Andamos mais um pouco até que uma mulher me chama a atenção. Ela veste uma capa roxa de veludo que tem um capuz que cobre seu rosto. A mulher está sentada com a cabeça baixa, em uma cadeira de madeira.

– Quem é aquela? – pergunto a Felipe.

– Uma bruxa.

Pontos se ligam em minha cabeça e eu abro um sorrisinho empolgado.

– Vamos falar com ela! Ver se ela pode dar alguma jóia dela. Lembra aquele item da poção que quebra a maldição? A jóia de uma bruxa? Então!

– Acho melhor não – ele fala hesitante. - Ela nunca vai dar isso de graça, e eu tenho medo de que o preço a se pagar seja alto demais.

– Não custa nada tentar!

Caminho até a bruxa antes que Felipe possa me impedir. Quando vejo seu rosto, perco o ar. Seus olhos são costurados. Sua pele é marcada por rugas e cicatrizes. Ela levanta a cabeça e faz uma leve reverência.

– Princesa.

Gelo. Pensei que o capuz fosse o suficiente para esconder minha aparência, estava enganada. Se uma senhora com os olhos costurados consegue me reconhecer, imagine as outras pessoas!

Reparo em suas mãos pousadas em seu colo com a palma para baixo. Elas estão repletas de anéis. Ótimo. Ela levanta da cadeira e estende as mãos para mim. Quase desmaio de medo ao ver dois globos oculares fincados nas palmas. As íris que mais parecem feitas de gelo estão cravadas em mim, como se pudessem ver minha alma. Sinceramente, se elas pudessem ver minha alma, não me surpreenderia nem um pouco. Tem tanta coisa louca nessa dimensão.

– Eu... – começo, mas ela me interrompe.

– Sei o que deseja. – ela fala com a voz rouca – Não vejo motivos para não te dar.

– Obrigada! – falo e estendo a mão, a espera do anel.

– Porém...

Merda! Por que sempre tem que ter essa conjunção adversativa que complica tudo?

– Eu vou te pedir uma coisa simples, para matar a curiosidade de uma anciã que já está com os dias contados. – Ela prossegue, a bruxa começa a andar ao meu redor e alisa meus cabelos. Fico tensa e meu coração começa a bater freneticamente. Ondas de adrenalina são jogadas em minha corrente sanguínea, me preparando para uma possível fuga. – Quero que você veja o seu reflexo.

– Como assim? – pergunto, confusa.

– Dentre os muitos poderes que me foram concedidos pelo Divino, um deles foi mostrar às pessoas sua verdadeira alma, suas verdadeiras ambições, por trás de máscaras impostas por elas mesmas. Eu vou entrar no seu íntimo e te mostrar o que você realmente deseja. Você só precisa segurar minhas mãos.

– E o que me garante que você vai me entregar o anel?

Ela abre um sorriso gélido.

– Princesa, mesmo que eu não fosse te dar o anel, você aceitaria minha proposta. Você é curiosa, assim como Steven me falou.

– Você conhece Steven?

– Querida, todos conhecem Steven.

– Bia! Não confie nela! – Felipe fala ao se aproximar de nós duas, quando eu já estava com as mãos estendidas para a bruxa.

– Felipe, eu quero fazer isso.

Digo e seguro as mãos da mulher.Sinto o bater de seus cílios nas minhas palmas. Arrependo-me no mesmo instante, o mundo começa a gira e tudo ao meu redor evapora. O chão da praça vai se transformando em grama. Árvores nascem ao meu redor. O céu começa a fechar, as nuvens ficam mais escuras e um clarão ilumina o céu. Logo depois escuto o barulho de um trovão e uma forte chuva começa a cair. O chão treme, me derrubando. Uma enorme fenda vai se abrindo, dividindo o terreno em dois. Finco meus dedos na terra para não cair no buraco. O terremoto para e eu respiro aliviada.

– Bem-vinda à sua mente, Bia. – a voz da bruxa ecoa, olho ao redor procurando-a, mas não acho. – Essa fenda é a sua insegurança. Você não confia nas pessoas, e principalmente, você não confia em si mesma. Você enfrentará grandes perigos futuramente, e para vencê-los, será necessário que você confie em si mesma e nos seus instintos. Você precisará atravessar essa fenda para passar para próxima etapa e conhecer seu verdadeiro eu. Há uma ponte invisível em algum lugar, você só precisa acha-la. Se guie pela intuição e concentre-se na tarefa mais difícil já concebida a um humano: sobreviver.

Tremendo de frio por causa da chuva, me aproximo da fenda e tateio o nada à procura de alguma superfície sólida que possa me ajudar a atravessar. Não acho nada. Olho ao meu redor, para ver se tem algo que possa me ajudar a passar. Não encontro nada.

Fecho os olhos e respiro fundo, soltando o ar bem devagar. Engulo em seco e dou um passo em direção ao abismo. Penso em todas as pessoas que eu amo. Vou fazer isso por elas. Ao contrário do que eu esperava, eu encontro uma superfície firme. Dou outro passo. Atrevo-me a abrir os olhos e vejo que estou andando no ar. Sorrio comigo mesma, porém minha alegria se dissipa e se transforma em pavor quando eu começo a cair.

O que pareceu uma eternidade depois, eu alcanço o chão. Mal sinto o impacto. Levanto meio trôpega e grito em direção ao céu, na esperança que a vidente me escute:

– O que aconteceu? Eu estava indo bem!

Segundos depois, ela responde:

– Você fez isso pensando nas pessoas que você ama, você tem que fazer isso pensando em você.

– Você está me ensinando a ser egoísta?

– Estou te ensinando a sobreviver.

– E se eu não quiser? Essa é minha mente, eu faço o que eu quiser! Quero acabar com essa palhaça!

A bruxa ri, irônica e retruca:

– Nesse momento, tem uma multidão lá fora tentando te acordar. “Para tudo, a Princesa está desmaiada”. – Ela faz uma voz fina de deboche. – Esta é sua mente, mas eu estou nela. Então, eu controlo e você vai ficar em coma até atravessar essa fenda.

Ela dá mais uma gargalhada maléfica e se cala.

Foco no precipício e na minha vontade de sobreviver. Agora com mais confiança, sabendo que não vou morrer caso eu caia, atravesso sem olhar para baixo. Só ouso respirar quando chego à terra firme no outro lado.

Não sei como descrever o que acontece em seguida sem que isso soe muito confuso. Uma outra eu aparece em minha frente. Deixe-me melhorar, um reflexo meu surge. Só que muito mais bonita, com roupas pretas coladas e uma maquiagem impecável. Ela caminha confiante e para ao meu lado.

– Quem é você? – pergunto, mesmo soando como uma idiota. Ela é eu.

– Eu sou a personificação de todos aqueles desejos ocultos seus. Aqueles que você esconde até de você mesma. Você pode pagar de boazinha, Bia, mas a verdade é que você é uma vaca egoísta.

– Ei! Quem você pensa que é pra me chamar de vaca?

– Eu sou você, querida. Você quer voltar para casa, fugir, como uma covarde. Se esconder no colo da sua tia, levar uma vida comum.

– Sim. Eu quero isso e não escondo de mim mesma.

– Ah, é? E o que mais você quer?

– Nada.

– Tem certeza? – ela se aproxima de mim e sua voz se converte em um sussurro. – Você quer levar Felipe com você. Quer que ele desista da vida dele para ficar com você. Você não liga que ele tenha uma vida, que ele tenha sonhos. Você é egoísta. Se o amasse de verdade, você ficaria aqui. Moveria o Céu e o Inferno só para ficar com ele. Enfrentaria os Conservadores, o Rei, Eduardo, quem quer que fosse. Mas você quer sombra e água fresca. Não vai desistir da sua vida por ele, mas quer que ele desista sua vida dele por você. Isso não é amor, é egoísmo. Como é mesmo aquele ditado? – ela faz uma pausa, apenas para dar ênfase e silaba as próximas palavras com uma dose de veneno: - “Se não puder mover os Céus, arrume algum idiota que faça isso para você.”

– Eu não sou assim! – digo com a voz entrecortada, segurando o choro. O pior é saber que tudo o que ela disse é verdade. Sou uma vaca egoísta.

– É, sim! Você não queria descobrir como você é? Então, você é assim. – ela aponta para o corpo. – Esse é o Reflexo da Princesa.

(...)

Abro os olhos estou na carruagem. Steven me olha com desaprovação. Sinto uma pontada no peito, esse homem já fez tanto por mim, nas poucas vezes que nos falamos, ele sempre foi compreensível, sempre demonstrou carinho. Porém agora ele me olha como se eu fosse a pior pessoa do mundo.

Minha cabeça está deitada do colo de Felipe, e ele faz carinho em meus cabelos. Seu toque é reconfortante. Olho para a janela e percebo que estamos indo para o castelo.

– Não vamos mais dar aquele passeio pelo Reino? – pergunto, me sentando e lançando um sorriso grato a Felipe.

– Percebi que não ia adiantar em nada. – Steven fala com cada palavra pingando de raiva e em seguida, ele se descontrola. – Bianca, eu entrei na sua mente para te salvar daquela bruxa! Que, por sinal, ia te matar assim que terminasse o showzinho. Eu vi tudo! Vasculhei cada centímetro da sua mente insana e egoísta. Você quer ignorar seu povo que passa fome todos os dias, que sofrem nas mãos de tiranos, sendo chicoteados por serem homossexuais ou por serem diferentes em algum aspecto? Quer fazer de conta que não sabe que crianças estão sucumbindo de fome enquanto o palácio tem enormes banquetes? Ótimo! Finja que você nunca esteve aqui e volte para o seu mundinho! MAS NÃO LEVE O MEU NETO JUNTO. Eu já perdi muitas pessoas que amo e não vou deixar você tirar Felipe de mim! Quando te mandei para aquele Inferno, foi para te proteger. Depois, pensei que tivesse feito a coisa errada, mas agora percebo que estava certo. Não te salvei de um futuro terrível aqui no Reino, salvei o Reino de um futuro terrível com você como Rainha. Assim que voltarmos para o castelo, vou te dizer as instruções para dar o fora daqui! – ele faz uma pausa para respirar. Felipe, assustado com o surto do avô, foi para minha frente para me proteger de Steven que está visivelmente descontrolado. – Dizem que o amor nos torna forte. Na verdade o amor nos torna egoístas, e o egoísmo nos torna fortes. Você é forte, Alteza. Mas não porque você ama o Reino, muito menos Felipe. É porque você ama a si mesma.