Dracocídio (versão descontinuada) escrita por Luiz Fernando Teodosio


Capítulo 3
3º Assimetria - Leite e Álcool


Notas iniciais do capítulo

Por incrível que pareça, mesmo estando de férias, meu tempo de dedicação a este livro é menor do que quando estou em período de faculdade. Isso porque tenho mais facilidade em escrever/revisar fora de casa do que em meu próprio lar; sou interrompido sem hesitação uma quantidade absurda de vezes, sem contar a barulheira de meu irmão caçula e de outros membros da casa.
Enfim, isso tudo é só pra dizer que meu ritmo de escrita anda beeeem lento, e que provavelmente tenha deixado passar alguma coisa nesse capítulo (aquela impressão de gente perfeccionista que não se cansa de alterar o próprio trabalho). Mas espero que apreciem :)
Boa leitura.



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3º Assimetria

Leite e Álcool

Num raio de vinte quilômetros, nenhuma outra criança além de Seph Dracomir se aquecia com um cobertor de peles e acordava em um colchão de penas, tampouco tinha a sua espera uma banheira de água morna e uma mesa farta para quebrar o jejum. Regalias que lembravam a ele, todas as manhãs, quem era e qual era o seu lugar.

— Eu não quero ficar aqui — disse o menino a um dragão de mármore, contemplando-o com seus olhos verdes e sonhadores. — Ei, Benirin, você tem asas. Nós dois podemos sair daqui.

Benirin era uma escultura exposta em um corredor do segundo andar da mansão e a mais próxima do quarto de Seph. Tinha duas vezes o tamanho do garoto, os olhos voltados para uma grande janela, como se desejasse mover as asas desfraldadas e, a qualquer instante, pudesse abandonar a base de meio metro na qual fora esculpida.

Por essa janela entrou uma corrente de ar que arrepiou a pele de Eurina, que transitava por ali naquele instante. Ela massageou os braços com as mãos e fechou as janelas, escurecendo os devaneios de um garoto.

Para Seph, subir no lombo de um dragão e deixar a casa para viver uma aventura era algo que só acontecia em seus sonhos. A realidade só o permitia sair na companhia de um parente.

Numa dessas saídas, no meio da tarde, as criadas o arrumaram para deixá-lo gracioso como um Dracomir deveria estar. Seph avaliou-se no espelho. Tinha os cabelos ruivos e semi-longos bem escovados para trás. Vestia um conjunto de seda composto por uma camisa negra com a estampa de um dragão vermelho mordendo a cauda, uma calça de cor bege, cinto de couro com fivela folheada a ouro, meias largas e sapatos pretos. Parecia um nobre em miniatura. Sentia que a roupa era uma bela prisão contra qualquer ato de liberdade infantil, advertindo-o para se comportar como um nobre, e não como uma criança que pudesse se misturar às outras da cidade.

Seph aguardou seu tio Waldeck no estábulo por vinte minutos antes de ele aparecer. Ele portava roupas menos extravagantes que as do sobrinho: um gibão de couro, calção e botas. Tudo na cor negra. Era um homem de boa musculatura. Uma mecha chamativa de seus cabelos negros caia-lhe sobre o olho esquerdo, e ele a mexia um número irritante de vezes. Era também marcado por uma fisionomia despreocupada que não endurecia mesmo nas situações mais difíceis.

— Desculpe tê-lo feito esperar, Seph. Demorei bastante no banho — justificou ele, movendo a mecha com os dedos e dando um sorriso.

Subiram em uma carruagem que, como todos os veículos da família, era o mais opulento de sua categoria, movida por dois cavalos conduzidos pelo cocheiro sentado num assento superior e à frente de uma cabine luxuosa, toda vermelha e adornada com peças de ouro, que comportava apenas dois passageiros. A carruagem seguiu por uma trilha de terra em meio ao gramado do pátio até o portão de carvalho decorado pela face saliente de um dragão — de boca larga, bigodes de carpa saídos do focinho, juba de leão e dois chifres de alce. Os guardas abriram o portão e o veículo prosseguiu por uma estrada única, ladeada pelo bosque que envolvia o terreno da mansão, rumo à cidade de Nidavil.

Seph sempre almejou degustar esse trajeto a pé. O conforto da carruagem lhe dava a impressão de que ainda permanecia na mansão. Só restava a ele observar a viagem por meio da janela fechada.

Chegaram à cidade uma hora depois. Os habitantes que viam a carruagem paravam seus afazeres apenas para olhá-la em sinal de respeito. Seph achava aquilo um exagero. Pela janela, viu dois amantes entregues ao beijo interromperem o ato, o cessar de uma briga de bêbados estranhamente sóbrios para arrefecerem a cabeça, o comércio de uma feira se estagnar por alguns instantes etc. Lembrou-se de uma lenda que dizia que, se um Dracomir visitasse um lugar durante o dia, o sol se distrairia a ponto de atrasar o crepúsculo; e se fosse durante a noite, a lua retardaria a aurora de um novo dia. No entanto, ninguém conseguira provar essa anomalia temporal.

A carruagem estacionou em frente à taberna Dragões do Barril. Não era um estabelecimento ideal para crianças, mas como um Dracomir era tratado como tal, Seph não se preocupava com isso. Quando tio e sobrinho entraram na taberna, frases e risadas embriagadas suavizaram ou cessaram por completo. Eles caminharam até o balcão, visados por boa parte dos clientes.

O taberneiro Groth, um sujeito calvo e barrigudo, abriu-lhes um sorriso amigável e perguntou:

— O de sempre, Drei Waldeck? — Groth recebeu um assentimento. — Claro, um bom rum calhormano. E para o Drei Seph, o de sempre também, suponho?

— Sim, um copo de leite — confirmou o tio —, até o dia em que terá idade para beber uma caneca de cerveja e maturidade para apreciar um bom rum.

Seph não contestou. Sabia que ali as opções de bebida para uma criança eram escassas. Mas não era a primeira vez que inspirava o fedor de suor e a atmosfera alcoolizada. Viera outras vezes com o tio, que adorava frequentar o estabelecimento (e locais parecidos), não porque gostava do ambiente, mas porque era uma chance de deixar os muros da mansão. Havia lido e escutado relatos sobre as brigas nas tabernas, porém nada disso acontecia enquanto ele e o tio, a família Dracomir, estava presente. Se fosse um garoto comum, todos tirariam sarro por ele estar bebericando um copo de leite quente. E se tio Waldeck não estivesse ali, os homens se sentiriam mais livres para dizer o que quisessem — no tom que quisessem — e fermentariam o instinto por uma briga na menor das desavenças.

Apesar disso, não havia outro lugar onde a aura religiosa dos Dracomir se enfraquecia. O tio imprimia não só respeito como também aquele companheirismo de taberna, “amizades” típicas de um lugar como aquele. Poucos, no entanto, conversavam com Seph.

Groth o distraía com o repertório de estórias que só um taberneiro possuía, todas envolvendo dragões. Neste dia contou-lhe uma sobre o tataravô dele: um ladino ágil e sagaz como um bom haveria de ser, que sempre escapava dos perseguidores. "Mas por maior que sejam as qualidades de um mortal, não se pode escapar do olhar divino", salientou o taberneiro. “Um dragão visitou o ladino quando ele repousava em um descampado à noite. O deus advertiu-o para não cometer mais roubos, e o homem nunca mais esqueceu aqueles olhos faiscantes mergulhados na temível face do dragão. Mais tarde, com o semblante estupefato, disse à mulher e ao filho que o olhar do dragão expelira chamas que tostaram a ganância em seu espírito. O ex-ladino viu aquilo como uma espécie de cura divina.”

Embalado por essas histórias, o menino sempre perguntava a ele se havia boatos de alguém que pudesse ter avistado um dragão recentemente, e o taberneiro ria e lhe respondia:

— Se soubesse de coisas assim, já estaríamos na era prometida de Dragonia, um mundo abençoado por dragões.

Seph retornou para a mansão com o tio, sonhando com um mundo de dragões.

— — —

O dracocida despertou encostado à aspereza do tronco de uma árvore, o corpo encolhido dentro da capa surrada que amenizara a friagem noturna. Já havia se acostumado a dormir ao relento, e os músculos não mais reclamavam os confortos de outrora.

Enquanto o assobio dos pássaros anunciava a manhã, ele se levantou e caminhou até um córrego de água transparente ali perto, onde se ajoelhou para lavar o rosto. A natureza serviu-lhe um espelho líquido. Visualizou um homem de trinta invernos que aparentava vinte, cabelos castanhos e curtos, desprovido de barba há meses, e olhos escuros que costumavam ser tão verdes quanto à vegetação profusa do bosque a sua volta. Mas o que lhe chamou mais atenção foi sua expressão hermética, uma máscara guarnecendo sentimentos profundos e violentos.

De qualquer forma, não havia nele qualquer traço de seu verdadeiro eu, Seph Dracomir.

Regressou ao lugar onde dormira, para quebrar o jejum. Comeu uma maça e alguns biscoitos. Terminada a refeição matinal, Seph afivelou em torno do peito sua bolsa de pano, contendo provimentos já escassos, e deu início à caminhada. Assomou um aclive do bosque e desembocou na estrada pela qual viajava há dias. Recolocou o capuz e tomou o rumo para a cidade mais próxima que, segundo seus cálculos, alcançaria antes do sol se pôr.

Durante o percurso encontrou algumas bifurcações. Felizmente, placas de madeira, algumas com suas indicações em tinta desbotada ou escondidas pela mata, apontavam a direção correta para Beltic. Quanto mais se aproximava deste destino, maior era a frequência de transeuntes em carroças e cavalos. Seph procurou ser discreto quando passaram por ele, mas foi difícil não se destacar sendo literalmente um andarilho.

Cruzou a entrada de Beltic pouco antes das sombras se espicharem ao máximo pelo chão. Era uma cidade pacata, abarrotada de casas e pousadas construídas com madeira e organizadas em pequenos quarteirões. Uma larga via principal cruzava toda sua extensão, ligando as duas entradas de Beltic. O fluxo de pessoas era baixo se comparado ao de outras cidades que já visitara, porém, independente da cidade, uma taberna sempre tinha gente o bastante. Antes de entrar, Seph notou um cartaz de procurado na parede do bar. Sua cabeça tinha uma recompensa de quinhentas mil moedas de ouro, duzentas a mais em relação ao valor ofertado antes da queda de Grisal — seu último dracocídio.

No estabelecimento, poucos foram os olhares preocupados com a entrada de um homem encapuzado, pois forasteiros de visual oculto não eram incomuns naqueles tempos. Seph encaminhou-se até o balcão, ignorando os homens com suas bebidas e conversas. Sentou-se na banqueta e aguardou o taberneiro, um homem alto com bigode bem aparado, que se aproximou e perguntou-lhe o que queria. Duas bebidas lhe vieram à mente. Decidiu:

— Uma caneca de cerveja.

Em questão de segundos, espumava diante dele uma generosa quantidade de bebida para alguém que esteve vagando por uma semana na estrada. Seria razoável saciar-se com o gosto da cevada, mas Seph reprimiu a sede para inquirir o taberneiro:

— Como está a cidade de Agridain? Estou indo visitar um velho amigo lá. O dragão continua abençoando aquele lugar?

— Felizmente, sim. Desde a Dragonia, a cidade desfruta de uma ótima safra na agricultura. É de lá a minha principal fonte de cevada, e graças a isso meus negócios só proliferam. — O homem deu uma risadinha e o encarou por alguns segundos. Seph disfarçou um sorriso e tomou os primeiros goles.

— Sabe, antes da Dragonia, um taberneiro me dizia que quando surgissem boatos sobre aparições de dragões, o mundo entraria numa próspera era de paz. Quem diria que ela acabaria tão cedo, não é?

— Bem, ela ainda não acabou — disse o taberneiro, meio rude. O tom irônico com o qual Seph dissera a última frase pareceu deixá-lo aborrecido. Afinal, havia gente desesperançosa por causa dos dracocídios e gente que ainda acreditava na vitória dos deuses. — Alguns dragões partiram, mas outros ainda estão conosco.

Quebrando a conversa, um homem trôpego jogou-se em cima de Seph e estapeou a caneca, ainda com metade do conteúdo, sobre o balcão. O líquido esparramou-se pela madeira e respingou no chão e na calça do forasteiro. Seph ouviu um tortuoso pedido de desculpa acompanhado de um bafo embriagado. Algumas risadas estalaram nas mesas atrás de si. O taberneiro reclamou do sujeito chamado John, que, sentado ao lado de Seph, mantinha uma prolongada escusa, provavelmente a mesma usada com outros estrangeiros. Ao que parecia, não seria a primeira vez que John arrumaria confusão na taberna.

No entanto, Seph ignorou o bêbado e olhou para o homem atrás do balcão.

— Uma última coisa. Quanto tempo num trotar lento daqui até Agridain?

— Quinze dias, mais ou menos — respondeu o dono do estabelecimento, a expressão meio abismada e hesitante. Seph sabia o que ele pensava. Em relação a John, nenhum homem abriria mão de uma réplica verbal e, principalmente, física.

— Muito obrigado — agradeceu ele, fazendo retinir no balcão três moedas de cobre para pagar a bebida.

— Ei, amigo — chamou John ao ver que o forasteiro continuava o ignorando. — Que tal pagar uma bebida pra mim? Hein? E aí podemos esquecer isso.

Vagarosamente, Seph virou-se para encarar o sorriso debochado de John.

— Acho que é uma boa ideia. Desde que beba por onde você caga.

John abriu ainda mais o sorriso e riu ligeiramente antes de esmurrar o rosto de Seph com as costas da mão. O andarilho despencou do banco para o chão.

— Maldição, John! — praguejou o taberneiro. — Vai começar uma briga de novo? Devia tê-lo proibido de entrar aqui.

— Briga? — riu o bêbado. — Esse aqui não mata nem uma mosca. — E aplicou um chute bem dado no estômago de Seph capaz de revolver o corpo caído. — Levanta! Ande! Está com medo? — provocou e ainda cuspiu sobre o rosto dele

Pessoas nas mesas gargalhavam, outras apenas observavam com abafada curiosidade. Era raro encontrar homens tão indispostos à briga quanto aquele andarilho. Esta cena não seria esquecida na mente de alguns: John obrigou o forasteiro a se levantar, agarrou-o pelo colarinho, arrastou-o até a entrada do estabelecimento enquanto lhe dizia palavras de escárnio e o arremessou para fora.

Deitado no chão de terra, Seph ouviu as explosões de risos no interior da taberna. Um murro na cara e um chute no estômago foram um preço pequeno a ser pago para evitar uma briga. Não podia se dar ao luxo de chamar atenção e acabar matando um homem, como quase acontecera uma vez. Logo, era melhor se fazer de fraco e idiota para dar ao agressor o gosto do triunfo em vez do sabor da morte.

— Pelos dragões, homem — disse John, parado na porta. — O sangue de sua família é de covardes ou só você é diferente deles?

Essas palavras enrijeceram os músculos de Seph e cerraram-lhe os dentes. Ele levantou-se e, lentamente, encarou o bêbado na porta.

Então, a curva debochada nos lábios de John transformou-se numa trepidante linha reta, os olhos se esbugalharam e o temor transpareceu em seu rosto. Ele recuou dois ou três passos, amedrontado, antes de dar meia volta para o interior da taberna.

Seph achava a embriaguez daquele homem um transtorno para o taberneiro e seus clientes. Por isso havia o encarado como um dragão que expelia chamas dos olhos, chamas capazes de extinguir qualquer tipo de vício. Tinha a certeza de que os lábios de John jamais seriam umedecidos por sequer uma gota de álcool.

Após o ocorrido, Seph procurou uma estalagem para passar a noite, almejando um mundo sem dragões.


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Notas finais do capítulo

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