Aquele Que Veio do Mar escrita por Ri Naldo


Capítulo 9
Alpiste




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Não recomendo viajar nas sombras.

É como viajar em um túnel muito escuro que fica girando muito rápido e parece que a pele vai ser arrancada de seu rosto.

Assim que a gente apareceu no meio do Central Park, corri imediatamente para uma lixeira e coloquei todo o café-da-manhã para fora. Mirina e Julieta fizeram o mesmo. Só Louise ficou parada no mesmo lugar olhando para a gente com uma expressão de desaprovamento.

Olhei ao redor. Era uma manhã normal em Nova York, pessoas iam para o trabalho, outras passeavam com seus cachorros, e algumas outras tomavam café nas padarias espalhadas pelo Upper West Side.

Três metros à minha frente, um grupo de três garotas olhavam para mim e davam risinhos. Já tinha passado por situações embaraçosas antes, então não fiquei muito envergonhado por estar vomitando em praça pública.

Limpei a boca com as costas das mãos e voltei para onde a Sra. O'Leary tinha parado — debaixo de uma enorme árvore que fazia um sombra maior ainda. A cadela parecia exausta, respirava pela boca e estava com a língua para fora. Fiquei me perguntando o que as pessoas normais estavam vendo no lugar dela. Um carro, talvez, porque quando passavam por ela olhavam surpresos, como se uma coisa não estivesse no seu devido lugar.

— Já acabaram? Ótimo. Agora temos que achar um lugar para descansar — Louise falou.

Eu abri a boca para falar, mas antes que eu falasse, uma voz suave e um tanto doce falou atrás de mim:

— Desculpe estarmos escutando a conversa de vocês, mas não pudemos deixar de ouvir — era uma das três garotas que estavam rindo de mim, uma ruiva. As outras duas, uma loira e a outra morena, estavam uma de cada lado dela, com um sorriso no rosto. — Nós temos uma pensão perto daqui se vocês quiserem um lugar pra ficar — ela deu um sorriso radiante.

Era uma grande ideia, quase aceitei na hora, mas lembrei de um detalhe.

— Nós estamos sem dinheiro.

— Não tem problema, é cortesia para vocês.

— Esperem um pouco — Louise falou, e nos puxou para uma conversa particular. — No que você está pensando? Acha mesmo que pode sair por aí confiando em todo mundo que encontrar?

— Certo, então vamos roubar algum banco para pagar um hotel cinco estrelas. Ou quem sabe uma cela — falei.

— Dylan, nada é o que parece — Mirina falou, séria.

— Vocês têm uma ideia melhor? — falou Julieta para Louise.

— Se você nos matar por causa de três meninas estúpidas, eu juro pelo rio Estige que te caço por todo o Mundo Inferior — Louise falou, e nos empurrou de volta para perto delas.

— Então nós ficamos — Mirina disse.

— Oh! Que ótimo! — a menina ruiva se acabava em sorrisos. — Eu sou Élia, essa — apontou para a garota loira — é Lupite, e essa — apontou para a morena — é Selena. E qual o nome do seu cachorro?

Eu tinha um pressentimento como se já tivesse ouvido ou lido aqueles nomes em algum lugar, mas concluí que era mais um distúrbio de semideus e deixei para lá. Cara, se algo é estranho, nunca deixe para lá. Aprendi isso do pior jeito.

— Vocês podem vê-la?

— Como assim? — Lupite fez cara de desentendida. — Ela está logo ali.

Olhei para Louise. Ela deu de ombros.

— Sra. O'Leary — falei.

— Que fofa! — Lupite correu para dar carinho à cadela, mas Louise a interrompeu.

— Não faria isso se fosse você — Louise a lançou um olhar intimidador.— Ela pode ter uma aparência fofa, mas não gosta que estranhos toquem nela. E, bem você ainda é muito nova, e depende do seu braço para muitas coisas.

Pelo visto, a tática deu certo, porque Lupite recuou e voltou para o lado da sua amiga. Selena olhou para a cadela com um ar de desconfiança. Ficamos em silêncio por alguns segundos, até que Élia o quebrou:

— Vamos logo. Temos o dia para aproveitar!

E com essa deixa, nós seguimos as três até uma casa rosa e branca de dois andares que mais parecia uma casa de bonecas da Barbie. Tinha uma garagem e uma quadra de vôlei. Pelo visto, assim como eu, nem Louise nem Mirina gostaram da coloração rosada. Mas adivinha quem gostou?

— Eu tenho que pintar o chalé com essa cor! — disse Julieta.

— Vocês têm um chalé? — perguntou Selena.

— Sim.

— Fascinante!

As três garotas entraram, e nós as seguimos.

Por dentro tinha a mesma coloração, o que não aumentou meu ânimo para ficar ali. Era uma pensão como todas as outras, mas quando fui na cozinha, lá só tinha comida de passarinho.

— Para que toda essa comida de passarinho? — perguntei.

Élia passou na minha frente com uma velocidade incrível e me tirou da cozinha.

— É o estoque especial para nossos pássaros.

— E onde eles estão? — Louise interveio.

— No sótão. Ah, não se preocupem, há ar suficiente para eles.

— Entendo...

Subimos para o andar de cima, e cada um ficou com um quarto — a Sra. O'Leary tinha ficado com a garagem todinha só para ela. Pelo menos tinha privacidade. Deitei na cama e comecei a playlist do meu MP3.

Uns vinte minutos depois, Selena bateu na minha porta e me chamou para ir jogar vôlei com elas. Mirina e Julieta já estava lá, mas Louise não queria sair do quarto. Depois de eu insistir, ela finalmente saiu. As garotas eram boas, mas eu era rápido, Mirina era ágil, Julieta tinha uma mira perfeita e Louise tinha um braço forte, muito forte. Elas não pareceram se importar com a derrota.

Depois de jogar, todos tomamos banho e fomos assistir algum filme de romance. Louise e Mirina fingiram estar vomitando nas cenas melosas, enquanto Julieta chorava, junto com as outras.

Quando o filme acabou, fomos tomar café e conversar. O café tinha um gosto estranho, como se...

— Élia, o que tem nesse café? — perguntei, um pouco tonto.

— Ah, logo vocês vão descobrir — ela sorriu, mas era um sorriso malévolo.

— Dylan eu te avisei, seu... seu... — mas Louise caiu no chão.

Julieta já estava caída.

Mirina tentou se levantar, mas foi domada pelo sonífero que tinha no café.

Minha cabeça girou, minhas pálpebras pesaram e eu caí no chão.

Lupite apareceu na minha frente, e tudo fez sentido. A comida de passarinho, o cabelo...

Lembrei de uma aula de mitologia que tive no meu antigo internato. Élia; Aelia. Lupite; Ocípite. Selena; Celeno. As asas vermelhas de Aelia balançavam, e ela disse:

— Semideuses, tão fáceis de enganar.

Eu estava prestes a virar comida de harpia.

Acordei no porão da pensão, amarrado, algemado e amordaçado.

Bati minha cabeça na parede por ser tão burro. Como tinha deixado todos serem pegos assim tão facilmente?

Só eu tinha acordado dos cinco? Sim, cinco. Tinha um menino que parecia muito desnutrido no outro canto do porão. Tinha cabelos louros reluzentes. Que belo passarinho.

O porão era cheio de tralha velha — cadeiras empoeiradas, algemas, caixas com várias cápsulas de alguma coisa que deveria ser o que elas botaram no café, mais comida de passarinho e várias outras coisas.

Podia ouvir o latido da Sra. O'Leary de lá. Certamente as harpias haviam trancado a garagem e acendido as luzes, deixando a cadela sem sombra suficiente para viajar.

Ótimo, pensei, estou sem poder me mexer ou falar, a Sra. O'Leary não pode nos ajudar e três harpias querem comer eu e meus amigos no jantar. Não pode ficar pior. E para minha surpresa, ficou. Louise acordou, e ela estava sem mordaça. As harpias tinham feito isso de propósito.

Demorou um minuto para ela recobrar a consciência, e assim que me viu, me olhou com aquele olhar mortal e soltou alguns insultos que a fariam ficar três meses de detenção com a Sra. Ruby. Quando ela ficava com raiva, as bochechas dela inflavam e os olhos adquiriam um tom de fogo. Cara, ela ficava tão...

— Eu te avisei, seu idiota! Eu juro que...

— Ora, ora. Vejam quem acordou — Aelia tinha o mesmo tom de voz, mas não era suave, agora tinha um veneno. Sua asa vermelha cintilava com a pouca luz que havia naquele porão imundo.

— Nos tire daqui, sua vagabunda! — Louise parou de me xingar e foi xingá-la.

— Não adianta xingar, mocinha. Não tem como vocês se libertarem, e sua cachorrinha está presa naquela garagem. Um campo de força e uma luz forte são úteis às vezes — ela analisou os sacos de alpiste na sua frente. — Faz meses que nós não comemos comida de verdade. Só esse lixo de alpiste! Mas agora, temos quantidade mais do que o suficiente para dividir, não é, garotas?

Ela apontou para a escada. Eu olhei para lá e vi Ocípite e Celeno paradas uma do lado da outra. Suas asas negras e amarelas, respectivamente, brilhavam à luz do porão.

— Sim — Ocípite falou.

— Se nós fôssemos comer só aquele ali — Celeno apontou para o garoto loiro caído —, iria ser muito pouco. Mas agora... — ela lambeu os beiços.

— Calma, meninas. Ainda temos que degolar, tirar a pele, os órgãos — estremeci com essa deixa de Aelo.

As três subiram para a pensão.

Olhei para Louise, e pelo visto ela tinha cansado de xingar e se limitou a cruzar os braços e olhar para o outro lado. Olhei para Mirina, que agora estava bem acordada, seus cabelos loiros estavam bagunçados e seus olhos estavam cor de mel por causa da luz. Ela também estava amordaçada, mas não tentava fazer qualquer tipo de barulho, parecia concentrada em alguma coisa.

O outro menino também tinha acordado. Pelo menos parecia que estava acordado. Estava sem mordaça. Porém ele não conseguia fazer um único ruído. Depois me muito insistir, conseguiu falar algo como quadrado.

O que um quadrado tinha a ver com isso?

Meu raciocínio foi interferido por um barulho de passos. Olhei para a escada, pensando ser as harpias de novo, mas os passos vinham de trás de mim. Era Mirina. Como diabos ela tinha se libertado?

— Mirin... — Louise começou a falar, mas Mirina a interrompeu no mesmo momento:

— Shhh.

Ela se aproximou de mim, e tocou nas minhas algemas, elas viraram cinzas, minhas mãos estavam livres. Fez o mesmo com a corda e tirou minha mordaça. Repetiu o processo com Louise e o outro garoto, mas Julieta, mesmo depois de liberta, continuava dormindo.

— Como você...? — falei.

— Fale baixo. As harpias não podem perceber que estamos livres. É um poder que eu tenho.

— E por que não usou isso nelas de imediato?

— Eu tentei. Você viu eu tentar me levantar, mas eu caí. E, mesmo assim, só consigo usar se estiver muito concentrada.

Louise tinha ido tentar abrir a porta, mas voltou frustrada. Estava trancada.

— E quem é ele? — Louise perguntou, apontando para o garoto.

— Eu não sei — Mirina respondeu. O menino tinha desmaiado de novo. — Mas ele vai morrer desse jeito.

Levantei, peguei a barra de ambrosia que por extrema sorte estava no meu bolso, abri a boca do garoto — que babou na minha mão — e fiz ele engolir. Como esperado, ele pareceu melhor na mesma hora. Limpei minha mão na calça. Acordei Julieta.

— Dilã? — ela parecia meio grogue. Sacolejei-a mais um pouco, e ela levantou-se, alerta.

— Qual o plano? — perguntei.

— Temos que, de algum jeito, fazer a Sra. OLeary viajar para cá. É nossa única chance — Mirina tinha uma pontada de esperança na voz.

— E sobre aquilo que esse cara falou? Quadrado...

— Ele falou quadro — Louise interveio.

— E no que uma pintura vai nos... — Julieta começou, mas parou de súbito, e apontou para o quadro de energia atrás de Louise. — É isso!

Louise virou e tentou abrir, mas não conseguiu.

— Por que tudo tem que estar trancado nessa droga?!

— Esperem. Nas casas antigas, não era no porão que a encanação ficava? Talvez o Dylan pudesse...

Não tinha certeza, mas tentei. Oi, água. Será que poderia sair dos canos e explodir a energia da casa, por favor? Não tive resposta.

— Não dá.

— Você tem que se concentrar. Pense em algo bom, esqueça os problemas, e tente de novo. Você consegue! — Julieta dava apoio.

Fechei os olhos. Pensei no último pôr do sol que passei com minha mãe. Estávamos abraçados na varanda da nossa casa, nas costa oeste dos Estados Unidos. Fiz o pedido para a água de novo, e ela invadiu o porão como balas de canhão, explodindo tudo, inclusive o quadro de energia. E, como esperado, fez um barulho ensurdecedor. Um jato atingiu Louise em cheio, mas eu a segurei.

As harpias apareceram na mesma hora.

— Esqueçam aquilo de morte calma, matem-nos AGORA!

As três voaram em nossa direção, com as asas abertas e as garras à mostra. Uma delas foi atrás de mim, mas Julieta pôs-se à minha frente e a agarrou.

— Eu vou despedaçá-la!

— Despedace isso!

E a jogou em direção ao quadro de energia. Celeno caiu no chão, se contorcendo com a corrente elétrica. Peguei meu MP3 que estava no bolso, transformei-o em espada e a cravei no peito de Celeno.

Louise não estava de brincadeira. Pegou Ocípite pelo pescoço e esmurrou-a até desintegrar.

Aelia tinha ido pra cima de Mirina, que desintegrou-a imediatamente.

Um borrão preto surgiu do chão.

— Belo timing! — gritou Mirina, em meio ao barulho da água.

— Vamos sair daqui, rápido! — ela falou, e Mirina montou também.

— Não podemos deixar ele aqui — falei, apontando para o garoto caído. Ele me olhou com uma expressão de agradecimento.

— Dylan, você sabe o que acontece quando tentam quebrar uma profecia? — Mirina disse.

— Não importa. Eu não ligo para o que o que a profecia diz. Temos que salvar o Acampamento. E isso inclui Percy e qualquer semideus que encontrarmos no caminho.

— Quando morrermos, eu vou te matar.

Era estranho uma menina que não tem medo da morte ter corado quando eu a segurei.

Peguei o menino no ombro, montei na cadela com a ajuda de Julieta e Louise assobiou. Olhei para minha mão, e só restavam resquícios das harpias.

Cinzas.


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