Xadrez escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 10
10 - O Que Você Quer, O Que Você Precisa


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoas!
Gostaria de agradecer à todos os comentários e pessoas lindas que começaram a ler Xadrez agora, nos capítulos mais recentes, e mesmo assim deixaram seus comentários. É muito bom lê-los, me deixa feliz e satisfeita com o rumo que a história está tomando. :3
Como eu disse, esse é um capítulo de transição. Vocês vão entender quando leem, mas já peço, por favor, que não me matem, não me ameacem...
As coisas acontecem devagar por aqui. :v
Enjoy, lindos!



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Era onze da noite quando Matheus chegou, entrando no quarto como se fosse o dono, se esquecendo de costumes típicos como bater na porta ou, pelo menos, olhar dentro do cômodo antes de invadi-lo.

Davi, deitado na cama, lia seu velho e gasto exemplar de A Cidadela pela milésima vez e não se importou muito com a invasão. No início, quando ele e Matheus haviam começado a jogar xadrez em seu quarto ao invés de na biblioteca, o segundanista tinha se mostrado um bocado tímido, batendo na porta várias vezes e adentrando o quarto como se ele fosse um campo minado. Com o passar do tempo, contudo, o garoto foi se tornando cada vez mais folgado, e embora isso tivesse incomodado Davi no começo, agora nem o fazia levantar os olhos do livro; estava acostumado.

— Você está atrasado — disse, ainda sem olhar para Matheus enquanto ele se esticava placidamente em sua cama.

— Ah, é mesmo? Legal.

— Não vai me dizer por quê?

— Não.

Davi suspirou enquanto virava uma página. As aventuras de Andrew eram reconfortantes por sua humanidade, mas ele, muitas vezes, era definitivamente irritante; em muitos aspectos, o personagem e seu amigo recostado preguiçosamente em sua cama eram muito parecidos.

— Está tudo bem, então. Pegue o tabuleiro na primeira gaveta aqui. — Davi apontou para o criado-mudo, os olhos ainda no livro. — Arrume tudo para começarmos.

— Não quero jogar, tampouco.

Como é que é? Davi levantou o olhar bruscamente das páginas, encarando Matheus pela primeira vez; o garoto tinha uma expressão cansada e os olhos que o encaravam de volta brilharam com uma pontada de preocupação. Admitindo que algo estava errado, Davi fechou o livro, colocando-o descuidadamente em cima do criado-mudo e se inclinando na direção do colega.

— Você — ele exclamou, descrente —, não quer jogar xadrez? Você está doente? Qual é o problema?

Matheus crispou os lábios com teimosia.

— Não é nada — disse. — Eu só não quero jogar.

Ai, como ele é irritante, Deus!

— Se você não quer jogar , e também não vai me contar o que está acontecendo... — Davi se irritou, o tom de voz soando exageradamente petulante. — Então por que veio?

Matheus o encarou com confusão, como se ele mesmo não soubesse a resposta da pergunta, uma expressão que seria engraçada se não fosse a centelha de preocupação que brilhava em seus olhos.

— Eu... Tinha um compromisso — murmurou o segundanista, a voz distante. — Eu disse que viria e eu vim. Mas... A Tábata foi internada. Foi por isso que eu me atrasei — ele admitiu enfim, com um suspiro exausto. — Estava ajudando o Guilherme a fugir da escola para encontrá-la no hospital.

Davi se endireitou na cama. Tábata era uma garota querida e saber que ela tinha sido internada definitivamente não era uma boa notícia.

— O que houve com a Tábata?

— Ela tem enxaqueca, você sabe disso, não sabe? Pois é. Às vezes, a doença ataca e ela tem crises terríveis; enjôo, tontura, formigamento... Foi o que aconteceu dessa vez. Eles a internaram por causa de um desmaio. — Matheus bufou. — Não é a primeira vez que acontece, mas... Desculpe-me, não vou conseguir fazer nada que exija muita concentração até Guilherme me dar alguma notícia.

Deixando a postura cair, Davi sentiu-se um pouco arrependido por ter se irritado com Matheus um momento antes; ele passava por isso o tempo todo com sua mãe, a Mônica de saúde frágil que estava se sempre passando sustos em todo mundo, e por isso não podia culpar o segundanista por estar daquele jeito.

— Bom... Está tudo bem. Nada de jogos por hoje. — Davi deitou-se na cama, esticando as pernas e encarando o teto distraidamente. — Quer ir para o seu quarto e ficar sozinho? Não tem problema, nós continuamos treinando depois.

— Na verdade, eu vou ficar por aqui mesmo. — Matheus também se esticou folgadamente na cama, de ponta cabeça para Davi, seus pés descalços encostando-se levemente no ombro do terceiranista. — Se eu for para o meu quarto, vou ter que escutar o Carlos roncando e, sinceramente, entre ele roncando e você falando, prefiro você falando. Pelo menos, você cala a boca de vez em quando.

— Devo me sentir lisonjeado por isso?

— Não, não deve. Mas pode se enganar se você quiser.

Davi riu brevemente, fechando os olhos, e isso aparentemente encerrou a conversa; por vários minutos, ninguém disse nada, o silêncio se mostrando bastante confortável para os dois. Sem se encararem, os dois deitados, um não podia dizer muito sobre a aparência do outro, mas Davi conseguia escutar a respiração de Matheus, curta e superficial, o que nunca se mostrava um bom sinal.

O que dizer? Pensou, piscando. Sei que ele está preocupado com ela, mas ele já disse que não quer falar e eu não sou um fenômeno de gentileza; nunca fui. Fico quieto e deixo esse folgado dormir na minha cama ou falo e tomo outra patada? O jeito mais fácil e o jeito mais estúpido...

Davi só podia um masoquista.

— Isso realmente está incomodando você, não está? — disse, se arrependendo no exato momento em que proferiu as palavras, mas admitindo que elas tinham sido ditas e que não havia porque voltar atrás. — A coisa da Tábata, digo.

— Isso? Mas é claro. — A voz de Matheus soou leve, até mesmo um pouco divertida. — Ela é a minha melhor amiga, atualmente. Além do mais, ela é a única da minha família com quem eu de fato me dou bem; meus outros primos não são um grande exemplo de pessoas legais.

— Meus primos não moram em Minas; eu quase não os vejo — disse Davi, distraidamente. — Acho que isso é uma sorte, sinceramente... Os Montecruz não são conhecidos pela sua simpatia.

— Você fala dos seus? Rá! Os meus... — ele se interrompeu. — Você provavelmente sabe que meu avô teve três filhos. Meu pai, meu tio Fabrício e minha tia Helena.

— Sim. Os Cadore têm fama.

— Pois é. Meu tio Fabrício tem três filhos. O Gabriel, o mais velho, é arrogante igual ao pai; Yuri, o do meio, resolveu que vai fazer a vida sendo nadador e se acha muito superior por isso; a mais nova, Luma, é a única legal, mas sendo mulher em uma família que, em maioria, só tem homens, ela não tem muita liberdade. Isso é uma infelicidade; Tábata a adora e deu para ela o apelido de Chuchu. — Matheus riu por um segundo, Davi o acompanhando. — Enfim, eles moram em BH, mas nós mantemos distância. Tio Fabrício nunca aceitou muito bem o fato de o meu pai ter largado a empresa para ser enxadrista, então...

“A Helena, entretanto, sempre foi muito próxima do meu pai. Ela era jogadora de vôlei e uma das boas, inclusive; conheceu meu tio no ramo e eles continuaram jogando até uns anos atrás. Por isso, a Tábata estava sempre viajando, acompanhando os pais dela nas competições, e eu a via muito pouco. Quando eles finalmente se estabeleceram aqui em BH, eu tinha quatorze anos, a Tábata dezesseis, e eu e ela só estudamos um ano no mesmo colégio antes de eu me mudar para cá. Nós já tínhamos nos tornado bons amigos, contudo.”

— Ela é uma garota maneira — Davi concordou. — O tipo que me faria olhar duas vezes se eu estivesse em uma festa e que me faria pensar sinceramente em um namoro depois de algumas conversas. Mas o Guilherme chegou primeiroentão... — Ele sorriu para si mesmo. — Mas aí está uma coisa que deixa a gente curioso: por que você veio parar no Vespasiano?

Matheus fez um estalo com a boca.

— Como assim?

— Ué... Os nossos pais sempre nos colocam aqui por um motivo. O Guilherme veio para cá quando tinha seis anos, por exemplo, porque ele era uma criança espetacularmente antissocial e os pais dele não sabiam o que fazer com ele, então o prenderam aqui. O Otávio, outro veterano, foi colocado aqui porque os pais dele brigavam demais e ele chorava horrores, e ninguém queria escutar ele chorar. Tem o Marciano, também... — Davi riu. — O Marciano foi colocado aqui quando tinha doze anos porque deu uma surra em moleque que perguntou para ele se tinha água em marte. Aí já viu, né?

— Ah. — a voz do segundanista soou tensa. — Eu pedi pra vir para cá. Eu tive alguns problemas com os meus amigos da outra escola e meus pais nunca ficavam em casa, por causa das competições. Então pedi e meu pai aceitou. — ele concluiu de forma definitiva, o tom deixando muito claro que ele não queria falar sobre isso. — E você? Por que te colocaram aqui?

— Quando eu era mais novo, eu era uma criança inquieta. Fiz várias babás desistirem de mim ao longo dos anos. Meu pai nunca foi o cara mais paciente, então me colocou aqui. Quando eu fiquei mais velho, meus pais quiseram me tirar, mas... — descobriram que eu era bissexual e me encheram tanto o saco que eu quis ficar. Aqui eu tinha mais paz. Aquela era a verdade, mas ele não achou sensato dizê-la. — Eu já estava acostumado com meus amigos daqui e preferi ficar. Depois de tanto tempo... Pra que ir para outra escola? Aqui é uma prisão, mas pelo menos eu já manjo dos esquemas, das sabotagens, das chantagens, dos melhores lugares para matar aula...

— Se fosse eu, teria saído. Eu sempre tive mais amigas mulheres que amigos homens, então um lugar só com garotos sempre me pareceu, e ainda parece, um inferno. — As palavras tinham um tom amargurado. — Minha melhor amiga, até o nono ano, era a Rebecca. A primeira coisa que eu fiz quando cheguei aqui foi ficar procurando por alguém parecido com ela, mas bem, não tem, né?

Davi franziu a testa, tentando entender; seu melhor amigo sempre tinha sido Guilherme e os dois nunca tinham se separado, então ele não conhecia a sensação. Às vezes, ele se perguntava como seria sua vida sem Guilherme, mas, naquele momento, aquele pensamento parecia ingrato.

— Não consigo entender isso. O Guilherme sempre esteve por perto.

— Sinto por você, então.

Os dois riram juntos por um momento.

— Você sacaneia o meu amigo. Por que não gosta dele?

— Eu gosto do Guilherme. É justamente por isso que eu faço piadas. Claro, eu sinto ciúmes da Tábata, mas dado o desespero do Guilherme hoje, quando ficou sabendo que ela estava doente, ninguém duvidaria que ele realmente gosta dela. Posso ficar desagradado com o namoro dos dois o quanto eu quiser, porém...

Davi nunca soube qual era o porém; naquele exato momento, a porta se abriu violentamente e Tiago entrou como uma flecha no quarto, os cabelos desarrumados como se ele tivesse passado suas mãos neles várias e várias vezes e os olhos distantes, como se ele estivesse em qualquer lugar, menos ali. Ele mal pareceu notar os garotos deitados na cama da direita enquanto procurava desesperadamente nas suas gavetas do guarda-roupa por algo, xingando baixo enquanto o fazia, mas Matheus definitivamente o notou. Davi sentiu quando ele se sentou na cama e fez o mesmo, observando apreensivo o rosto de Matheus enquanto ele seguia os movimentos de Tiago, uma mistura de medo, desprezo e desespero em seus olhos.

Tiago estressado, Matheus com cara azeda... Isso vai dar merda, não vai?

— O que é que você — cuspiu Matheus — está fazendo aqui?

Oh, sim. Vai dar merda. E merda das grandes.

Tiago levantou os olhos das gavetas lentamente, o que fez Davi gelar até os ossos. Embora companheiro de quarto fosse uma pessoa calma por natureza, ninguém podia considerá-lo alguém lento; por isso, aquele movimento arrastado, somado aos olhos raivosos que encararam os dois garotos sobre a cama, era um indicativo certo de desastre. Geralmente, quando Tiago chegava naquele estado ao quarto, Davi simplesmente o evitava até que o companheiro se acalmasse, pois a natureza do terceiranista era a de evitar ao máximo qualquer conflito; Matheus, contudo, era provocativo e levava suas discussões até o fim.

— Tiago — cumprimentou Davi, com um aceno, uma tentativa falha de amainar o clima ruim que estava se instalando no quarto. — Como foi a noite?

— Como assim... — Tiago sibilou, ignorando completamente a tentativa diplomática de Davi enquanto se aproximava perigosamente de Matheus. — O que você está fazendo aqui? Este é o meu quarto! Suma você daqui! Não foi você que socou a minha cara lá no Jolly Roger?

Matheus arregalou os olhos ante o veneno na voz do outro, mas se recompôs depressa; em um segundo, estava novamente ereto, os olhos duros, encarando o mais velho com uma expressão altiva.

— Sim, fui eu. Talvez eu deva te dar outro?

— Rá! — Tiago riu de forma jocosa. — Eu gostaria de ver você tentar. Eu estava bêbado naquele dia, mas não estou bêbado hoje, e gostaria que você calasse a droga da sua boca. Não estou com vontade de conversar com nenhum ser pensante. Você, muito menos.

Davi piscou, tentando entender como a tensão tinha progredido a um estado de “quase briga” tão rapidamente. Acho que Tiago brigou com a Isadora; ela é a única pessoa capaz de fazê-lo ficar desse jeito, concluiu. Mas Matheus... Por que ele está desse jeito? Se Tiago se parece tanto com o atual namorado da ex dele... A reação não deveria ser outra? Não faz sentido. Não faz...

— Você não me ofenda desse jeito! — Matheus silvou. — Eu não tenho culpa nenhuma pelo que quer que fez você chegar aqui desse jeito!

Tiago fez um aceno desdenhoso com a mão.

— Você fala de culpa? Eu não tenho culpa nenhuma pelo que quer que estivesse te incomodando lá no Jolly Roger e, mesmo assim, você me deu um soco! Um maldito soco! Eu não tenho nenhuma culpa por você ser um maldito viadinho fresco que não quer que ninguém encoste em você! Não fale de culpa comigo, seu merda!

O quarto caiu em um silêncio pesado, as palavras ondulando perigosamente entre os dois garotos, e Davi prendeu a respiração. Ele sabia que Tiago não tinha dito aquilo conscientemente, cuspindo as palavras como tiros no escuro, mas infelizmente, o garoto tinha acertado — e pela expressão que Davi via no rosto de Matheus, uma mistura de desespero e vulnerabilidade, soube que ele tinha acertado em cheio. Sem querer, Tiago tinha cutucado a pior ferida de Matheus e o modo como o garoto respirava rapidamente, as mãos em punhos apertados, indicava que ele estava prestes a perder o controle. De novo.

De novo eu me pergunto isso: interfiro? Davi observou Matheus e Tiago por um instante. Vejo que Matheus está tentando se controlar... Eles já me esqueceram, então eu posso apenas ficar quieto e confiar nele, certo? Surrar o Arthur na Delirium é uma coisa; tentar bater em um Tiago aparentemente drogado, dentro do meu quarto, é outra completamente diferente. Ele deve saber disso.

E de fato, parecia saber; aos poucos, os punhos de Matheus foram relaxando, suas mãos se libertando lentamente da tensão enquanto ele encarava Tiago com um ódio profundo, mas controlado. Aliviado, Davi se permitiu um pequeno sorriso para si mesmo, feliz por não ter que se intrometer em um conflito entre dois amigos, mas a raiva borbulhante de Tiago ainda não se amainara e ele ainda tinha que descarregar seu veneno em alguém. Sorrindo de modo odioso, o garoto encarou Matheus de forma desafiadora nos olhos, proferindo as palavras seguintes com um tom de censura irônica:

— Por que você não responde nada, Matheus? Eu estava só começando a me divertir! Talvez porque seja verdade, não é? Você é realmente um viadinho fresco com alergia a toques.

Os acontecimentos seguintes ocorreram em uma questão de poucos segundos: em um momento, estavam Tiago e Matheus, um em frente ao outro, se encarando com ódio enquanto Davi observava tudo, sentado na cama. No outro, Matheus se preparava para avançar em Tiago e Davi se levantava da cama como um foguete, por puro instinto, mal reparando nos próprios atos até finalmente conseguir impedir Matheus de concluir sua primeira investida; ele sabia o que o amigo era capaz de fazer, mas sabia igualmente que Tiago não era indefeso. Nenhum dos dois ganharia nada com aquela briga. Por alguns segundos, Davi brigou silenciosamente com Matheus enquanto este se contorcia sob o seu aperto, até que, enfim, o segundanista se acalmou e Davi conseguiu encarar o colega de quarto com um olhar admoestador.

Merda, Tiago, você fodeu tudo!

— Tiago — ele disse, a voz afiada como uma navalha, sentindo uma leve satisfação quando ao ver o olhar divertido do outro morrer lentamente. — O que aconteceu? Você brigou com a Isadora de novo, não foi?

O garoto crispou os lábios.

— Não vai me responder? — Davi prosseguiu, perigosamente suave. — Você tem duas opções: ou você abre a boca e me explica o porquê dessa merda toda ou eu solto o Matheus, deixo vocês dois brigarem... E chamo os monitores. Já que são mais de meia-noite e, por coincidência, o toque de recolher já passou faz tempo. Vou contar até cinco. Um... Dois... Três...

— Tá, eu briguei com a Isadora! — Tiago gritou, irritado. — Feliz? Satisfeito?

Matheus se contorceu novamente no aperto de Davi que, distraído, o soltou. Finalmente livre, o segundanista voou para fora do quarto, se dignando a um único olhar de desprezo para Tiago antes de bater a porta com violência ao sair, quase arrancando-a das dobradiças. Davi praguejou baixo.

— Não, não estou nem um pouco satisfeito — ele disse, se preparando para ir atrás do colega. — Você também não alivia, hein, Tiago? Caramba! Se você brigou com a Isadora, chegar aqui soltando fogo pelas ventas não vai adiantar nada. Simplesmente saia e vá esfriar sua cabeça.

— Vá se ferrar, seu maldito indeciso promíscuo.

Davi ergueu as sobrancelhas. A briga foi séria. Será que eles terminaram?

— Eu não sou o Matheus — afirmou com descaso, dando de ombros. — Você precisa de mais do que isso para me irritar. Mas essas coisas que você diz quando está irritado... Não me surpreende a Isadora ter pulado fora.

E, após apreciar a expressão machucada de Tiago por um instante, Davi saiu do quarto, disposto a acalmar a cabeça quente de Matheus. Se o conhecia bem o suficiente, o terceiranista sabia para onde o amigo tinha ido, e por isso correu rapidamente pelo corredor, em direção ao campo que separava os prédios de quartos do terceiro e segundo anos.

Matheus realmente estava lá, caminhando rapidamente pelo gramado, a elegância habitual de seus passos um pouco comprometida pela raiva evidente que ele sentia. Assim que o viu, Davi sentiu vontade de rir, ao mesmo tempo em que se viu estranhamente empático; não era fácil ter uma verdade distorcida com tanto veneno jogado na sua cara daquela maneira. Enquanto corria para alcançá-lo, o terceiranista pensou no que faria quando conseguisse fazê-lo — não tinha pensado ao correr atrás do colega, fazendo isso mais por reflexo do que por qualquer outra coisa —, pensamento que sumiu no exato momento em que Matheus percebeu sua presença e o encarou.

O segundanista não estava desesperado, preocupado, agoniado, ou o que fosse; ele estava possesso.

— O que você acha que está fazendo? — Matheus sibilou, parecendo fazer um esforço descomunal para manter a voz baixa. — Some daqui!

— Eu vim atrás de você, uai — Davi retrucou. — Aquilo que o Tiago disse... não foi legal. Não mesmo.

— Não foi legal? — Matheus deu um sorriso contrariado. — Foi péssimo! — ele aumentou o tom de voz, aparentemente sem perceber. — Eu não sou obrigado a escutar uma merda dessas e, pior, não sou obrigado a escutar conselhos de um bêbado escroto como você! Eu não tenho cabeça para essa sua maldita mania de ser o “defensor dos pobres e oprimidos”. — Matheus fez falsete, os dedos formando aspas imaginárias. — Quem você acha que é? Padre Davi de Calcutá? Simplesmente me deixe em paz, merda.

E, ofegante e irado, o garoto deu as costas para o colega em um rompante, rapidamente sumindo no prédio de quartos do segundo ano. Não olhou para trás uma única vez.

Ué... Davi deu de ombros, surpreendido pela profundidade da raiva do amigo. Não entendi nada. Falo com ele amanhã.

Não havia mais nada a ser feito; Matheus claramente não queria conversa e ficar ali, parado e exposto em campo aberto, era apenas pedir por uma detenção. Por isso, Davi caminhou rapidamente de volta para seu próprio quarto, trancando a porta ao entrar e ignorando tanto a figura furiosa de Tiago na cama da direita como a aura terrível que o garoto exalava. Sentindo-se cansado, Davi ainda tentou ler algumas páginas de A Cidadela antes de dormir, mas ao perceber que não estava absorvendo nada, apenas fechou os olhos e se deixou levar. Dormiu abraçado ao livro, como tinha feito tantas outras vezes em sua vida.

O sono de Davi era confuso, ele sempre soube que era; havia momentos em que ele dormia como uma pedra, outros em que ele estava um palmo abaixo da superfície, apenas, estranhamente consciente das coisas em volta ao mesmo tempo em que sonhava com outras e momentos em que seus sonhos e a realidade em volta se misturaram, e ele não conseguia distinguir suficientemente os dois. Por isso, quando o terceiranista acordou no dia seguinte se lembrando de lampejos de alguém batendo à porta, da voz de Matheus e de uma conversa amigável entre o amigo e Tiago, não soube muito bem o que pensar. Ele se lembrava de ter aberto os olhos minimamente e olhado o relógio, constatando que eram cinco horas da manhã, mas tinha sido um sonho? Ou uma mistura de fatos reis e oníricos? Antes de se levantar para começar o dia, Davi gastou alguns minutos pensando nisso, olhando fixamente para os números no relógio — seis e cinquenta e sete, seis e cinquenta e oito... —, mas, ao chegar a nenhuma conclusão, se levantou da cama de maneira resignada.

Tomou um susto — no leito ao lado, Tiago estava deitado, ressonando suavemente, uma cena tão rara que ele ficou se perguntando se não estava tendo um sonho espetacularmente real. Bem, talvez estivesse. Mas ainda assim, mesmo em sonhos, havia escola, responsabilidades e um refeitório lhe esperando, então Davi fez a rotina da manhã com movimentos vagarosos e saiu do quarto. Tiago ainda dormia quando ele saiu, o que definitivamente era bizarro, mas tirando isso, as coisas correram como sempre corriam.

É isso o que chamam de rotina, ele pensou consigo mesmo, enquanto caminhava pelo corredor. Longa e tediosa rotina. Nada acontece, nenhuma agitação... Apenas o mesmo de sempre. No Vespasiano, isso é tudo o que acontece, mesmo.

Não eram pensamentos bons para começar o dia, mas eram os únicos que ele tinha e Davi os aceitou solenemente. Era só melancolia típica da manhã, afirmou para si mesmo. Só melancolia.

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Aquele foi, definitivamente, o dia mais incomum que Davi havia tido até o momento em toda a sua trajetória no Vespasiano, mesmo contando com o dia que alguém roubou as cuecas de todos os alunos da escola e as colocou para formar um desenho no pátio, na terceira série (nunca pegaram o culpado e Davi mantinha uma secreta admiração por ele, mesmo depois de todos aqueles anos), ou o dia em que ele, o próprio Davi, espalhou bombas caseiras pelas salas e elas não explodiram, sendo logo depois recolhidas para a sala do Caldarias — e explodindo lá. Ao se lembrar daquelas datas, Davi as considerava esquisitas, mas nada comparado à bizarrice daquele dia do seu terceiro ano, onde nada correu como ele poderia esperar que corresse.

Era quase como se algum espírito tivesse escutado seus pensamentos melancólicos sobre rotina e resolvido fazer uma pegadinha de mau gosto com ele. Davi quase podia imaginar o maldito gênio dizendo: “no Vespasiano, isso é tudo o que acontece, hã? Deixe-me mostrar como você não sabe de nada, mero mortal”.

O dia começou de forma razoavelmente normal, ele tinha que admitir: Davi chegou ao refeitório normalmente, pegou a fila como fazia em todas as manhãs e encheu sua bandeja de comida. Guilherme não estava lá, provavelmente ainda com Tábata no hospital, então Davi se sentou sozinho e comeu lentamente; tinha chegado mais cedo ao refeitório e estava com tempo para se demorar. Mastigou diversas vezes cada pedacinho de comida, enchendo as torradas de geléia, os pãezinhos de patê e as bolachas de creme, surpreendendo-se ao constatar que, ao comer metade da bandeja, já estava cheio.

Aquele foi o primeiro fato estranho do dia. Não era novidade para ninguém que Davi comia como uma draga e as cozinheiras já o conheciam por nome, por causa das dezenas de vezes que o garoto havia batido na janelinha da cozinha para pedir mais comida; apesar de tudo isso, ali estava sua bandeja, com comida suficiente para satisfazer uma pessoa menos faminta, e ele se via incapaz de comer mais uma torrada. Arrasado, Davi levou suas sobras de volta para as cozinheiras, e a expressão daquela que recebeu sua bandeja disse tudo: ele só podia que estar doente.

Enquanto caminhava para o último andar do prédio quatro, preparando o espírito para o Clube de Xadrez, Davi pensou se sua estranha falta de fome não era algo para se preocupar. Contudo, ao chegar lá e encontrar a sempre enérgica e exigente Marina em um humor esfuziante, o garoto não pôde deixar de pensar que todas as suas preocupações da sua vida, até aquele momento, tinham sido bastante idiotas.

Isso — ele pensou com ênfase, enquanto observava o sorriso aberto da professora — era assustador. É algo para eu me preocupar. Definitivamente.

— Docinhos! — ela chamou, com a entonação mais esticada do que o habitual. — Hoje eu tenho uma dinâmica diferente para vocês: um xadrez em tamanho real! Vejam que eu fiz marcações no chão; eu serei a jogadora e vocês atuarão como minhas peças.

— Contra quem?

— Que pergunta besta! —Ela abriu ainda mais o sorriso, esticando-o até as orelhas. Deus que me proteja. — Contra mim mesma, oras!

Todos os alunos se entreolharam com dúvida por um momento, suas expressões hesitantes.

— E qual é o propósito disso? — um aluno mais corajoso verbalizou a dúvida geral. — Se pelo menos houvesse um grande adversário para você enfrentar, até justificaria, mas nós servirmos como peças enquanto você joga contra você mesma parece meio idiota.

Uai — ela exclamou, franzindo a testa. — O propósito é fazer vocês sentirem o jogo na pele de vocês; eu fiz essa dinâmica uma vez, interpretando uma dama, e foi uma experiência muito interessante. Não me importo de jogar contra alguém, qualquer um de vocês, contanto que eu tenha um voluntário para ser meu oponente. Alguém...?

Ela deixou a pergunta no ar, esperando, as palavras ondeando de forma tensa em volta dos alunos que se entreolhavam, como quem pergunta: você tem coragem? O silêncio se esticou, nenhum garoto particularmente bravo se oferecendo para salvar a todos da fúria de Marina, e eles teriam ficado naquela tensão para sempre se Davi não houvesse tido uma das melhores ideias que tivera até então: sugerir alguém.

De maneira distraída, ele passeou os olhos pelos rostos de seus colegas, escolhendo seu bode expiatório, o sacrifício daquela manhã de repente se tornando óbvio conforme Davi era tomado por um ímpeto sacana.

— Que tal Matheus? — sugeriu, inocente. — Pode ser um bom treinamento para o campeonato no final do ano, não?

Matheus abruptamente o encarou com as sobrancelhas franzidas sobre olhos afiados, que Davi deliberadamente ignorou enquanto contemplava Marina com sua melhor expressão ingênua.

— É uma boa ideia... — A professora considerou a ideia por um momento. — Não faça cara feia, Matheus! Você sempre vence, essa é uma boa chance de eu tentar minha vitória. Escolha o aluno e a posição na qual ele vai ficar; comece com os peões e nada de colocar o Davi como um peão como vingança por ele ter indicado você! — advertiu ela. — Eu sei como a cabecinha de vocês funciona.

Matheus fez cara feia para a mulher, como se ela realmente tivesse acabado de estragar seus planos e, com uma voz mal humorada, começou a escolher seus peões. Davi esperava por uma posição mais baixa na hierarquia do jogo, mas, aparentemente, Marina havia ficado satisfeita por ele ter indicado Matheus para a forca e colocou-o para ser o bispo das peças pretas, uma peça de poder considerável. Satisfeito, Davi caminhou com um pequeno sorriso para a casa correspondente à sua posição no grande tabuleiro em tamanho real, decididamente ignorando o olhar irado e um pouco preocupado que Matheus lhe lançava do outro lado da sala.

Enquanto esperava o resto das “peças” serem decididas, Davi se lembrava de ter pensado que aquela dinâmica tinha tudo para se um desastre, o que felizmente se provou algo muito errado nas horas seguintes; o jogo de xadrez com pessoas foi divertido, com direito a implicâncias das peças umas com as outras, comentários sobre o jogo e outras coisas que um xadrez normal não possibilitava. Marina era uma mestra interessante, em certos momentos decidindo os movimentos das peças, enquanto em outros permitia que a própria peça decidisse seu destino; Davi se viu diversas vezes com o próximo movimento nas mãos, a visão limitada que tinha do jogo obrigando-o a pensar o dobro antes de fazer qualquer besteira. Cada vez que uma peça era capturada, o deboche geral amainando e aumentando de acordo com o jogador apanhado, a tensão aumentava, chegando a um ponto até mesmo cômico; quando Matheus finalmente conseguiu tirar Davi do tabuleiro e encurralar o rei das pretas, todos os que assistiam na lateral tinham expressões até mesmo idiotas no rosto.

— Xeque-mate — Matheus disse, a voz apática. — Venci.

E instalou-se na sala uma baderna geral; todos os jogadores que tinham sido peças brancas cantavam vitórias com gritos, enquanto as pretas se defendiam como podiam, gritando de volta, e Marina, que geralmente colocaria ordem na desordem, ria como só as pessoas muito felizes fazem, sem prestar muita atenção na arruaça que acontecia em volta. A sala virou quase um campo de guerra, gritos para todos os lados, e Davi mal escutou Marina dizendo que sim, eles estavam liberados, sim, mais cedo, e que todo mundo fosse embora porque ela não queria gritarias na cabeça dela. Parecia um milagre, já que era a primeira vez em três anos de clube que Davi era liberado antes do horário e ele tratou de aproveitar, chamando Marcelo com um gesto, indicando que deveriam ir antes que a professora mudasse de ideia.

Davi aproveitou seu raro tempo livre antes do almoço para dormir; todos os alunos estavam, ou nas atividades de seus respectivos clubes, ou no horário de aula, o que significava que o prédio dos dormitórios estava silencioso como o garoto poucas vezes tinha presenciado. Alegre por isso, ele se esticou na cama sem sequer trocar de roupa, sabendo que o maldito blazer azul marinho ia ficar todo amarrotado depois e, não se importando muito com isso enquanto se ajeitava na cama, os olhos já pesados de sono. Alguns minutos mais tarde, seu celular apitou três vezes, indicando a chegada de novas mensagens e Davi, no limbo entre a lucidez e o sono, teve a imagem de seu braço se esticando para visualizá-las como última lembrança antes de adormecer completamente.

Quando acordou, as mensagens ficaram completamente esquecidas. Confuso, Davi gastou um curto segundo se perguntando por que o despertador estava tão alto e por que o quarto parecia tão quente antes de, com certo desespero, constatar que o que estava escutando não era seu alarme e sim o sinal que indicava o início das aulas da tarde. Ele estava muito atrasado; com certeza não conseguiria chegar a tempo na sala para assistir ao primeiro horário e, além do mais, sentia fome, pois tinha perdido o almoço. Onde está Tiago quando eu preciso desse filho da mãe? Ele deve ter me visto dormir quando veio ao quarto! Por que o maldito não me acordou?

Não adiantava chorar, entretanto. Com o blazer amarrotado, como Davi sabia que ficaria, o garoto juntou os materiais necessários para as cinco matérias restantes da tarde e saiu correndo para negociar algum resto de comida com as cozinheiras, o que conseguiu depois de uma boa dose de negociação. Era terrível comer sem ter tempo de mastigar a comida devidamente, mas sabendo que não tinha muito tempo, não lhe sobrou opção melhor do que engolir a comida com rapidez, quase sem sentir o gosto, e sair correndo para chegar à sala do segundo horário. Enquanto voava pelos corredores, teve a impressão de ter visto Matheus parado e de que ele o chamava — o que é que ele está fazendo parado no corredor? É hora de aula, o atrasado aqui sou eu! —, mas não achou sábio se arriscar a um novo atraso. Acabou chegando à sala quinze minutos mais cedo, os quais gastou jogando conversa fora com o professor; Ulisses, apesar de ensinar física, era relativamente jovem para os padrões do corpo docente do Vespasiano e costumava ser alguém legal quando não estava ensinando termodinâmica.

Quando o sinal do segundo horário bateu e os alunos chegaram, Marcelo sorrindo jocosamente para ele enquanto se sentava no lugar de praxe, como quem diz “eu conheço seu crime, companheiro”, Davi suspirou com algo entre o alívio e o desânimo. Seu atraso não teria grandes consequências — era só conversar com Hugo, que, graças ao gosto do garoto por livros, parecia ter certa predileção por Davi e o ajudava como podia —, mas saber disso não o deixava mais animado. Ele ainda queria estar no quarto, dormindo naquele cansado sono sem sonhos, pois o terceiro ano era simplesmente enfastioso, as provas estavam se aproximando e aquele dia não estava funcionando como deveria. Talvez, se ele dormisse por tempo suficiente, as coisas voltassem ao normal.

Os horários passaram em uma sequência melancólica, Davi cochilava disfarçadamente em quase todas as aulas. Quando finalmente o último sinal tocou, indicando que as parcas horas de liberdade do dia haviam começado, o garoto levou um susto, pulando da cadeira de supetão enquanto olhava em volta com olhos arregalados; em que momento tinha perdido a noção do tempo daquela maneira? Ainda pensava ser três horas. Com passos sonolentos, Davi se arrastou até o refeitório, pensando se devia se preocupar por Guilherme não ter voltado ainda ou se devia simplesmente se desesperar por estar sem fome para comer uma tigela de sopa. No fim, acabou não fazendo nenhum dos dois: devolveu a tigela de sopa pela metade e decidiu que ligaria para Guilherme depois. Naquele momento, só iria para seu quarto, talvez ler mais algumas páginas de A Cidadela, e dormir.

É só um dia ruim. Disse para si mesmo, enquanto caminhava para seu quarto. Eu já tive dias ruins antes. Não há nada que torne esse diferente. Tudo bem, não é normal eu ficar sem fome ou ser liberado mais cedo do clube, mas isso são detalhes... Mais milagres do que detalhes, na verdade, mas enfim... É só um dia ruim.

Chegar a seu quarto fez o garoto suspirar de alívio — inconscientemente, ele estava esperando por um Tiago carinhoso, ou talvez (e com certa esperança) por alguma pessoa maravilhosa ali, deitada na sua cama (de preferência sem as roupas), porque, afinal de contas, se era o dia dos milagres, qual era o problema de desejar coisas impossíveis? No entanto, o quarto estava vazio, como ficava em todos os dias naquele horário; o terrível cheiro de lavanda sendo quase um alento enquanto Davi remexia as gavetas procurando por seu pijama. Era uma coisa surrada e velha, mas estupidamente confortável, e ele quase sorriu quando terminou de vestí-lo; o dia tinha terminado, ele estava em sua cama e não havia mais nada de estranho para acontecer. Com A Cidadela em mãos, Davi escorregou sorrateiramente para debaixo das cobertas, preparando o espírito para novamente sofrer raiva com a personalidade ingênua de Andrew.

Lerei por algum tempo e depois dormirei, para dar fim nesse dia doido. Ele pensou, com certo alívio. De preferência, vou acordar antes do despertador, não darei nenhum cochilo durante o dia e vou comer o dobro para compensar a minha falta de fome. Sim, isso é bom.

Satisfeito com esse cronograma, Davi abriu o livro em qualquer página e começou a ler — como sabia a história de cor, podia iniciar a leitura em qualquer ponto sem ficar perdido. Andrew podia ser o protagonista mais irritante de todos os tempos, mas sua história o distraía a tal ponto que, quando alguém bateu à porta, uma quantidade de tempo difusa depois, o pulo de susto de Davi foi tão potente que fez a cama reclamar.

.. Ele pensou, enquanto se levantava e caminhava até a porta. Quem poderá ser? Não estou esperando ninguém. Tudo bem, hoje é o dia dos milagres, eu sempre posso esperar por um homem bonito, uma vez que é o Vespasiano e não tem mulheres aqui e não tem como esperar por um homem e uma mulher bonitos... Se bem que, sendo milagre, eu sempre posso esperar pela mulher também. Pior do que está, a coisa não fica mesmo...

Mas quando Davi abriu a porta, dando de cara com um Matheus de humor tão obviamente ruim que o terceiranista quase sentiu toda a atmosfera boa de seu quarto sendo drenada, ficou claro que sim; a coisa sempre podia ficar pior.

— Está fazendo o que aqui, Matheus? — perguntou Davi, depois de um longo minuto esperando o segundanista falar alguma coisa. — Quer dizer, eu nem sei que horas são, mas está tarde, hoje não é dia de treino, não prometi ajudar você a colar em nada e não me lembro de ter chamado você para cá, então, o que é que você está fazendo aqui?

Mesmo com a repetição da pergunta, Matheus não disse nada; só continuou a encarar Davi com as sobrancelhas franzidas, como se houvesse algo que o incomodasse no rosto do amigo. Geralmente, o terceiranista não se importava muito — por um ou outro motivo, sempre havia alguém o encarando —, mas aquele dia tinha sido ruim e aquela picuinha de Matheus parecia mais do que o suficiente para deixá-lo amolado.

— Olha — disse ele, a voz soando como um estalo irritado. — Vou fechar a porta na sua cara. Passar bem.

E virou as costas para o amigo, dando um impulso forte na porta e esperando pelo familiar barulho de batida, que, sem nenhuma surpresa, não aconteceu; era claro que o segundanista iria interceptar a pancada. Aquilo era a cara dele.

O que, atualmente, não significa exatamente uma coisa boa.

— Por que fez isso? — Matheus finalmente falou, a voz lampejando curiosidade e mais alguma coisa que Davi não soube identificar. — Não me diga que está com raiva.

Hã? Davi arqueou levemente as sobrancelhas, sentindo-se minimamente surpreso.

— Por que eu estaria com raiva de você?

— Por que eu xinguei você ontem, por que você me indicou para a forca hoje no clube de Xadrez e por que eu te chamei, mas você me ignorou, eu sei lá, você parecia estressado, com pressa, ou estava simplesmente me ignorando. Eu não te culparia, eu sei que eu falei besteira, eu vim aqui pedir desculpas, mas ‘cê ‘tava dormindo, e eu detesto isso, pois quando sei que fiz uma coisa de errado e a pessoa confirma, eu me sinto um lixo — cuspiu Matheus, as palavras saindo depressa, embora sua expressão mostrasse que ele não preferia não tê-las dito. Fechando os olhos, ele respirou fundo, as feições se contorcendo em uma careta orgulhosa. — Desculpa, tá? Não vale a pena dar atenção ao que eu falo quando estou estressado, geralmente eu só digo merda, depois o povo vem me encher a paciência e...

Mas eu não estou entendendo absolutamente nada...

— Matheus.

— Oi?

— Cala a boca — Davi disse de forma autoritária, sentindo uma leve satisfação quando o outro parou de falar. — Você entrou em um transe nervoso, começou a oitavar, isso não é uma coisa muito digna de se assistir. Além do mais, cara, eu não faço a menor ideia do que você está falando. Como assim você me xingou ontem? Eu com certeza me lembraria disso... — Davi forçou a memória, repassando os acontecimentos do dia anterior, até lembrar o momento em que Matheus ironizara a mania dele de querer ajudar os outros. — A não ser que você esteja falando da hora que você me chamou de bêbado escroto e logo depois de Padre Davi de Calcutá.

— É disso mesmo que eu estou falando, não foi uma coisa muito educada para eu dizer, sabe, até porque quem disse merda foi o Tiago, você só queria ajudar. Tudo bem que a sua mania de querer ajudar é meio irritante, mas é melhor do que uma mania de querer ferrar com tudo e...

Davi se desligou do discurso de Matheus, os olhos analisando o rubor que havia subido pelo pescoço do garoto até chegar às bochechas; ele estava nervoso. Não era por causa da noite anterior, Davi sabia, pois conhecia Matheus o suficiente para entender que não era qualquer coisa que o deixava naquele estado lamentavelmente falante; o motivo era outro e o terceiranista pensou que, em pouco tempo, faria efeito para descobrir qual era. Porém, enquanto isso não acontecia, reviveu o pensamento de que todo aquele discurso estava acontecendo por que Matheus o tinha chamado de bêbado escroto, um xingamento que ele tinha se acostumado a escutar vindo de todos os seus amigos, o que significava que todo aquele drama era absolutamente desnecessário.

Começou a rir, primeiro baixo, depois em gargalhadas escandalosas. Elas ecoaram pelo quarto, soando até mesmo histéricas, e Matheus parou de falar, encarando Davi com confusão e estranheza ao mesmo tempo.

— Meu filho — engasgou Davi, alguns minutos depois, sentindo as laterais doerem, os últimos resquícios de riso fazendo seu corpo inteiro balançar. — Você já fez tanta coisa pior e vem aqui se desculpar por algo tão simples como isso? Tem certeza que é por minha causa que está estressado desse jeito? A Tábata, está tudo bem com ela?

— Está tudo ótimo com ela. — Matheus virou as costas rapidamente. — E eu não deveria ter vindo aqui. Estou indo embora, tchau.

— Iiih, Matheus, fique zen! — Davi se levantou e barrou a porta, impedindo Matheus de sair e o empurrando pelas costas até a cama. De alguma forma, escutá-lo falar todas aquelas coisas havia deixado o terceiranista inesperadamente de bom humor. — Você vive de TPM, nunca vi! Daqui a pouco, vou começar a achar que todo esse mau humor seu é falta de sexo!

Em sua defesa, Davi poderia, futuramente, ter dito que realmente falou aquilo de brincadeira, mas ficou muito claro, pela expressão horrorizada de Matheus, que a frase não soara como uma brincadeira para ele: os resquícios de rubor remanescentes da primeira explosão de nervos do garoto, de repente, ganharam nova força, o rosto dele assumindo um tom interessante de vermelho. Era quase engraçado, Matheus com os olhos esbugalhados e as bochechas muito vermelhas, e Davi fez um esforço descomunal para não rir na cara dele; tinha a impressão que isso não melhoraria a situação.

— Você está segurando o riso — resmungou Matheus, a voz pesadamente acusatória. — Tem algum problema com isso?

— Só não imaginei que eu fosse acertar, apenas isso — Davi forçou a voz a assumir um tom de voz apaziguador. Fiz bem em não rir. Tenho a impressão que, se tivesse rido, ele teria me batido. Era claro, pela expressão de Matheus, que o assunto não o estava agradando, e parecia muito sensato deixar para lá; contudo, Davi não resistiu ao impulso de insistir na conversa. — Então quer dizer que você é virgem? Que legal! Acho que você é o primeiro virgem que eu conheço a essa altura da minha vida.

Matheus se empertigou na cama de forma a encarar Davi, o rosto todo contraído em uma expressão de desafio teimoso.

— Sou — rosnou. — Estou esperando você me dizer qual é o maldito problema.

Eita, terreno perigoso.

— Em ser virgem? Nenhum. O problema é que eu sinto que se você continua assim, não é por falta de oportunidade... — Davi lançou-lhe um olhar astuto. — E sim porque você não quer. E quando digo não quer, digo que fica se reprimindo, igual fez lá na Delirium. Você sabe o quanto isso não é saudável? — Matheus olhou para o amigo com censura pesada, e Davi achou melhor parar de insistir; notava-se claramente o quanto a conversa estava deixando-o desconfortável, o rubor descendo até a gola da camiseta. — O resultado é que você fica mal humorado e desconta seu mau humor em mim, uma pobre alma inocente, que estava aqui lendo A Cidadela, quietinha, sem incomodar ninguém.

Matheus soltou o ar lentamente, o alívio começando a pintar suas feições.

— Isso — retrucou, um sorriso fraco nos lábios —, é relativo.

Davi sorriu de volta para ele, mas não disse mais nada; tinha forçado a barra até onde sentiu que podia ir e agora precisava dar a Matheus o tempo que precisava para se recompor. Se ele quisesse, continuaria falando sobre o assunto quando sentisse que deveria, o que poderia ser alguns minutos ou alguns dias depois; quando se lidava com Matheus, Davi acabou aprendendo, as coisas não tinham um tempo definido. Durante um minuto, o terceiranista ficou ali, em silêncio, encarando o fenômeno interessante que era o rubor de Matheus abandonando a pele, até decidir que a conversa tinha de fato acabado e resgatar A Cidadela no criado-mudo para ler.

Tinha passado quase trinta páginas quando Matheus falou novamente.

— Você tem razão, sabe — resmungou, mal humorado. Davi abaixou o livro lentamente para observá-lo. — Eles vêm, mas eu não consigo lidar com eles. Era mais fácil com Rebecca, mas isso faz muito tempo.

— Ela é uma menina, é mais fácil com elas. — Isso também é extremamente relativo, contudo, não é necessário dizer. — Mas veja só... Você tem vontades, é perfeitamente normal. Não significa que você sente nada emocional. É só... E eu odeio essa palavra... Carne, entende?

— É fácil para você, que só gosta de meninas, falar, mas a coisa não é tão simples para mim.

Na verdade, a coisa é um pouquinho mais complicada para mim, se você for pensar, mas como explicar isso? Davi pensou se deveria falar que era bissexual, uma coisa que ele não escondia de ninguém, mas achou melhor não. A impressão que eu tenho é que ele vai pensar que estou traindo-o.

— Não, é extremamente simples. Quer ver? — Davi se levantou e encarou Matheus, sentado na cama. — Não sente atração nenhuma por mim, sente?

— É mais fácil eu pular daquela janela de cabeça e esmagá-la no primeiro andar do que isso acontecer.

— Nossa, que enfático. Magoou. — o terceiranista levou a mão ao peito teatralmente por um segundo. — Enfim. Finja que eu sou um cara qualquer em uma balada qualquer e eu vou fingir que você é uma garota qualquer em uma balada qualquer. Aja naturalmente, tente forçar sua cara dura a sorrir e se não conseguir forçar um sorriso, pelo menos faça sua boca se mexer o suficiente para uma palavrinha simpática. Nesses lugares, ninguém está nem aí para a sua vida, para o que você pensa; eles estão interessados nessa coisa entre o seu queixo e o seu nariz chamada boca.

— Jura? Não tinha reparado. E não vejo como isso vai ajudar, sinceramente...

— Psiu. Hora da balada. — Davi fechou os olhos, imaginando a vida, a cor, as luzes e o ambiente de uma boate, o que não era particularmente difícil para ele; depois de um minuto, ficou fácil imaginar que Matheus era, no meio de uma multidão, apenas um que ele abordaria sem muitas preocupações. A mente leve, Davi caminhou em direção ao outro usando seu andar mais felino, desenhando um sorriso torto nos lábios enquanto se sentava do lado dele na cama, encarando-o bem nos olhos. Quando falou novamente, a voz estava suave como seda. — Você é tão gato. Estava te olhando, essa sua pele branquinha e sua boca, meu Deus... Essa jaqueta te deixa muito sexy.

— A-ah... — Matheus gaguejou, recuando vários centímetros. — Eu...

— Você, eu não acredito que não te encontrei antes. Não vamos nos ver de novo, também, e por isso... — Davi se inclinou para ele, envolvido no teatro, porque ele já tinha feito isso antes; aquela dança lasciva que era a paquera e a sua conclusão e, dessa vez, o segundanista não recuou. Com a proximidade, Davi podia ver cada detalhe do rosto de Matheus: os fios de cabelo caindo sobre a testa, a respiração que saía em leves ofegos, os olhos arregalados com íris que não eram pretas, e sim castanho-escuras e as bochechas muito coradas, detalhes que poucos minutos antes lhe tinham parecido engraçados, mas que, naquele momento, só lhe provocavam um sentimento estranhamente familiar que ele preferiu ignorar. — Fique comigo.

Matheus não disse nada; na piscina de vermelho que havia se tornado seu rosto, as palavras provavelmente tinham se afogado. Não era algo surpreendente para Davi, que já tinha escutado várias vezes que sabia ser convincente quando queria, mas, ainda assim, havia algo na intensidade do olhar que Matheus lhe lançava que estava fazendo o garoto se esquecer de quem estava encarando — o que, definitivamente, era péssimo.

Esse é o Matheus, o que eu penso que estou fazendo? Acho que me empolguei com o teatrinho, sinceramente...

— Viu? — disse Davi, um pouco alto demais, desfazendo-se da máscara da atuação. — Você nem precisa responder. É só inclinar a cabeça e beijar a pessoa; ela nem vai ligar pela sua falta de resposta, porque, afinal, ela não chegou a você procurando por um bate-papo intelectual. Você também pode me imitar, se quiser, quando quiser chegar em alguém. Porque, Matheus, não confunda desejar com amar; eles podem sim ser diferentes e dá para conviver com os dois.

Matheus continuou sem responder e Davi teve a estranha impressão de que o garoto estava evitando encará-lo. Por um minuto, os dois ficaram ali, lado a lado, ao mesmo tempo em que pareciam estar em pontos distintos de uma galáxia, até Matheus finalmente se levantar e espanar as roupas, os movimentos estranhamente mecânicos.

— Sim, certo, entendi — recitou, a voz distraída, os pensamentos claramente a quilômetros dali. — Davi, se não se importa, vou para o meu quarto, o toque de recolher já tocou faz tempo e eu estou com sono... Não quero me ferrar. Valeu aí... Até amanhã... Tchau.

E deu um passo vacilante para porta, não parecendo querer de fato ir, antes de se virar e, muito calmamente, ajoelhar-se na cama, os olhos baixos. Por um segundo, o terceiranista tolamente se perguntou se o garoto gritaria com ele e o xingaria por aquela cena, sua mente considerando todas as possibilidades, exceto aquela que realmente ocorreu: Matheus levantou os olhos e o encarou com energia, aqueles mesmos olhos ardentes que tinham feito Davi se jogar na primeira partida de xadrez dos dois, dois anos antes. Aquilo parecia tão distante naquele momento, tão estupidamente borrado, principalmente porque o fogo ficava mais próximo, o rosto de Matheus a centímetros do dele, lentamente diminuindo a distância, como que dando a Davi a chance de fugir.

Contudo, ele não fugiu — de repente, se sentia febril, o corpo parado, esperando por algo que ele não sabia muito bem o que era, pois embora parecesse óbvio o que ia acontecer, aquele era Matheus e sua mente não funcionava da mesma forma que a dos outros. Será que quando estivesse perto o suficiente, iria dar-lhe um tapa na cara? Ou simplesmente riria e diria “rá, peguei você, essa é a minha vingança?”. Mas vingança pelo quê? Os pensamentos ficaram cada vez mais difusos, Matheus realmente próximo agora, e Davi soube, teve certeza, de que o garoto estava sorrindo. E então, ele o beijou.

Não houve línguas, nem sequer houve grandes movimentos; mas no momento em que os lábios se tocaram, Davi soube que aquele seria um beijo que ele jamais esqueceria. Porque, enquanto o tempo passava, os lábios unidos, a textura, o gosto, o infinito de suas pálpebras fechadas, ele quis ir adiante, quis levantar suas mãos e deslizá-las pelo rosto do outro, apenas para fazer qualquer coisa, mas parecia claro que não era certo e ele nunca se sentira tão satisfeito e sedento ao mesmo tempo.

Pareceu durar uma eternidade. Mas foram apenas segundos; os mais longos segundos de sua vida, antes de Matheus abrir os olhos, encarar Davi uma última vez e sair do quarto. O som da porta batendo, suavemente, pareceu vir de muito, muito longe enquanto Davi se recostava na parede, tocava os lábios em confusão, passava as mãos nervosamente pelos cabelos uma, duas, três vezes e respirava fundo, sem saber o que pensar, sem saber o que dizer. Simplesmente sem saber.

Que merda aconteceu aqui?


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Notas finais do capítulo

Aeeeeeeeeeeee
Sim, ela é lenta, mas as coisas acontecem por aqui! SIM!
Nesse capítulo, não só eu devo agradecer à Moni (linda, diva, gostosa, maravilhosa, raio, estrela, luar, manhã de sol, meu iaiá meu ioiô), como o Matheus e o Davi também! Não ia rolar beijo nesse capítulo. :v
Mas a Moni me fez ver que CABIA BEIJO SIM
E é por isso que eu te amo, minina :3
Até o próximo, amores, obrigada por me amarem s2