O príncipe Caleb, que nem tocou a sua refeição, se levantou.

— Maryse, estarei no Salão das Mulheres. Quando as senhoritas estiverem prontas, mande-as para mim.

Maryse, que estava silenciosa em um canto, fez uma reverência graciosa.

— Sem dúvida, Alteza.

O príncipe trocou um olhar breve com os pais e se retirou.

As garotas a meu redor se apressaram a terminar suas refeições. Comentando baixo, olhando ao redor, todas estavam numa espécie de transe febril querendo ter sua vez com o príncipe.

Por fim só sobrou a família real e eu, desfrutando da comida com uma calma contemplativa.

Aubrey, Emily e Kayla olharam-me como se quisessem forçar a comida por minha garganta.

— Alexia — Pietra me apressou em voz baixa. — O príncipe.

— Ouch. Deixa eu comer.

Ouvi uma risada discreta, ergui a cabeça tão rápido que quase torci o pescoço apenas para ver o rosto da rainha America. Ela não estava me repreendendo, parecia satisfeita. Kayla me olhou com uma expressão que mesclava raiva e diversão.

Corei sem razão aparente.

— Alexia...

Tomei a sua mão.

— Pietra, minha querida. O príncipe esperou dezenove anos para conhecer sua esposa, certamente pode esperar mais cinco minutos. Me deixa terminar isso.

Dessa vez Pietra riu baixo. Sua risada era tão exuberante e viva quanto ela.

Quando terminei, as garotas que eu apelidei de trio do mal bufaram.

Todas levantaram e fizemos novas reverências à família real. A rainha sorriu calmamente e eu pude jurar que ela piscou para mim.