Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 7
7 - Os Sentimentos Que Você Renega


Notas iniciais do capítulo

OLAAAAAAAAAAÁ!
Estou aqui, meio atrasada, meio bêbada de felicidade, porque foram três recomendações entre o capítulo seis e este e eu não poderia estar mais feliz! RonnieStar, Ann Profecy e Party Poison... *abraço coletivo apertado* Muito obrigada MESMO! As recomendações só me fazem pensar que a história pode sim ter um fim e que há pessoas que querem lê-lo. Vou agradecer só mais uma vez senão fica piegas, mas OBRIGADA!

Esse capítulo, bem, eu acho que vocês vão gostar dele. Eu já o tinha planejado há algum tempo e por isso tive que escrevê-lo muito lentamente para que a minha empolgação não estragasse tudo, e o resultado vocês veem aí. Enjoy!



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Duas semanas depois, sexta-feira, 25 de julho de 2014, casa de Davi

“Davi! Eu sei que você já acordou. Já é uma hora da tarde, ou seja, VAMOS JOGAR!”

“Me pegou, seu maldito stalker! Parabéns! Estou acordado e almoçando. Quer uma medalha de honra ao mérito?”

“Você pode começar com as brancas hoje. Vou aguardar.”

Davi fez uma careta para o celular enquanto mordia uma coxa de frango. Estava tudo muito gostoso, como sempre, mas era meio difícil se concentrar na comida quando havia alguém muito chato enchendo a sua paciência... Desconsolado, ele largou o frango para lá, sabendo que não teria sossego se não respondesse depressa.

“Matheus, você tem consciência...” ele fez uma careta quando seus dedos engordurados deixaram manchas na tela. Legal. “De que essa é a nonagésima oitava partida que vamos jogar em duas semanas?”

“Você está contando? Que gracinha! Eu não dou a mínima importância para isso.”

“Eu dou. Você não tem vida social? Não sai? Não se diverte? Não faz nada além de me pedir para jogar xadrez com você?”

“Sua preocupação é ‘fofa’, mas não. Não tenho vida social e não vejo como isso possa ser da sua conta.”

Davi revirou os olhos. Tão típico.

“Eu me preocupo que a sua solidão possa acabar deixando você mais insuportável do que já é. Não deixa de ser pertinente, você sabe.”

“Na hierarquia dos insuportáveis eu só posso descer, porque ocupo o topo daquela bagaça. Ou seja, comece logo essa maldita partida ou eu começo!”

“Caso você não tenha se dado conta, eu ESTOU ALMOÇANDO. ESTOU COMENDO. ENTÃO NÃO ENCHA.”

Ele voltou as atenções para o frango, sorrindo satisfeito ao morder a coxa gordurosa, envolta por uma camada suculenta de pele frita, querendo acreditar que suas palavras grossas iriam afastar Matheus, o que se revelou inútil — o tabuleiro virtual piscou algumas vezes, indicando que havia um novo desafio, e Davi quis lançar o celular na parede. Carinha pentelho.

Eram duas semanas jogando com Matheus e ele finalmente abandonara a hipótese remota do segundanista ter sentido algum interesse por Tiago: parecia impossível. Com as conversas, que tinham passeado por tópicos variados, ele aprendeu que Matheus era chato para caramba, que ele não sentia interesse por ninguém (nenhum desses dois fatos o surpreendeu), que ele odiava maçãs, tomates, alfaces, ambientes fechados, a cor laranja e era fã de música clássica. Também descobrira, com certa satisfação, que o garoto tinha medo de palhaços.

Ao mesmo tempo, Davi se viu fornecendo informações sobre si mesmo para o garoto: sem perceber, notou que já tinha falado sobre seu ódio por salmão grelhado, sua paixão por música pop, sua queda pela Ke$ha (ele tinha vergonha disso, mas não negava a verdade para ninguém) e a paixonite que tivera pela professora de educação física do quinto ano, chegando ao ponto de fazer serenatas para ela.

A realidade era triste, mas impossível de ser negada — de alguma forma que ele considerava “bizonha”, Matheus de repente entrara na sua lista de amigos, e o terceiranista estava sinceramente preocupado. O segundanista tinha apenas dezesseis anos, muito novo para ficar enfiado em casa — embora o motivo para Davi ter trazido o assunto à tona fosse bem mais egoísta. Ele não aguentava mais as solicitações para jogos em todos os momentos do dia.

Você está almoçando ou plantando a sua comida e esperando ela nascer? Anda logo e responde essa solicitação.”

“Estou pensando em como resolver a sua reclusão social.”

“Não precisa se preocupar, papai. Eu já disse que estou bem.”

“Deus me livre de um filho como você. Você vive de TPM.” Ele riu sozinho com isso. “Mas estou pensando... Guilherme me chamou para ir a uma boate com a Tábata. Você devia ir junto.”

A resposta chegou quase no mesmo momento em que ele enviou o convite.

Não. Não. Não. Não. Não. NÃO.”

“Não precisa dar essa ênfase toda. Por que não?”

“Para segurar vela e aguentar você bêbado de novo? J.A.M.A.I.S.”

“Lá é uma boate, lugar de dançar. Se Guilherme e Tábata quiserem se pegar enquanto eu fico bêbado, é só você ir para o outro canto. Mas você devia ir mesmo.”

“Não. Não precisa insistir. Não vou. E responda logo esse maldito desafio.”

“Ah, você vai. Agora eu decidi. Você vai.”

“Davi… NO. NON. NEIN. NÃO!”

“Temos um poliglota aqui?”

“Falo quatro línguas, mas NÃO INTERESSA. SÓ RESPONDA A DROGA DO DESAFIO, EU JÁ DISSE QUE NÃO VOU!”

Davi encarou o celular, sorrindo com o desafio implícito nas palavras do outro. É claro que Matheus iria — o terceiranista já tinha armas em mente para usar contra o garoto e não teria dó de mandar artilharia pesada. Sem perceber, o garoto já estava pensando naquilo como uma vingança por duas semanas de falta de sossego, uma centelha de competição correndo por suas veias.

Pobre Matheus... Ele que aguardasse.

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Sábado seguinte, 02 de agosto de 2014, a calçada, algum bairro de Belo Horizonte

Eram oito horas da noite e Davi estava caminhando despreocupadamente pelas ruas de BH, em direção ao seu objetivo. A cidade estava viva, como uma grande festa, e o clima agradável parecia levar todos os problemas para longe, deixando apenas um arrepio de expectativa: aquele era o último final de semana de suas férias e ele pretendia se despedir à altura. Era em momentos como aquele, onde ele tinha um roteiro definido para a própria vida, que tudo parecia simplesmente perfeito: não havia nenhum problema, não havia nenhuma preocupação, não havia nada.

Além do mais, quando ele chegou à praça onde tinha combinado de se encontrar com Matheus, Davi admitiu para si mesmo que toda aquela felicidade vinha simplesmente do fato de que ele havia vencido: não tinha sido fácil dobrar o segundanista, teimoso como uma mula e cheio de argumentos para todas as tentativas que Davi fazia para convencê-lo. Foi um trabalho duro persuadí-lo e, em alguns momentos, o terceiranista se perguntou por que estava fazendo aquilo, mas no final valeu a pena: Matheus o xingou de todas as formas possíveis, prometeu infernizá-lo o dobro quando voltassem a estudar, disse que o odiava, mas cedeu e combinou de encontrá-lo para que pudessem ir juntos à boate.

Davi conferiu o relógio. Já eram oito e quinze e ele desejou para o próprio bem de Matheus que este aparecesse — o terceiranista tinha feito muitas ameaças, muitas envolvendo palhaços e banhos de tinta laranja neon, e pretendia cumprí-las.

— Você não fica legal quando está pensativo. Já te disseram isso?

Davi se virou para Matheus e fez uma careta.

— Já. Mas meu espelho é um cara legal e costuma desmentir essas pessoas mal intencionadas.

Matheus mostrou a língua para ele, um gesto muito “maduro”. Estava vestido do mesmo modo que Davi costumava se vestir para dormir, o que seria uma coisa ruim se as roupas não ficassem tão bem nele... O terceiranista franziu as sobrancelhas com esse pensamento.

— Ainda bem que você veio. — ele se pôs a andar e Matheus o acompanhou. — A ameaça a respeito dos palhaços era real. Além do mais, seu choro é infundado... Guilherme e Tábata também vão estar lá.

— Eu detesto festas. Não fui ao aniversário da Tábata, minha prima favorita, por causa disso. — era verdade. Davi não se lembrava de Matheus na festa. — E se eu soubesse que o Jolly Roger ia ser daquele jeito, também não teria ido. Agora estou sendo praticamente forçado a ir para uma boate. Por que você me odeia tanto?

O tom de voz dramático de Matheus fez Davi dar risada.

— Eu já disse... Estou preocupado com a sua vida social.

— Você não precisava se preocupar com uma coisa que NÃO EXISTE! E eu não estava sentindo falta nenhuma, diga-se de passagem.

— Nota-se por que Rebecca terminou com você. Não tem graça; a sua falta de humor chega à esfera do desagradável.

— Se você nunca tiver namorado ninguém, não me surpreende, também. — ele retrucou, parecendo profundamente desagradado. — Sua sinceridade é inconveniente. E chata.

— Mas eu já namorei. Duas vezes. — uma com um cara e outra com uma garota, completou mentalmente. Não era algo relevante o suficiente para dizer em voz alta, então ele se concentrou em se desviar de um declive na calçada, quase caindo ao notar a hilária expressão de choque de Matheus. — O que foi? Eu sou lindo. Mesmo sincero demais, você devia esperar por isso. O primeiro namoro fui eu quem terminou, pois estava muito morno... No segundo eu levei um pé na bunda, pois ela me considerava “muito promíscuo”.

— Você a traiu?

É costume da sua família, fazer perguntas inconvenientes?

— Sabe o que é pior? Não. — ele levou a mão ao peito teatralmente ao receber um olhar cético de Matheus. — É sério! Eu sou fiel. Mas essa vida de festas é totalmente a minha praia, eu não consigo parar de frequentá-las e minha ex-namorada, infelizmente, não entendia isso. Foi um término bem “chuchu”. Nada de brigas, nem ninguém mandando nada na parede... Só acabou e pronto.

— Legal. Minha ex-namorada terminou comigo porque eu era muito sem sal e a sua terminou com você porque você tinha sal demais. Vamos pular do viaduto?

— O viaduto mais próximo está a, no mínimo, dois quilômetros daqui, enquanto a rua com as boates está a dois quarteirões. Se você quer morrer, então morra de cirrose. — Davi encarou Matheus de forma divertida. — Ou melhor, não morra. A ameaça que eu fiz sobre os palhaços era real, e eu pretendo cumpri-la... Você estando vivo ou morto.

— Você está dizendo que nem morto eu ficaria livre de você?

Davi o encarou de forma maldosa.

— Se a sua morte acontecer nas próximas quatro ou cinco horas, é isso mesmo... Já que Tábata deixou você sob minha responsabilidade esta noite. Se quiser morrer depois, fique à vontade.

Matheus bufou, parecendo derrotado.

— Tem horas que eu acho que a minha prima usa drogas. Sinceramente, me deixar sob a sua responsabilidade?Você não tem o mínimo de juízo e eu não sou nenhuma criança!

— Isso ofende, sabia? — Davi fez um gesto dramático. — Eu tenho muito juízo... Só não costumo usar, porque não tem graça pensar demais nas coisas. Mas olha só, eu nem vou ficar bêbado hoje, para deixar você beber à vontade!

Matheus o encarou como se Davi estivesse, subitamente, coberto por alguma coisa realmente nojenta.

— Sério que você considera isso como algo ajuizado?

— Claro que sim! — Davi sorriu animado. — E chegamos. A rua é essa.

Os dois pararam brevemente na esquina de uma rua comprida, onde a única coisa que havia eram boates: de todos os tamanhos, cores e públicos-alvo desde boates mais restritas (uma delas, inclusive, tinha um segurança sisudo parado na porta), até outras mais abertas para a população em geral, nas quais a saída e a entrada de pessoas era quase ininterrupta.

— Eu cheguei ao inferno? — Matheus perguntou, quase inocentemente, observando o lugar com olhos vagos. — Isso parece com o inferno para mim.

— Ainda não. A Delirium fica no final da rua... — ele voltou a caminhar, Matheus o acompanhando como se estivesse caminhando em direção à própria execução. — Ei, anime-se! Eu estive em praticamente todas essas boates pelo menos uma vez e não consigo me lembrar de nenhuma noite tediosa. Vai ser legal! E se não for legal, lembre-se de que poderia ser pior.

— Não consigo ver como...

— É melhor que não veja mesmo. Bem, é aqui. — eles pararam em frente a uma boate grande, os muros pintados de laranja forte e um letreiro que piscava. A cada piscada apresentando um tom de néon diferente. — Ok, tenho algumas dicas, escute: esse ingresso aí é open bar, eisso quer dizer que as bebidas de lá são “de graça”. Exceto as coisas que você pegar diretamente do bar, não aceite NADA que NINGUÉM te oferecer e quando eu digo nada, é NADA. Não quero lidar com um drogado, já é ruim o suficiente mexer com um bêbado.

Matheus parecia indeciso entre o descaso e o pavor.

— É só isso?

— Claro que não. Cuidado com as mãos em lugares indiscretos, vão tentar te beijar em todo lugar que você for... Seu rosto praticamente destila vulnerabilidade.

— Você acabou de dizer que me acha bonito?

— Todas as suas interpretações são unicamente suas.

— Ok. Agora eu sei que essa noite vai ser uma merda.

Davi o conduziu de forma nada gentil para dentro.

— E você ainda tem a coragem de dizer... — Matheus tentou uma última vez. — Que isso vai ser divertido?

Vai ser divertido. E e você parar de reclamar, eu garanto que será muito mais. Vamos.

E juntos eles entraram.

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A pista de dança da Delirium era enorme, o piso brilhante e as paredes multicoloridas soando quase assustadoras em uma primeira impressão. Parecia que alguém tinha jogado vários balões cheios de tinta em diferentes tons de néon por todo o cômodo, a overdose de cor e brilho machucando os olhos.

— Ok... — balbuciou Matheus, parecendo enjoado. — Talvez eu realmente precise beber.

— O bar fica nos fundos. Vou levar você até lá... Quem sabe eu beba alguma coisa.

— Quem foi que disse que não ia beber hoje?

— Eu disse que não ficaria bêbado, não que não ia beber. — Davi lançou um sorriso despreocupado para o segundanista. — Sou muito resistente para álcool... Já bebo há cinco anos, essa experiência toda tinha que servir para alguma coisa.

Ele se embrenhou na multidão, não lutando contra ela e sim se deixando levar pela maré; Matheus, um passo atrás, não parecia tão confortável, mas se manteve próximo, desculpando-se eventualmente por alguma pisada de pé ou algum empurrão.

— Espere aí... Você disse que bebe há cinco anos? — Matheus gritou para sobrepor-se ao som da música. — Você tem dezessete!

— Sim, meu primeiro porre foi aos doze anos — Davi gritou de volta. — Memorável. Cheguei em casa e praticamente vomitei em cima da cozinheira. Ah, bons tempos...

O segundanista fez uma careta horrorizada.

— Como posso confiar em alguém que começou a beber quando mal tinha saído das fraldas?

— Você não pode. Agora pare de chorar... O bar é aqui. Agora você senta, bebe e se sentir tristeza, bebe mais um pouco. Se sentir vontade de me encher a paciência, você bebe também. Se isso aqui estiver deprimindo você, já sabe, né? Bebe.

Matheus observou o bar por um momento, com as sobrancelhas erguidas, parecendo em dúvida entre rir e sair correndo. Davi lhe deu certa razão por isso: tudo ali era pintado de amarelo-néon, desde o balcão até a capa dos bancos estofados. Em uma primeira impressão, o bar podia ser tudo, menos acolhedor.

— Tem certeza que eu não vou ficar amarelo brilhante se eu sentar ali?

— Não, pode ficar tranquilo. — a voz de Davi tremulou pelo esforço feito por ele para segurar a risada. — É só sentar e pedir a bebida que você quiser.

O segundanista se sentou e pediu uma vodka, mas não parecia muito convencido: encarava o banco a todo o momento, como se este fosse criar dentes e mordê-lo. Olhava em volta nervosamente e, quando a dose chegou, analisou-a três vezes antes de levá-la à boca. Davi, novamente, segurou a vontade rir ao ver aquilo — não parecia sensato dar risadas perto do garoto naquele momento.

— Você não vai se sentar? — perguntou Matheus, algum tempo depois, cerrando os olhos quando Davi balançou a cabeça negativamente em resposta. — Você não está pretendendo ficar aqui me vigiando como se fosse a minha babá, está?

— Pelos poderes a mim concedidos pela toda poderosa (e furiosa) Tábata, sim, é exatamente isso o que eu vou fazer.

— Mas... Você não veio a essa geringonça para dançar?

— Sim, e eu vou fazer isso. — afirmou Davi, aplicando um tom caricatamente sábio à voz. — Assim que você estiver bêbado o suficiente, vou arrastá-lo para a pista comigo.

O segundanista lançou-lhe um olhar glacial.

— Não precisa perder seu tempo. Você conseguiu me chantagear o suficiente para eu vir, ok. E conseguiu me trazer até o bar, parabéns, mas nada vai me fazer entrar no meio dessa multidão. — ele apontou para a pista de dança com raiva. — Quando quiser me levar embora, pai, eu vou estar bem aqui. Agora suma.

— Tem certeza?

— Não só tenho certeza como tenho absoluta certeza. Agora, ou você some ou a próxima dose de vodka que chegar vai ser jogada na sua cara. O que ainda está fazendo aqui? Tchau!

Davi hesitou por um momento: entrava no meio da multidão (que era onde ele queria estar) ou continuava tomando conta de Matheus, como Tábata pedira (ordenara)? A garota tinha parecido bem séria no telefone enquanto o ameaçava sutilmente, dizendo que caso Matheus terminasse a noite com qualquer lesão, a culpa seria unicamente de Davi... Mas ao mesmo tempo, ele queria muito dançar — a pista era a parte mais legal da boate.

Matheus, pista, Matheus, pista, Matheus, pista... Ele olhou para a aglomeração de corpos novamente. Todos se movendo em harmonia, a música alta, as batidas cadenciadas... E se decidiu. Tábata que me perdoe, mas Matheus não é nenhuma criança e eu também não sou nenhuma babá.

— Tente ficar vivo. — disse para Matheus, a guisa de despedida, o tom realmente sério dessa vez. — Se conseguir ficar vivo E ileso, melhor. Te encontro mais tarde.

E sumiu no ajuntamento de pessoas, acompanhando o ritmo da dança coletiva.

A partir dali, as coisas se encaminharam exatamente como Davi esperava que se encaminhassem. Havia um estranho distanciamento da realidade quando ele estava na pista de dança, como se o próprio ar da festa o embebedasse — de repente a vida normal parecia algo surreal, as mãos passeando por seu corpo pareciam amigas e as pessoas que se ofereciam para ele, sua família. Quando voltou a si, o garoto percebeu que não sabia que horas eram, há quanto tempo tinha deixado Matheus sozinho no bar e quantas bocas já tinha beijado.

Isso aqui é... Insano. Uma mulher o abraçou por trás e ele relaxou, seguindo a dança para qual ela o conduzia. Eu sou insano também, claro. A Tábata e o Guilherme estão aqui em algum lugar... Se eles me virem, vão me matar. Vão perguntar onde o Matheus está... A mulher beijou seu pescoço. E eu não sei onde ele está. Não é como se eu me importasse, também. Por que eu o trouxe para cá, mesmo?

Os beijos subiram e ele se virou para a estranha, permitindo que o ósculo fosse completo, apagando a linha de pensamento de sua mente — era sempre assim, ele não conseguia ficar no mundo real. Tudo era distante, apagado, até mesmo as mãos que desciam sinuosamente por suas costas, atingindo o bolso onde ele costumava deixar a carteira...

O telefone no outro bolso vibrou de forma incômoda, fazendo Davi se separar da mulher para atender a ligação. Ela o encarou assustada por alguns segundos antes de sair correndo e ele constatou, ainda meio fora do ar, que quase tinha sido roubado e alguém, que ele ainda não sabia quem, o tinha salvado de perder todos os documentos. Ele atendeu ao aparelho, sentindo-se aliviado.

DAVI MONTECRUZ E EU NÃO LIGO PRO RESTO DO NOME! — a voz do outro lado gritou e ele se encolheu, o alívio imediatamente indo embora. Tábata. Ele estava ferrado. —SABE O QUE EU ESTOU VENDO AQUI?

— Ahmm... — Davi tentou ganhar tempo, mas não conseguiu pensar em nada para dizer. — Um monte de gente dançando em volta de você?

NÃO! EU ESTOU VENDO VOCÊ QUASE SENDO ROUBADO E, MELHOR, SEM O MEU PRIMO POR PERTO! CADÊ O MATHEUS?

— Ai, Tábata, meus tímpanos. — ele murmurou, a voz fininha, olhando em volta à procura da garota. — Eu o deixei bebendo sozinho no bar não tem nem... Que horas são mesmo? E cadê você? Não estou te vendo.

É UMA E QUINZE AGORA! MAIS DO QUE NA HORA DE IR EMBORA! EU E O GUILHERME JÁ ESTAMOS INDO E EU NÃO QUERO NEM SABER, VOCÊ PODE SE VIRAR PARA LEVAR MEU PRIMO PRA CASA!

— Ele disse que ia ficar no bar, eu vou procurá-lo. — ele tentou manter o tom de voz apaziguador, mas o cântico de “eu estou ferrado, eu estou ferrado” que se repetia em sua mente não estava colaborando. — Pode ir, assim que eu achá-lo, eu aviso.

É BOM MESMO! — Tábata deu um suspiro alto do outro lado da linha. — Eu pedi para você cuidar dele, então, por favor, Davi, recupere a nesga de juízo que você tem nessa sua cabeça e o encontre, tudo bem?

—Eu já disse que vou fazer isso. — ela soa como a mãe dele, pensou. —Matheus não é nenhuma criança, ele sabe se cuidar também.

A ligação ficou em silêncio por alguns segundos.

É claro que ele sabe, mas... Ele não tem a experiência que nós temos com esse tipo de lugar. Para alguém enfiar drogas na boca dele, ou coisa pior, não é necessário muito esforço. Enfim, encontre-o,, ok?E me ligue assim que conseguir. Tchau.

E a ligação foi cortada — Tábata desligou na cara dele. Davi encarou o aparelho por alguns segundos, pensando se isso era um motivo pelo qual valia a pena se enraivecer, quando se lembrou do motivo da ligação. Matheus. Sentindo-se desorientado, o garoto olhou em volta rapidamente, tentando arquitetar algum plano infalível, e quando nada apareceu, decidiu-se pela coisa mais suicida que poderia fazer no momento — jogar-se contra a multidão e tentar vencê-la.

Não foi uma ideia muito inteligente — ele perdeu muito tempo empurrando os corpos para lá e para cá — e no momento em que Davi finalmente alcançou o bar, o lugar estava vazio, nenhum sinal de Matheus por perto. O terceiranista socou o balcão algumas vezes, assustando o pobre barman, antes de se lembrar que Matheus estava com o celular. Sentindo-se burro por não ter pensado nisso antes, Davi discou o número do colega, quase lançando o aparelho na parede ao ouvir o barulho da caixa postal.

Ok. Acho que agora eu posso começar a me preocupar.

Imagens de coisas que poderiam ter acontecido com Matheus começaram a se passar por sua mente inquieta. A pista de dança era o lugar que ele mais amava no mundo, mas Davi sabia que havia muita coisa ruim ali para alguém inexperiente como o colega — drogas, estupros, roubos... Se ele mesmo, já acostumado com o ambiente, tinha acabado de escapar por pouco de perder a carteira, Matheus poderia com certeza ter embarcado em algo muito pior. Movido por esse pensamento, Davi se jogou novamente na multidão, olhando nervosamente em volta.

Depois de ter certeza de que havia esquadrinhado cada canto da pista e não tendo encontrado nada, o terceiranista começou a sentir uma centelha de desespero. Se Matheus não estava ali, onde estaria? Por que não estava atendendo ao maldito telefone? Será que o garoto não tinha ido embora sozinho, sem avisar a ninguém? Mas se tivesse, Tábata com certeza saberia... Será mesmo? Será que não estavam fazendo uma grande brincadeira de mau gosto com ele? Aquilo era a cara de Matheus. Davi teria realmente acreditado nesta última hipótese, se não fosse o fato de que ele sentia que havia algo errado. Decidido, o garoto resolveu que iria tentar procurar no único lugar da boate no qual ainda não havia entrado — o depósito — e, caso não encontrasse nada, ligaria para Tábata. Ou para a polícia. Ele já não conseguia pensar direito.

O depósito, pela regra, não era aberto ao público, o motivo pelo qual Davi não se preocupou muito com ele. Alguns casais mais reservados gostavam de ir até lá para se pegarem com a maior privacidade que a Delirium podia oferecer, mas a entrada era escondida e Davi duvidava que Matheus a tivesse encontrado — estava indo checar apenas para poder dizer que não deixara nenhuma parte da boate de fora. Enquanto descia as escadas escuras que levavam ao galpão, o garoto já começava a maquinar como contaria à Tabata que tinha falhado, que Matheus de fato sumira e que ele não tinha ideia do que poderia fazer.

Essas maquinações se revelaram desnecessárias no final. Assim que Davi terminou de descer as escadas, notou duas coisas. A primeira era que sim, Matheus estava no depósito. Mas o alívio de perceber isso durou pouco — ele precisou pensar depressa para se esconder e não ser visto, enquanto lidava com o choque da segunda coisa.

Matheus não estava sozinho... Ele estava beijando outro garoto.

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Escondido de forma desconfortável atrás de algumas caixetas no depósito, Davi tentou organizar os próprios pensamentos pelo que pareceu um tempo interminável. Como assim, Matheus beijando outro garoto? Ele tinha enxergado direito? Talvez tivesse sido um engano — a iluminação do depósito não era nada exemplar e, em sua preocupação, ele poderia ter visto algo que não estava lá. Disposto a acreditar nisso, Davi cuidadosamente se levantou de seu refúgio, ainda não querendo ser visto, e esticou os olhos para o lugar onde Matheus estava.

Não havia nenhum engano — o garoto de fato estava se pegando com um cara e parecia bastante envolvido. As mãos dos dois passeavam sinuosamente pelo espaço quase mínimo entre os corpos, o beijo corria de forma selvagem, quase desesperada, e Davi jurou ter ouvido um gemido abafado. Era o tipo de amasso que Davi se lembrava de ter dado muitas vezes, mas que nunca imaginara que veria em uma perspectiva de terceira pessoa.

Eu... Não estou entendendo. Ele não está dopado; se estivesse, não conseguiria ficar de pé, não estaria tão ativo e os dois provavelmente não estariam apenas se beijando. Isso quer dizer que ele está pelo menos um pouco consciente... Mas... Como assim? Matheus?

Davi debateu internamente se deveria chamá-lo. Matheus não parecia estar desgostando do que estava acontecendo — era, inclusive, ele quem estava tirando a camisa do outro, as mãos nervosas, sem cortar o beijo. Mas aquele era Matheus! A conclusão a se tirar daquilo parecia óbvia, mas Davi se recusou a aceitá-la e decidiu fazer a coisa que parecia mais sensata no momento: observar até onde a cena iria. Aquilo poderia não ser o que ele estava achando que era... Embora não houvesse muitas outras coisas que aquilo pudesse ser.

Matheus terminou de tirar a camisa do estranho e deslizou ansiosamente as mãos pelos braços que o seguravam, outro gemido baixo ecoando pelo local. O desfecho daquilo pareceu muito claro quando o cara embrenhou as mãos por baixo da camiseta de Matheus, levando-a consigo enquanto as carícias subiam pelo abdômen magro do garoto, que se arqueou.

É sério que eu vou ficar aqui assistindo enquanto o Matheus transa com um cara que eu nem conheço? Davi pensou, os olhos ainda vidrados na cena. Quer dizer, eu já passei por isso, é bom pra cacete, mas assistir não é tão divertido... Vou vazar daqui.

E Davi teria feito isso se algo na cena não o tivesse feito parar: Matheus, já sem a camisa, estava parado, inerte, encarando o vazio com olhos baços de desespero. O garoto estranho pareceu preocupado e perguntou baixinho se estava tudo bem, o que fez Matheus “acordar”: ele segurou o garoto firme pelos ombros, encarando-o com tanta agonia que até Davi, à distância, sentiu certo desconforto.

—O que... — Matheus murmurou baixinho. — Nós estamos fazendo?

—Estamos a um passo de transar. Você está bem, cara?

Matheus piscou, muito lentamente, os olhos ainda vítreos, até que, de repente, eles se encheram de uma fúria insana. Em um movimento que ninguém poderia ter previsto, ele se jogou para cima do estranho que o segurava, o ódio desfigurando suas feições enquanto ele dava o primeiro soco, e depois outro, e outro...

Mas... O quê?

O cara, parecendo tão chocado quanto Davi, demorou alguns instantes para começar a reagir e quando finalmente o fez, sua força foi insignificante perante a fúria desenfreada de Matheus. O segundanista parecia simplesmente não sentir os socos que levava, batendo furiosamente, o rosto contorcido em agonia e cólera, socando de pé. E quando finalmente conseguiu levar o estranho ao chão, sentou-se em cima dele para esmurrá-lo furiosamente onde conseguisse acertar. Os socos não tinham alvo específico e, por diversas vezes, Matheus acertou o chão ao lado do rosto do garoto, mas não parou — a adrenalina o tinha colocado fora de si.

Por que ele está fazendo isso?Davi estava chocado demais para reagir, os pensamentos rodando de forma lenta em sua mente. Eu devo interferir?

Matheus desceu os socos para o tórax nu do garoto abaixo de si.

Ele precisa parar. Ele é o Matheus, o garoto mais racional que eu conheço.

O segundanista se levantou, ofegante, e encarou o estranho encolhido no chão, os olhos se acalmando por um momento. Ele pareceu quase confuso por um momento, o que fez Davi expirar curtamente de alívio, antes de dar um único e repentino chute no corpo aos seus pés, o olhar novamente aceso com uma ira analítica, e depois mais um chute, e outro...

Ele não...? O terceiranista ainda se recusava a acreditar, mas quando o barulho de mais um chute ressou no local, não havia mais como negar. Ele vai matá-lo!

Davi correu pelo pequeno espaço em que os separava e se jogou em cima de Matheus, agarrando-o pelos braços e caindo junto com ele no chão. Os dois rolaram por um momento e Davi usou a curta desorientação do colega neste instante para segurá-lo com força antes que a fúria retornasse — Matheus se debateu, o chutou e tentou socá-lo, os olhos ainda fixados no garoto que se contorcia fracamente no chão.

— Matheus, PARE AGORA! — Davi gritou, ofegante. Estava difícil segurar o colega. —Você vai matá-lo! PARE COM ISSO JÁ!

— NÃO! — Matheus gritou. — Eu... É tudo culpa dele! Isso é tudo culpa dele! É TUDO CULPA SUA! — ele berrou para o garoto no chão, furioso. — Isso é tudo o que eu tenho tentado evitar e de repente... É tudo culpa sua! TUDO!

— Você está louco? — o garoto se levantou, torpe, cuspindo sangue no chão. — Eu não tenho culpa de nada! Só vi um cara bonito bebendo no bar e cheguei junto! Se eu soubesse que você ia surtar, não tinha feito nada! Seu DOIDO! Vou chamar a polícia para você, seu merda!

Isso vai dar errado. Mortalmente errado. Matheus, onde você foi se meter, meu Deus?

— Não, não, não, nada de polícia. PARA QUIETO, MATHEUS! — Davi rugiu, irritado, e Matheus finalmente se aquietou, parecendo assustado. O terceiranista esperou alguns segundos antes de continuar a falar, dessa vez se dirigindo especificamente ao garoto desconhecido. — Vamos fazer um trato... Seu nome?

— Arthur.

— Muito bem, Arthur. Nada de chamar a polícia. — ele manteve o tom de voz baixo, apaziguador. — Matheus é minha responsabilidade e ele está bêbado, não dá para levar o que ele fez muito em consideração. Se você quiser, eu chamo uma ambulância para você agora e até acompanho você ao hospital, mas nada de polícia, ok? Você precisa de gelo e descanso.

Arthur pareceu considerar a oferta por alguns instantes antes de estalar a língua de forma petulante, apontando o queixo para Matheus.

— E esse imbecil? O que vai acontecer com ele?

Provavelmente nada. Lamento muito, cara, mas nessa situação, você se ferrou, e sozinho.

— Vai ser punido de acordo. — Davi mentiu, sério e conciliador. — Você quer que as coisas se arranjem desse jeito? Posso acompanhar você até o hospital agora.

Por um curto minuto, Arthur ficou silencioso, aparentemente ponderando sobre o que Davi falou, até que suspirou e relaxou minimamente a postura.

—Não precisa. Vou para o hospital sozinho. É só eu nunca encontrar esse mané de novo e tudo se arruma. — o garoto cuspiu novamente no chão e se virou para ir embora, mas algo o parou. Ele olhou brevemente para Davi por cima do ombro. — Você é namorado dele ou algo do tipo? Desculpa aí.

Davi ergueu as sobrancelhas, surpreso pela pergunta.

— Não! Somos... Sei lá o que somos, cara. — Davi soltou Matheus e se surpreendeu quando o garoto, ainda cheio de vigor, se lançou para cima de Arthur novamente. Movido pelo reflexo, o terceiranista socou-o fortemente no rosto, encarando-o com pesar quando ele caiu, nocauteado. — Atualmente, sou o cara que ele vai odiar quando acordar.

O estranho tentou dar um meio sorriso, mas seu rosto, já ligeiramente inchado, não colaborou muito com o ato.

— Boa sorte.

E mancou para fora do depósito.

Durante algum tempo, Davi encarou Matheus, deitado no chão, pensando no que faria a seguir. Teria que levá-lo embora, mas como? O garoto estava bêbado e parecia sonolento, como se a descarga de adrenalina que o levara a bater em Arthur o tivesse deixado exausto, o que o terceiranista não duvidava — nunca tinha visto uma fúria tão demente e tão... Agoniada.

Se eu não tivesse interferido, ele o teria matado. Ele não tinha dúvidas a respeito disso. O que você estava fazendo, Matheus? Qual parafuso se soltou nessa usa cabeça oca? Davi suspirou com resignação. Vou levar você para casa.

— Matheus. — ele sussurrou com gentileza, se ajoelhando ao lado do garoto. — Matheus... Levante-se. Vamos embora daqui.

— Ele... Já foi? — Matheus respondeu de forma grogue, sorrindo. — Eu venho evitando isso há tanto tempo. E ele simplesmente aparece. Estragou tudo. Eu deveria matá-lo. Eu deveria tê-lo matado...

— E você teria conseguido. Seu burro. — Davi ajudou Matheus a se levantar, rebocando-o para fora do depósito. — O que você tinha na cabeça, Matheus?

— Eu queria acabar com ele, já disse! — o segundanista respondeu, como se fosse óbvio. — A culpa é toda dele. Na verdade, a culpa é toda sua, foi você quem me trouxe para cá! — ele concluiu e Davi revirou os olhos, desanimado. — Quando você me soltar, eu surro você também.

— E por quê?

— Porque isso é algo que ninguém pode saber. Quem souber precisa morrer. Apenas.

Matheus se curvou, como se a conversação o tivesse deixado ainda mais abatido, e Davi resolveu não insistir. Atravessaram a pista de dança, ainda lotada, lentamente, vencendo cada metro da multidão com dificuldade, e quando finalmente chegaram ao lado de fora, Davi chamou um táxi, Matheus apoiado nele de forma desconfortável enquanto esperavam.

Eu prometi a ele que essa noite ia ser divertida, pensou o terceiranista com pesar. Talvez eu devesse ter feito mais para cumprir a promessa. Ele está destruído, essa anta. E eu não quero nem pensar no que ele vai pensar disso amanhã.

O pensamento o embalou durante todo o tempo de espera — quando o táxi chegou e ele colocou Matheus com dificuldade para dentro, o humor do garoto estava quase lúgubre. Exceto pelo momento em que Davi perguntou para o segundanista qual era seu endereço, não houve nenhuma outra conversação; eles passaram o percurso todo em silêncio, Matheus recostado na porta enquanto cochilava suavemente e Davi o observando, tentando não se sentir muito culpado pelo inchaço que começava aparecer no lado esquerdo do rosto do garoto, onde socara alguns minutos antes. Às vezes, quando seus amigos estavam se comportando de forma destrutiva, era difícil cuidar deles sem sentir que estava destruindo-os ainda mais.

Amigos... Ele quase riu. Não acredito que acabei de considerar essa praga minha amiga. Que amizade de nada, hein, Matheus? Vou deixar você na sua casa e nunca mais falar com você de novo. Você sabe que não vai poder me incomodar mais. Tenho algo que você não quer que ninguém saiba, embora...

O táxi parou suavemente em frente a uma casa ampla, não muitos quarteirões longe da casa do próprio Davi — essa percepção não o deixou muito feliz —, e após o terceiranista pagar, os dois desceram lentamente do carro, caminhando de forma complicada pelo jardim frontal até pararem em frente à porta. Durante alguns segundos, Davi ficou ali parado, Matheus escorado em seu ombro, enquanto pensava na desculpa que iria dar para quem quer que abrisse a porta; e quando não conseguiu pensar em nenhuma desculpa genial, decidiu que improvisaria. Afundou o dedo na campainha e esperou.

Um ou dois minutos depois, a porta se abriu, revelando a forma de uma mulher alta e delgada, que franziu imediatamente o rosto ao analisar a situação à sua frente.

— O que está acontecendo? — ela perguntou, a voz áspera, para Davi. — Ele está bêbado? Pior, ele tomou uma surra? Quem é você?

Você merece um prêmio na arte de afirmar o óbvio, pensou Davi, desgostando da mulher imediatamente.

— Nós somos colegas de sala. — ele mentiu, arfando. Segurar o peso de Matheus estava difícil. — Combinamos de sair com uma turma: eu, ele, uns colegas nossos...

— Tábata também disse que iria. Onde ela está?

Tábata, o namorado dela, Guilherme... — Davi continuou, fazendo careta por ter sido interrompido. — Tábata teve que ir embora mais cedo, o namorado dela passou mal e ela teve que ajudá-lo. Eu estava dançando... Nossos colegas fizeram uma sacanagem com ele. Deram-lhe bebida sem que ele soubesse e como ele não tem experiência nenhuma com álcool, ficou rapidamente alterado.

A mulher ficou calada por alguns segundos, como se decidisse se acreditava ou não.

— É plausível. Talvez eu deva aconselhar Matheus a escolher melhor seus amigos. — ela concluiu em tom desagradável. — Mas e essa marca horrorosa de soco na cara dele?

Fui eu, senhora. Eu soquei esse retardado e se pudesse, teria socado muito mais. Ele estava matando um cara na porrada, você consegue imaginar isso?

— Ele estava bêbado, disse algumas coisas desagradáveis para pessoas que não deveria. Foi inclusive nessa hora que eu o encontrei; os caras queriam bater nele e já tinham começado a surra.

Ela novamente ficou calada, absorvendo o que escutara.

— Agradeço pela gentileza de ter salvado o menino Matheus. — ela não parecia agradecida, mas deu um sorriso pequeno e se dirigiu para o segundanista com severidade. — Matheus! Você foi ensinado melhor do que isso! Pode confirmar a versão que o seu amigo me conta ou ele está apenas mentindo para salvar sua pele?

Davi gelou. Matheus estava bêbado, quase dormindo e desorientado por causa da briga; duvidava que ele conseguisse mentir, nem mesmo para salvar a própria pele, mas não havia mais nada que pudesse fazer.

— Ele... — Matheus balbuciou, levantando a cabeça alguns centímetros. — Me salvou de apanhar, Irene... Vou matar meus colegas quando os vir novamente. Não teve graça.

A mulher, Irene, suspirou como se estivesse convencida e saiu da porta, fazendo um sinal para que Davi entrasse.

— Traga-o para dentro, moleque, e tente não fazer muito barulho. Terei de fazer alguns malabarismos para Diego não saber o que aconteceu... Ele vai matar Matheus se descobrir que ele andou bebendo. — ela entrou e Davi se virou para Matheus, cutucando-o de leve nas costelas para que este se movesse. — Enfim, me siga.

Os três caminharam de forma silenciosa por uma grande sala e entraram em um corredor cheio de portas. Irene abriu a terceira à direita e indicou-a com um gesto seco para Davi, observando-o rigorosamente enquanto Davi adentrava o quarto e ajudava Matheus a se deitar na cama. Assim que entrou em contato com a superfície macia, o corpo do segundanista relaxou e ele se aninhou nas cobertas, fazendo Davi sentir novamente um lampejo de culpa.

Isso não é minha culpa. Eu o levei para lá por que queria que ele se divertisse. O que aconteceu é responsabilidade dele. Eu não vou ser uma pessoa melhor se continuar transferindo a culpa disso para mim.

— Peço desculpas pelo incômodo. — Irene disse enquanto o acompanhava até a porta. — Ele está passando por uma fase ruim.

— Não é um problema. Isso é em parte culpa minha; se eu estivesse lá, não teria deixado nossos colegas fazerem qualquer brincadeira idiota.

— Matheus é um bom menino, embora irritadiço; as pessoas costumam se aproveitar disso. Sempre se aproveitaram... Fico feliz por existir alguém além da Tábata que se importa o suficiente.

Se importa tanto que está planejando nunca falar com esse menino novamente. Inclusive, já até pensou que poderá chantageá-lo caso ele resolva insistir...

— Mas é claro que eu me importo. — Davi forçou um sorriso. — É para isso que servem os amigos, não é mesmo?

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Do lado de fora da casa, Davi parou e deixou que o vento da noite batesse em seu rosto enquanto pensava no que ia fazer. Além de irritado por ter sido obrigado a levar Matheus para casa, estava chocado pelo comportamento do garoto e sem jeito com as informações que tinha descoberto naquela noite, mas não conseguia afastar a memória de um acontecimento parecido, ocorrido anos trás — Davi conseguia se lembrar de seu primeiro porre, de Guilherme escorando-o para casa e da expressão entretida de Marta enquanto o amigo tentava tornar a história menos pior.

Guilherme o ajudara quando Davi começou a tentar se destruir — algo pelo qual o terceiranista seria eternamente grato. Fora o amigo quem o escutara quando ele não se aceitava, reafirmara coisas óbvias quando Davi deixou de acreditar nelas e o apoiara quando ele quis jogar tudo para o alto; basicamente, sem Guilherme, por mais chato que amigo pudesse ser, Davi não sabia como teria saído de sua própria crise existencial.

Eu tive ajuda. Ele pensou, fechando os olhos e respirando fundo, o vento frio fazendo-o tremer. Mas quem vai ajudar Matheus?

Davi abriu os olhos e encarou a rua vazia — por mais que sua mente procurasse por mais respostas, ele só conseguia pensar em uma e, por fim, se decidiu. Pegou o celular e digitou um número, batendo os pés impacientemente enquanto não era atendido.

Davi, graças a Deus! Estava preocupada! Você achou meu primo, não achou? É bom ter achado! Eu vou matar você se tiver acontecido qualquer coisa, eu juro que mato...

— Tábata. — Davi a interrompeu, categórico, e a garota se calou. — Matheus está bem, está em casa. Você pode me matar depois, mas primeiro você tem que escutar o que eu vou falar. Eu sei que você sabe sobre a sexualidade do Matheus...

O quê? — a voz de Tábata subiu três oitavas, histérica. — Do que você está falando?

— Você me perguntou se eu era bissexual por que estava querendo ajudar um “amigo” seu que estava confuso... Eu me lembro disso, porque sei que pensei que você era extremamente intrometida. E agora sei que esse amigo é Matheus. — o silêncio tenso do outro lado da linha disse tudo. — Está tudo bem. Se tem alguém que entende sobre estar confuso, esse alguém sou eu. É por isso que eu preciso que você escute atentamente o que eu vou dizer...


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Notas finais do capítulo

Agradecimentos à Moni por existir, por ter aceitado a betagem e enfim, por mil coisas: I LOVE YOU.
Até o próximo capítulo! o/