Regis um menino no espaço escrita por Celso Innocente


Capítulo 17
Tristes lembranças




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Ele já estava ligando o tape, quando ainda, aleguei:

— Desde que não sejam besteiras!

— Vou lhe mostrar algo muito triste! Algo que você jamais se esquecerá!

— Mais triste do que a minha saudade de casa, é impossível!

— Só pra deixá-lo por dentro, você ainda não completou dez anos da Terra!

O aparelho foi ligado e eu, apenas de short, sem camisa estava brigando de socos e rolar no chão, com Toninho, um menino branco de cabelos pretos, de minha idade. Nós éramos assim, sem querer plagiar, um tipo de inimigos inseparáveis; brigávamos sempre e em pouco tempo, estávamos juntos novamente. Na luta, algumas vezes eu apanhava, outras batia; dependia da sorte no momento. Naquele dia, ele me acertou um forte murro no nariz, fazendo com que o sangue quase negro, escorresse por minha boca e camisa. Ao sentir aquele gosto doce de meu próprio sangue entre os lábios, o que sobrou dele, ferveu dentro das veias, me deixando tão bravo e nervoso, que me fez criar uma força descomunal, fazendo com que eu conseguisse dominá-lo, derrubando-o ao solo e me sentando sobre sua barriga, segurando com a mão esquerda em sua garganta e chegando a esfregar meu punho direito fechado, sobre seu nariz, ameaçando dar-lhe um grande e avassalador soco, que o deixaria bonzinho para o resto de sua bendita vida de moleque provocador. Só que não fiz.

Mamãe apareceu com sua costumeira varinha de guanxuma verde entre as mãos e puxando-me pelos braços, tentou me surrar, acertando-me algumas varadas; escapei-me de suas garras e corri para dentro do quintal, onde algo me disse que deveria parar e esperar. Ela me surrou, com mais algumas varadas sobre minhas pernas nuas. A dor das varadas, o sangue escorrendo pelo nariz e o nervosismo, me fizeram reagir e tomar-lhe a vara, me virando contra ela, ameaçando lhe dar também, algumas daquelas varadas em sua face; porem, nessa hora, meu coração doeu e eu arrependido, parei, devolvendo-lhe a varinha. Foi então, que sem perdão, apanhei pra valer: Mamãe, nervosa, desferiu dezenas de varadas por todo meu corpo, sem pensar aonde acertava: pernas, braços, rosto, nádegas... Apanhei tanto, que minha bexiga lotada, se esqueceu que ali não era a hora e lugar e se abriu, fazendo com que a urina acumulada, se escorresse pelas pernas abaixo. A urina que vazou, acho que foi até bom, pois foi o alerta que precisou para que a surra findasse e então, cumprida cruel punição, acabei, do jeito que estava, deitando-me de bruços em minha cama. Poucos minutos depois, meu irmão mais velho, ainda surgiu para caçoar de minhas dores, físicas e emocionais, dizendo que eu iria direto, sem escalas, para o inferno ser espetado pelo tridente do capeta, por ter ameaçado nossa própria mãe.

— O senhor sempre fala que me protegia na Terra. — Disse ao senhor Frene. — Então por que não me protegeu naquele dia? Daquele erro?

— Claro que eu lhe protegi! — Exclamou ele.

— Apanhei do cretino Toninho! Apanhei de mamãe e o pior: cometi o maior pecado de minha vida, tentando bater nela e o senhor diz que me protegeu!

— Quando você foi revidar sobre ela, seu coraçãozinho pediu em dores, pra que não o fizesse! Quem você acha que fez isso?

— Se o senhor sempre me protegeu. Quer dizer que Deus, nunca fez nada?

— O Universo é muito grande, pra que Deus se envolva em tudo o que se passa! Deus, jamais se interfere no livre arbítrio das pessoas, mesmo sendo crianças! Deus não faz nada daquilo que está ao alcance do ser humano, resolver por si próprio! É por isso que todos nós precisamos de certo anjo da guarda!

— O pior é que isto aconteceu um dia antes do senhor me sequestrar na Terra! O que será que mamãe ficou pensando?

— Está tudo bem, menino!

— Acho que ela pensa que fugi de casa!

— Ela não pensa assim!

— O que mais o senhor vai me mostrar?

— Lembra da noite em que você teve que dormir pelado?

— Claro! Essa o senhor já me mostrou.

— Sei que já! Mas você se lembra, no outro dia, na farmácia, quando você tomou uma injeção no traseiro?

— Isso é normal! — Mostrei-lhe meu braço direito. — Veja a grossura de meu bracinho raqu... raquít... Magrinho! E depois, qual a criança que toma injeção no braço?

— E do dia em que você se perdeu na cidade?

— É que eu morava no sítio! Estava na casa de vovó e fui passear no centro da cidade, com minha prima. Na metade do caminho, resolvi voltar e me perdi!

— Então você começou a chorar, duas meninas, que entregavam leite, te apanhou e te levou na rádio...

— No caminho, encontramos meus pais e meus irmãos mais velhos! Então fiquei com eles!

— E depois quer fugir pra Terra? Justo você que se perdeu dentro de sua própria cidade! — Caçoou ele.

— Acontece que eu só tinha cinco anos e ainda morava no sítio!

— Entendo! Você se lembra das representações na escola? Os teatros de alunos?

— Acho que minha professora gostava muito de mim, pois sempre me convidava pra representar.

— Todos gostam muito de você, Regis! Todos tem carinho especial por crianças educadas! E depois, acho que você já nasceu com um talento nato pela arte. — Riu ele.

— No ano passado, na festa do dia da árvore, cada classe usou quatro alunos pra plantar uma árvore! Neste dia eu plantei minha primeira árvore!

— Agora só falta escrever um livro e ter um filho! — Ironizou.

— Quê!?

— É um dos ditados populares da sua Terra! O homem será completo quando plantar uma árvore, escrever um livro e for pai de um filho.

— Vai demorar hem! — Insinuei fazendo careta.

— Pra ter o filho, eu concordo, mas escrever um livro, não precisa tanto.

— Não vou ser escritor! — Neguei convicto.

— História pra contar, você tem! — Riu ele.

— Triste minha história! Não?

— Não vejo assim! — Protestou ele. — Uma vida de aventuras!

— Troque comigo!

— Você também representou sua classe, no teatro do dia da Pátria, entre outras cinco crianças: meninos e meninas.

— Será que quando crescer posso ser artista? — Pensei um pouco. — Ator! Não escritor!

— Quer ser um artista em meu mundo? Consigo lhe conceder este desejo!

— Obrigado senhor Frene, mas eu prefiro voltar pra minha casa.

— Na Terra, você também jogava bola...

— Brinquei muito de bola, com meus amigos, irmãos e primos. Só que eu não sou muito bom de bola, por isso eles sempre me colocavam pra jogar de goleiro.

— E de goleiro, você é bom?

— Mais ou menos! — Fiz gestos simultâneos com as mãos e boca. — Consigo segurar as bolas.

— Lembra-se de sua primeira cartilha escolar?

— Claro! Como não? “Caminho Suave”.

Sem nada dizer, ele ligou o aparelho e me mostrou: Era nada mais do que um dos primeiros dias de aula, do primeiro ano escolar de um inocente menino de sitio. Levava o caderno para a professora dona Jacira corrigir a tarefa e ela riu, alegando meu trabalho estar todo errado, por estar perfeito demais. Era para que fizéssemos uma cópia dos famosos be-a-bás da lição da “barriga” e eu teria feito toda a cópia, em letras de forma minúscula; quase idêntica a que estava na cartilha.

— Às vezes o erro se torna divertido! — Afirmou senhor Frene, rindo. — Mas às vezes pode se tornar muito chato!

E me mostrou quando, novamente levava o caderno para ela corrigir a tarefa. Quando ela tomou o caderno em suas mãos, atirou-o longe, gritando brava:

— Que letra horrível!

O senhor Frene estava rindo e eu, acanhado, só lhe disse:

— Tem certas palavras que dói mais do que uma surra!

— O que a professora disse, é um exemplo! Não é verdade?

— Realmente!

Ele, sério, desligou a máquina e me perguntou:

— Quem morava próximo da escolinha, Regis?

— Meu tio... — Respondi triste, já sabendo o que ele iria me mostrar.

— Aquele homem alegre... brincalhão! Aquele homem, que sempre dava carrerão em todos vocês, ameaçando castrá-los... Veja isto:

Tornou a ligar a máquina e na tela apareceu meu tio Cilmar, tentando arar a terra, com Bainho, o cavalo baio de meu pai; mas aquele cavalo manhoso, não habituado a trabalhos agrícolas, não aceitava as rédeas e levantava as patas dianteiras, bravo, dando coices no ar, se parecendo mais com Silver, o famoso cavalo branco de Zorro. Eu contava apenas seis anos de idade, recém-completado; assistia tal espetáculo, grudado na cerca de arame farpado e só sabia rir.

— Coisa errada é com você! Não, Regis?

— Foi divertido!

O riso sapeca de uma infância feliz, gravada em certo tape da existência, se fazia presente também naquela hora, em ainda uma infância, distorcida pelo destino fabricado.

— Mas a cena daquele homem bom, se tornou triste, poucos dias depois.

— Certa noite, ele se aproximou de casa, mas não chegou... — Insinuei triste.

— Como você sabe?

Dei de ombros e completei:

— Me contaram!

Novamente o aparelho foi ligado e eu, ainda aos seis anos, fui tirado da cama por mamãe, pela manhã, antes do horário habitual. Ainda se fazia escuro e mamãe, enquanto preparava meus irmãos menores, inclusive Paulinho com apenas um ano de idade, mandou a mim e meus irmãos maiores, nos vestirmos com roupas de passeio.

Vesti uma calça de tergal, cinza, comprida e camisa de algodão, branca, também de mangas compridas; calcei sapatos pretos; meu irmão Leandro me ajudou a prender meu suspensório de tecido marrom, com fivelas douradas, me transformando em um principezinho. Perguntei se íamos passear. No caminho, ela nos informou sobre o ocorrido, me deixando curioso, pois jamais teria visto tal cena. Quando chegamos à casa da irmã de papai, encontramos meu tio Cilmar, com pequeno ferimento na testa, que soube depois, que se dera devido um tombo sobre as pedras próximo ao Rio Lajeado; Meu tio dormia um sono profundo, dentro de um caixão de madeira, revestido por tecido roxo. Nunca tinha visto alguém morto e ali descobri o quão era cruel. A princípio era igual dormir um sono profundo, onde, apesar do cheiro forte das flores e velas queimando e o som das pessoas falando, não conseguia acordar. Mas o rosto triste e olhos vermelhos dos visitantes, principalmente adultos, mostravam a gravidade do ocorrido. Retirei-me e na porta dos fundos, de cócoras, encontrei papai, que me perguntou em lágrimas silenciosas, se eu já havia visto titio Cilmar e eu, acenando que sim, perguntei-lhe se ele teria que ir embora para sempre...

— Foi o adeus daquele homem tão bom! — Insinuei.

— Que você jamais se esquecerá. — Afirmou o senhor Frene.

— Se é verdade que o senhor me protegia na Terra, por que então não salvou meu tio?

— Sinto muito! — Se lamentou o homem, tão triste quanto eu. — Não sou Deus!

— Ainda há muita coisa pro senhor me mostrar?

— Se for lhe mostrar tudo, gastarei quatorze anos!

— Mesmo assim, gostaria que me mostrasse! Pelo menos o mais importante!

— Por exemplo: quando nasceu seu irmão caçula!

— O Paulinho? Eu tinha cinco anos! Mamãe sofreu muito no parto!

— É verdade! Seu irmão nasceu em casa, pois vocês moravam no sítio e não conseguiram carro, pra levarem sua mãe ao hospital!

— Eu nem sabia que teria mais um irmão; de repente, mamãe estava mal, sofrendo muito e nos fazendo, sem entender os segredos da vida, sofrer também e então, algum tempo depois, apareceu tal atrevido.

— Que isso Regis? Seu irmão gosta muito de você!

— Eu sei! — Concordei rindo. — Eu também o amo muito! Ele é meu mais fiel companheiro.

— É tal anjinho que chegou sem avisar.

— Acho que na minha família, todos nós nascemos em casa!

Após regular a máquina, o senhor Frene, disse:

— Veja isto:

Eu, ainda aos cinco anos morava no sítio. Estava na cozinha de casa ao lado de mamãe e vovô, seu pai. Homem magro, alto, com lá seus cinquenta anos de idade, muito bom e gentil. Lá fora chovia muito granizo. Eram mais ou menos duas horas da tarde e vovô pediu, acho até que foi de brincadeira, para que eu fosse lá fora, apanhar algumas pedrinhas de gelo. Sem sequer pensar ou pedir permissão à mamãe, saí correndo para o quintal, me escorregando no lodo verde acumulado, caindo e me sujando todo de barro.

Enquanto revia a cena, ao lado do senhor Frene, eu ria exageradamente, de tal divertida tragédia, pela qual passara.

A seguir, revi, quando, ainda aos cinco anos, junto com Sandra, uma amiguinha de sitio vizinho, brincávamos de pular sobre uma gigantesca árvore caída, em nossas terras, no sítio.


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