Corrente de Cristal escrita por Aurum Anna Gurgel


Capítulo 4
Passos




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Era manhã, bem cedo. Estava frio e úmido. Algumas gotas de orvalho ainda brincavam de escorrega nas folhas das pequenas plantas que circundavam a cabana. Dentro dela, bonecas de pano, sorriam sorrisos de tinta e admiravam tudo com olhos de botão.

Ouviu-se um choro, bem baixinho, de bebê. A mulher, Warda, levantando-se depressa, cantava para acalmar sua criança:

– Dorme neném, do meu coração...

Era uma menininha, para alegria das bonecas. Uma criança de pele branca como a da mãe e os cabelos finos e castanhos, como os do pai. Mamava muito e aquietava-se ao ouvir sua mãe cantar. Já tinha sete meses.

Do lado de fora da casa, uma cerca de fios invisíveis não permitia a entrada ou saída de pessoas, a menos que a Grande Dama permitisse. O cheiro doce e forte do café e o som dos pratos sendo postos à mesa indicavam mais um começo de dia. A mãe tinha recebido permissão para ficar com o bebê, mas ainda tinha sua cota de trabalho para exercer, por isso, amarrava a criança nas costas junto com uma das bonecas. Cada dia com uma diferente, para que nenhuma boneca se entristecesse como acreditava a mãe que aconteceria. O pai não poderia voltar para casa durante o dia, como sempre, e trabalharia mais para quitar o trabalho da esposa. Eles não eram livres, eram remunerados apenas com alguns produtos para que pudessem se alimentar e continuar vivos.

No campo, as servas trabalhavam vestidas com trapos de sacos de ração. Mantinham-se prostradas sobre as ervas cultivadas para o preparo de poções. Guinle, uma feiticeira de idade já avançada e Alfie, a advinha, eram as duas mulheres mais íntimas de Warda e conheciam suas dificuldades.

Ela sentia dores frequentes no corpo. Tentava esconder, mas a menininha percebia que havia algo errado. Era aquele sentimento que algumas mães e filhos compartilham. Uma tarde, Warda caiu. Estava andando suada e fraca do trabalho, tropeçou e foi ao chão. A filha já andava e pôs-se a tentar ajudar a mãe. Ninguém tinha reparado. Elas estavam a caminho de casa, não poderia haver ninguém. Mas tinha alguém. Elas só se dariam conta disso um mês depois.

Pela tardinha, o pai chegou. Era outono e tudo estava laranja do lado de fora. A mãe fez um bolo pequeno para comemorar o aniversário da filha. Dois aninhos. O dia estava feliz. A pequena pulava pela casa com um vestidinho azul. Seu cabelo castanho estava bem liso e chegava aos ombros. Era uma criança bem alegre. Mas poderia ser mais, se pudesse usar seus poderes. Não viriam outras crianças, como de costume, pois era proibido ter amizades dentro do território cercado pelas muralhas. Estavam sentados à mesa, repartiam o bolo e o suco e sorrisos:

– O primeiro pedaço vai para quem, meu amor? - Perguntou a mãe.

– Pra papai! E pra mamãe! Eu ultimo! – Respondeu, animada, a menina.

– Vai querer suco de maçã, querida?

– Maçã! – E bateu palmas de alegria.

Estavam tão felizes, que não se dariam conta de mais nada neste mundo. Tanto que não ouviram as folhas serem esmagadas sob as botas grosseiras dos algozes que se aproximavam. Tão contentes com sua menina, que não viram a sombra sob a velha porta de madeira. Absortos em seus últimos goles de vida, a família ruiu, violentamente.

Com um chute, a porta foi escancarada. Houve um clarão. Ouviram-se gritos, um choro assustado e passos. Passos pesados, passos relutantes, passos leves. Depois o silêncio.


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