Identidade Homicida escrita por ninoka


Capítulo 60
O jogo revive




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[Elsie]

Quando Shermansky nos chamou pelo keypass numa conferência inesperada durante uma madrugada, todo mundo já sabia que boa coisa não ia brotar dali. 

A vida é mutável; e é claro que, uma hora ou outra, dependendo do desenrolar do jogo, ele próprio também teria que se adequar a outros moldes -- principalmente naquele momento, em que a imprensa local parecia querer pesar na reputação da escola depois do lance da estufa queimada e do baterista que tinha sido visto pela última vez no evento dos trinta anos e depois “evaporado”. 

Tinha gente que era fácil de driblar -- era só assinar um chequezinho barato e ceder propina --, mas jornalistas eram um tipo difícil. Colavam. Notícia gerava muito mais que dinheiro; era uma oportunidade de impulsionar status, um tesouro precioso que cedia poder. Confiar a verdade à jornalistas ou repórteres amadores era como cavar a própria cova, e Shermansky sabia muito bem disso. Ela não era nenhuma velha gagá, afinal. A pressão externa foi o novo molde o qual tivemos que nos adequar. E a forma de resolução que Shermansky propôs parecia um tanto… radical. 

A frente daquela escola nunca ficou tão cheia quanto no dia seguinte. Todo mundo tava lá, com malas de roupas e pertences nos ombros ou mochilas de rodinha de viagem, conversando. Os pais lotavam a calçada da frente com seus carros e tudo virava um bafafa ensurdecedor de adolescentes tagarelas, buzinas de carro e motoristas estressadinhos. Gente se abraçando, gente entrando em carro, abrindo porta-mala. 

Tava parada na calçada com duas malas de rodinha abarrotadas, pacientemente esperando meu motorista. A casa da Murple tinha ficado interditada aqueles últimos dias, por conta das investigações; o que me obrigava a ficar algum tempo hospedada num hotel ali do bairro até segundas ordens.

 — E aí...?

Saí do modo distraída e instantaneamente olhei pro lado, dando de cara com Armin. 

— Oi... — falei, com um sorriso bailando. 

— Como você tá? — perguntou com o mochilão nas costas. 

— Não sei o que sentir. — balancei a cabeça enquanto admirava toda a muvuca de pessoas. — Acho que... é como se preparar pra minha própria sentença de morte. Que nem quando um criminoso vai pra cadeira elétrica. 

Armin deu uma risadinha cruzando os braços:

— Você não vai morrer. — falou perto do meu ouvido (já que ali tava muito barulho). — Esse jogo é nosso, esqueceu? 

Ouvi o que Armin disse, mas não consegui internalizar. Preferia não nutrir expectativas. 

— Quanto tempo você acha que essa mentirinha da Shermansky vai enganar todo mundo? — perguntei. 

— Você tem que concordar comigo que esse lance de fiscais de segurança foi genial. “Muitos pontos do instituto oferecem risco à saúde dos alunos”. Foi uma boa desculpa pra fazer o pessoal zarpar daqui por um tempo. Talvez não muito tempo. Mas o suficiente. 

Kentin de repente brotou na nossa frente, segurando os ânimos.

— Voltem bem... — franzia a testa. — ... vocês dois. 

Eu encarei Armin e ele me encarou; demos um sorrisinho. 

Nos abraçamos os três. 

 

***

 

Cada killer tinha recebido uma instrução diferente. A ideia era de que não houvessem encontros antes da hora e que nenhuma identidade secreta fosse quebrada -- ainda

O esquema funcionava bem semelhante à nossa primeiríssima conferência: era chegar no horário estipulado no ginásio e entrar na cabine demarcada. Bastante organizado e cerimonial. 

Se passou um dia. 

Às 13:55h cheguei à escola com as únicas coisas que as regras pediam: roupa do corpo, keypass, sigilo. Entrávamos pela porta dos fundos obrigatoriamente, porque Shermansky era esperta; ela não deixaria que vissem alunos entrando naquela escola dado todo o teatro que ela moldou. 

Entrei na minha cabine e sentei. Era uma coisa bem estreita; como aqueles banheiros móveis, só que com um painel e um monitor (até o momento desligado). Fazia muito tempo desde que tinha sentado naquele lugar. 

Aproveitei o tempo no ócio cutucando as unhas e pensando; pensando no quanto eu teria mudado desde a última vez. 

Os encontros que tive naquele meio tempo; tudo o que vivenciei e tudo que tinha descoberto. Sentia como se a verdade estivesse cada vez mais próxima da verdade. Mas, ainda assim, não a tinha totalmente em mãos. E por isso eu ainda precisava sobreviver -- pra sair daquele lugar o quanto antes. Eu não morreria enquanto não descobrisse quem matou a tia Agatha. Mesmo que, agora, eu soubesse que quanto mais fundo eu cavava, pior ficava a coisa. Também tinha Murple e meus pais; eu definitivamente não deixaria que nada disso passasse em branco. 

O painel fez soar baixinho um som (algo como um despertador). Sinal de que todos provavelmente já tinham chegado. 

— Sejam bem-vindos ao desafio final. O Exame Final. — a imagem de Shermansky apareceu no monitor.

Eu já tinha me recusado de continuar a emplacar naquele jogo. Mas… agora eu já não tinha mais poder de escolha. 

— A partir de hoje as regras mudam… Não existem mais cartões de homicídio. — Shermansky declarou sem rodeios. — Vocês sairão de suas cabines quando houver outro sinal. Ao centro do ginásio há uma mesa com diversas cápsulas, dentro dessas cápsulas cada um de vocês poderá obter uma caixa de sobrevivência. Existem três tipos de item dentro de cada caixa: um alimento, um item auxiliar, e uma arma... O conteúdo das caixas é aleatório; tudo vai variar de acordo com a sorte da escolha de vocês.

Todos nós agora éramos detentos, detentos do nosso próprio destino. Não sabíamos mais como as coisas iam funcionar dali pra frente. Não tínhamos mais o conforto do anonimato e das defensivas. Agora era matar ou morrer; simplesmente. Naturalmente isso me trazia um calafrio interno. Sentia que não tinha preparo nenhum pra isso; físico, mental.  

— O sistema dos cartões de homicídio servia como uma forma de limitar vocês; pra que não abusassem do poder da matança no meio escolar. — sorria com humor. — Mas, agora… vocês estão aqui por isso. E por esse motivo um novo apetrecho entra no jogo… Deem uma olhada. Tem uma pequena caixinha dentro das suas cabines. Abram ela. 

De fato tinha uma caixinha preta debaixo do painel da cabine. Apanhei e abri: um relógio. 

— Esse é o cronômetro. Vocês devem colocá-lo antes de sair da cabine… 

Visualmente falando, era uma pulseira relógio; mas assim como Shermansky conseguiu transformar cartões de cartolina num símbolo da morte e praticamente um modus operandi, dava pra imaginar que as aparências não significavam nada ali.

— O cronômetro funciona da forma mais literal possível: como um cronômetro. Assim que vocês saírem das suas cabines, o tempo começa a rodar. 

Encaixei o negócio no pulso e ajustei sem mistérios. Vestia confortável.  

— O tempo é de 96 horas. Esse é o prazo que vocês têm pra eliminar no mínimo um jogador. Se vocês falharem na tarefa, o dispositivo aciona uma onda de choque mortal. A pulseira detém uma tecnologia de pressão que impede que vocês tentem tirá-la a partir do momento que vocês a ajustam.

Como a implicante que sou, na hora tentei movimentar o relógio pra fora do pulso. A coisa parecia ter nascido junto comigo de tão colado na pele. Engoli seco -- era como se agora não tivesse mais nenhuma minúscula possibilidade de dar meio-passo pra trás; estava fadada a matar. Shermansky parecia ter bancado uma grana preta pra conseguir investir naquela bugiganga toda. 

— É importante que mantenham em mente: toda e qualquer tentativa de fuga gera uma penalidade pior que a própria morte… 

O terreno do instituto ocupava quase toda uma quadra do bairro, mas a estrutura da escola em si se mantia bem no meio. Isso, somado às paredes anti-ruído, tornava impossível qualquer possibilidade de que ouvissem nossos gritos de desespero ou ruídos de qualquer arma. Era quase claustrofóbico pensar nisso.

A imagem de Shermansky sumiu do monitor, e uma contagem regressiva passou a ser exibida. Trinta segundos. 

— Vocês sairão de suas cabines e utilizarão seus keypass para abrir uma cápsula. Quando apanharem a caixa de sobrevivência, vocês devem se infiltrar pela escola e escolherem seus melhores esconderijos. Quando o sinal tocar à 16 em ponto, a guerra finalmente vai começar

Os trinta segundos condensaram. O painel desativou e a porta da cabine fez um ruído de destrancar. 

Uma sensação que nunca vou esquecer, é a de ver cada um saindo dos seus buracos; cada rosto que eu nunca imaginaria estar ali. 

Havia uma aura afetada no ar. Ninguém tinha coragem de trocar qualquer olhar. Éramos todos inimigos. Era como a tensão de estar num súbito campo de batalha. Como um país na guerra; tudo tão inconstante. Se aproveitam os raros momentos de pacificidade antes que seu mundo estoure em adrenalina, pavor e sangue. O tempo escorre tão líquido quanto o suor na testa. Não existem trelas pra fechar os olhos, nem pra dormir, nem pra pensar; muito menos rezar. De repente todos se tornam monstros. Animais que não hesitam.  

Senti uma agitação dentro de mim. Em total contraste com poucos minutos antes, não era por nervoso, nem ansiedade ou medo. Parecia mais um instinto; algo que eu sentia aprisionado lá dentro e que agora parecia querer tomar forma. 

Cobri o rosto com o capuz do casaco e fui até a cápsula que me pareceu mais atrativa (no mínimo as cápsulas eram uma medida de segurança pra que nenhum afetado pegasse mais de um lote). Acionei o keypass num leitor e catei a caixa apressadamente. 

— Não me decepciona… — murmurei, dando uma chacoalhadinha no quadrado branco. 

De longe avistei Armin, que fez um sinal afirmativo com a cabeça, determinado, enquanto também segurava sua caixa.

Ajeitei o capuz, abaixei a cabeça; virei o corpo pra trás, prestes a sair correndo pra fora do ginásio o mais depressa possível -- mas esbarrei em algo; ou alguém. O senso comum daquela situação me pediria pra ignorar e continuar seguindo em frente, mas a teimosia tava ao meu favor. Ergui o rosto e minhas pernas bambearam. 

Sua expressão era de remorso, tristeza profunda. 

Minha boca se articulou com dificuldade: 

— Ken… tin… 




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