Dracocídio (versão descontinuada) escrita por Luiz Fernando Teodosio


Capítulo 6
6º Assimetria - Falso e Verdadeiro


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal. Então? Estão curtindo a história? Chegamos, enfim, ao sexto capítulo, que marca a metade do que seria o primeiro arco de uma saga maior da história. Na frequência mensal, é provável que esse arco se encerre lá pra meados de março, quando então compilarei todos os capítulos em um e-book gratuito. Claro, os novos capítulos do segundo arco serão postados normalmente por aqui e em outros sites.

Boa leitura :)



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6º Assimetria

Falso e Verdadeiro

Os membros da família Dracomir estavam alinhados e bem vestidos no saguão. Era uma formalidade desempenhada à presença de visitas importantes, e, naquela ocasião, Boris cumprimentava o novo comandante dos cavaleiros de fogo, Torenval Quenon, e seu escudeiro, Myriel Farken. O primeiro era alto e corpulento, tinha barba e cabelos grisalhos marcados pela idade experiente e um rosto severo que se esforçava para demonstrar cortesia. Já o segundo ainda experimentava os sumarentos frutos da adolescência, tinha o rosto formoso, esbanjava cabelos da cor do sol, feições orgulhosas de sua posição ao lado do comandante, e olhos da cor de um céu aberto num dia quente. Ambos vestiam uma armadura composta de botas escuras, caneleiras e ombreiras esmaltadas de vermelho, capa carmesim, espada embainhada presa ao cinto de couro, e cota de malha sobreposta por uma túnica alva adornada com o desenho de um dragão cor de sangue.

— Isto não é um dragão — Seph murmurou. Ninguém pareceu ouvi-lo. Tinha os pensamentos se exercitando em seu próprio mundinho, longe da conversa dos adultos. Somente quando alguém fez referência àquilo que vivia no porão, Seph prestou atenção aos detalhes da conversa.

— Não há necessidade de os senhores vigiarem o local — disse Boris. — Permanecerá trancado, e apenas eu e Derick temos a chave. — Os cavaleiros moveram os olhos para o homem mencionado, de braços cruzados ao lado de seu pai. — Não se preocupem. Derick é um de meus homens mais antigos e fiéis, meu braço direito desde que me tornei o patriarca dos Dracomir. Ninguém além de nós irá pôr os olhos no dragão, nem mesmo o restante da família.

Embora os cavaleiros de fogo tenham se conformado com a ideia, uma pessoa protestou com tanta veemência que deixou todos surpresos:

— Mas por quê? Por que não podemos ver o dragão!?

Tão logo terminou a indagação, Seph se deu conta do que havia falado. As palavras saíram sem pensar, jorradas com a violência de sua frustração pela decisão de Boris. Sentiu todos os olhares sobre ele, e o olhar do pai era o mais pesado, imbuído de algum sentimento que beirava o desprezo.

— Seph, os olhos não devem se acostumar ao sagrado, ou ele perderá aquilo que o torna sagrado — respondeu Boris, de forma enigmática. Em seguida, acompanhou Torenval e Myriel ao exterior da mansão.

Não conseguia compreender as palavras do pai, também não entendia como ninguém da família se manifestava contra aquela ideia, afinal, todos estiveram tão extasiados quando viram o dragão pela primeira vez… Então por que ele era o único a não aceitar isso? Foi ter com alguns deles, e, sem qualquer resistência e decepção na voz, diziam que a decisão de Boris era definitiva e que não podiam fazer nada a respeito.

Seph retornou para o quarto, aborrecido e melancólico. Pegou-se observando a tapeçaria decorada por uma alada criatura feroz. Nunca aquela e outras representações dragonescas soaram tão falsas em seu coração.

— Isto não é um dragão.

Lembrou-se então daquele momento no porão, da sensação abrasadora quando os rompantes sonoros da casca racharam a divisa entre sonho e realidade. Não era nem onírico e nem representação.

Aquilo é um dragão.

Uma chave estava com o pai, a outra, com Derick. Era a única forma de entrar lá. Mas onde as guardavam? Para descobrir, vigiou os dois, com discrição, desvendando horários específicos em que desciam para alimentar o dragão. Seph não demorou em saber que Boris escondia a chave em algum lugar no escritório dele, mas a ideia de futricar as coisas do pai, principalmente depois da severa repreensão que havia sofrido quando há alguns anos usara seu local de trabalho para se esconder dos primos, não lhe era nada conveniente. Por outro lado, Derick guardava a chave num cordão oculto sob a roupa, e parecia nunca tirá-lo nem mesmo no sono ou no banho. Furtar a chave de Derick só seria possível se ele estivesse em sono muito profundo, mas não arriscaria ser agarrado no momento do furto.

Desmotivado, Seph vomitou palavras de angústia no seu diário escondido sob o fundo da gaveta do criado-mudo. Procurava não apenas aliviar seu sofrimento, mas também, quem sabe, enxergar alguma solução nas entrelinhas. Encontrou-a dias depois, não nas folhas de papel e sim na repentina viagem de Derick, durante a visita de um grupo de cavaleiros de fogo que escoltaria o guarda para terras distantes onde ele faria algum tipo de favor a Boris. A chave de Derick foi passada a Myriel, o único cavaleiro do grupo que permaneceu na mansão e que agora se encarregaria de visitar o dragão.

Seph iniciou um ansioso processo de investigação e notou que o cavaleiro descia ao porão nos mesmos horários que o dono anterior da chave. A novidade que reanimou sua esperança foi que Myriel largava a chave em algum lugar do quarto, no segundo andar, em vez de prendê-la ao pescoço. Logo, era apenas entrar no cômodo, sempre aberto da manhã à noite, e procurar pelo objeto. A oportunidade não demorou a surgir, quando Myriel encontrava-se entretido na sala de refeições em uma conversa não muito amigável com a tia Rosa. Seph esgueirou-se até o cômodo, imaginando uma sorte de possíveis esconderijos e no tempo que levaria para checar todos eles. Talvez levasse horas ou até mesmo dias para conseguir encontrar a chave, que poderia estar em uma gaveta trancada ou debaixo de uma tábua de madeira deslocada no chão. Porém, não levou sequer um minuto. Diante da janela, sobre a escrivaninha, cintilava à luz do sol um objeto prateado.

Seph ficou desnorteado pela simplicidade da busca. Como pode algo de grande valia estar tão desguarnecido? Mesmo que tenha sido um descuido casual, aquele cavaleiro não era digno de guardá-la. Por que não alguém da família em vez de um cavaleiro de fogo? O que fez o pai depositar tanta confiança em Myriel? Seph não sabia as respostas, e nem se importava. Tinha a mente cada vez mais aliciada pelo lugar que a chave lhe abriria.

O desejo de correr do segundo ao primeiro andar era tentador, mas não queria dar a impressão de ansiedade a quem o visse. Andou como quem ia ao banheiro, e assim chegou ao porão. Encaixou a chave na fechadura. Só não a girou porque uma voz surpreendeu-o por trás.

— Tem cinco frases e um minuto para me convencer a não delatá-lo, Seph Dracomir — disse Myriel, com seus olhos azuis quentes de satisfação.

— — — —

O céu carecido de nuvens era uma emboscada para os andarilhos naquela região semiárida recheada de pequenas árvores despidas e paredes de pedra abocanhadas pelo tempo, vestígios de uma comunidade rural outrora existente. A cada quinzena de passos sobre o solo salpicado por tufos de grama seca, Seph lambia os lábios sedentos, enquanto o suor encharcava-lhe o corpo fatigado após dias de acelerada caminhada. O calor era constante. Mas sabia que quanto mais ligeira a travessia, menos companhia faria às plantas que imploravam por uma chuva que não sentiam há semanas.

Seph estava longe da estrada. Foi sua decisão depois de saber que um contingente de cavaleiros de fogo se instalara em Brigodânia. Havia aberto o mapa surrado que trazia consigo desde o início de sua jornada e deslizara o dedo por uma região inóspita para traçar um desvio que contornasse Brigodânia. Racionando água e comida, poderia durar até um vilarejo localizado a vinte quilômetros ao norte da cidade, e lá reabastecer seus provimentos. Por ora, sobrevivia com escassos centilitros de água em seu odre e empanturrava-se com os alimentos roubados de uma idosa envenenada. Apesar da fartura disponível na casa daquela velha, não queria carregar peso excessivo que pudesse atrasá-lo. Furtara apenas o bastante. No entanto, fizera pouco caso da hostilidade dessa região, e agora se arrependia por não ter trazido mais água e menos comida.

Ao entardecer, enxergou uma colina que o ajudaria na orientação. Alcançou-a após quase um dia de andança. Percebeu, aliviado, que a vegetação tornava-se mais diversa e verdejante. Assomou a elevação por uma acanhada trilha de terra praticamente engolida pelo crescimento voraz do mato que lhe batia nos joelhos. Quase no alto da colina, interrompeu a subida quando os olhos pousaram em uma rocha maltratada pelo tempo, mas ainda enriquecida de curvas e detalhes precisos, encimada numa base de pedra talhada com a seguinte inscrição: “Hhydra Oxys”. O nome lhe trouxe à tona uma enciclopédia com todos os dragões existentes, que lera repetidamente quando criança até gravar a alcunha e os atributos mágicos de cada um.

HydraOxys era um dragão capaz de cuspir água ao invés de soprar chamas, e graças a isso seu território sagrado era um terreno fértil para seus humanos fiéis.

Hoje, contudo, esse território reduziu-se a esterilidade, e o clima mais ou menos árido era devido à ausência do dragão. Seph havia lido sobre isso. Após o desaparecimento desse deus, antes de saírem dali, muitos fiéis foram a essa estátua rogando por nuvens negras, mas o dragão não lhes atendera, e nenhuma gota caiu do céu por um longo tempo. Obviamente, não os atenderia, pois…

— Isto não é um dragão.

Seph resolveu descansar ali mesmo, vigiado pela escultura. A abóboda celeste, enfim, salpicava-se com chumaços brancos que adquiriam a tonalidade quente do crepúsculo. O andarilho pressionou os olhos e focou-se no contorno de uma nuvem específica: distinguiu uma cauda comprida, um par de asas envergadas, quatro patas configuradas na forma de um “L” e uma cabeça achatada com a bocarra escancarada. Essa grande porção de nuvem parecia flutuar contra o vento, rumo ao sol poente atrás de montanhas longínquas, como se desejasse engoli-lo antes que baixasse por completo.

— Aquilo não é um dragão.

A noite caiu, e o dragão feito de vapor d´água havia desaparecido. Seph esvaziou as últimas gotas de seu odre e comeu um último pedaço de pão. Tinha esperança de encontrar adiante uma região mais solícita em frescor e provisões. O caminho alternativo para contornar Brigodânia estava se saindo muito mais custoso do que havia imaginado. Por fim, fechou os olhos e quase sonhou com o som cristalino de um riacho, até perceber que, na verdade, tratava-se de algo mais cavernoso, mais feroz… um rugido.

E não era um sonho.

Seph ergueu-se e olhou no entorno, escutando a presença estrondosa. No minuto seguinte estava subindo aos tropeços a colina, derrapando-se em buracos na grama, mas imprimindo um ritmo incansável. Alcançou o topo e tentou identificar a origem do som. Viu espirais de fumaça três quilômetros à frente, provavelmente um acampamento instalado em uma clareira rodeada pela floresta que se estendia do sopé da colina ao fim do horizonte. O rugido manifestava-se em intervalos regulares.

— Parece ser um dragão.

Seph puxou alguns centímetros da espada e constatou o tom escarlate antes de empurrá-la de volta à bainha. No segundo seguinte, desceu o morro priorizando a velocidade em vez da cautela, resultando em alguns arranhões e tombos perigosos. Quase rolou por uma encosta íngreme até uma queda abrupta de cem metros de altura. Salvou-se porque se agarrou aos galhos resistentes de uma árvore inclinada que parecia ter sido plantada ali unicamente para salvar os viajantes incautos. Seph notou que o tipo de vegetação nesse lado da colina era totalmente diferente do outro, como se a elevação fosse um limiar que separava aquelas terras desoladas da parte natural do mundo.

Seph alcançou a base da montanha e entrou na floresta. As árvores pareciam mais afastadas do que imaginava quando as vira de cima, permitindo a ele um espaço mais aberto para correr. Por outro lado, as copas frondosas se esfregavam uma às outras, formando um nodoso teto de folhas e ramos, perfurado por compridos e prateados feixes enluarados. Como resultado, o caminho tinha poucos obstáculos naturais ao andarilho, porém relevantes quando não clareados pela lua. Seph quase foi ao chão algumas vezes, mas permaneceu firme e intrépido na maior parte do caminho, atraído pelo rugido cada vez mais próximo.

Tem que ser um dragão. Seu alvo seguinte era endeusado há muitos quilômetros dali. Era raro os dragões abandonarem suas moradas e voarem até os limites do território deles. Se realmente fosse o dragão que pensava ser, iria lhe poupar alguns dias de viagem.

Seph parou sob um poço de luz inclinada e desembainhou a espada apenas ao ponto de ver a lâmina escarlate refletir-se ao luar. Ouviu o dragão estremecer as folhas com sua fúria acústica e pôs-se novamente a correr. Passou-se dois minutos sem mais ouvi-lo.

Será que ele se foi?

Distraído por pensamentos de fracasso, o único empecilho não natural naquela floresta reservou-lhe um amargo fim à perseguição. Sentiu os pés perderem contato com a terra e um emaranhado de fios de malha, amarrados aos galhos, abraçando-o e ascendo-o por vários metros. Homens vestidos de vermelho e branco irromperam por todos os lados.

Cavaleiros de fogo, aqui?

Seph encarou apenas um deles, um conhecido homem loiro que, apesar da idade adulta, conservou a jovialidade na aparência cujos olhos azuis eram tão quentes como o céu da região atrás da colina.


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Notas finais do capítulo

Não deixe de comentar sobre o que achou do capítulo. Isso ajuda o autor a saber quantos leitores estão efetivamente acompanhando a fic o/
Até a próxima!