O lado negro escrita por The Escapist


Capítulo 1
01


Notas iniciais do capítulo

Pois muito que bem, essa história foi escrita para o desafio dos verbos de pensamento da galera da Liga dos Betas do Nyah! E foi realmente desafiante. É a minha primeira vez como terrorista, quer dizer, escrevendo terror, e para escrever esse conto, eu me inspirei nas obras do meu amado mestre Stephen King, especialmente em A metade negra e O Iluminado. Teve também a questão do limite de palavras. Como a ideia foi meio que reciclada, eu precisei adequá-la ao desafio, que estipulava um limite de 8 mil palavras, então, algumas coisas saíram meio corridas. O capítulo não foi betado, eu fiz duas revisões, mas se ainda tiver algum erro muito gritante, me avisem.Em linhas gerais, foi muito bom escrever essa história, e o resultado me agradou bastante. Espero que, quem por ventura vier a ler, também goste.



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Don't get too close
It's dark inside
It's where my demons hide

Luís se virou na cama e percebeu que o lugar ao seu lado já estava vazio. Tornou a virar-se e pegou o relógio em cima do criado mudo. Sete e meia da manhã. Clarice já estava de pé, o que explicava a cama vazia. A noite havia passado tão rápido, pensou, ao criar coragem para levantar e ir até o banheiro e se preparar para mais um longo dia de trabalho.

Mas aquele não era um dia qualquer. Era seu aniversário. Quarenta anos era uma idade significativa, de acordo com a sabedoria popular a vida começava aos quarenta. Luís agradeceria se isso fosse verdade, achava mesmo que a sua vida estava precisando de um novo começo, de preferência um em que ele pudesse pagar as contas da família sem precisar conseguir uma úlcera de tanto estresse no trabalho. Estava se barbeando enquanto pensava essas coisas, e num descuido, cortou o rosto com a lâmina. Um filete de sangue pingou no mármore branco da pia.

Luís pensou que fosse ter uma vertigem, odiava ver sangue, mas a sensação ruim passou tão logo ele abriu a torneira e deixou a água correr. Limpou o corte no rosto e colocou um band-aid. Terminou de se arrumar e saiu do quarto em direção à cozinha.

Ainda no corredor pode ouvir as vozes dos filhos, ou melhor, Camila estava conversando e Filipe concordava com monossílabos mecânicos.

— Bom dia, pessoal — disse ele e foi direto beijar a cabeça das crianças.

— Bom dia, papai — Camila respondeu, enquanto Filipe apenas deu um sorriso discreto e continuou dividindo a atenção entre o café da manhã e o tablet.

Luís respirou fundo, aquela mania que o filho de treze anos tinha de passar o tempo todo com aquele treco era irritante, mas ele não quis começar uma discussão com Filipe logo no dia do seu aniversário.

— O que houve com o seu rosto, pai? — a garota perguntou ao reparar no curativo que ele improvisara. Clarice também desviou a atenção da panela no fogão para verificar.

— Não foi nada, querida — ele assegurou, dirigindo-se já para a esposa que o olhou com olhos arregalados de preocupação. — Eu me cortei com a lâmina de barbear, só isso. — Clarice sorriu, em dias normais poderia começar uma pequena discussão sobre a falta de atenção do marido, mas era o aniversário dele, deveria dar um desconto.

— Ei, crianças, vocês sabem que dia é hoje, não é? — Luís apenas esperou Filipe e Camila deixassem seus copos vazios na mesa e corressem para o abraço, fingindo não saber que aquilo havia sido previamente combinado entre a mãe e as crianças.

A filha foi mais efusiva. A espontaneidade de seus dez anos deixava-a mais à vontade para pular nos braços do pai e beijá-lo na face. Já Filipe preferiu um abraço mais discreto, quase sem contato físico. A adolescência estava afastando pai e filho, isso já era um fato que Luís não poderia negar nem mesmo para si. Depois foi a vez de Clarice beijar o marido. Deu um selinho no lábios dele, riu do jeito encabulado de Luís, passou a mão pelo rosto dele e reparou novamente no corte, então seu sorriso esmaeceu, uma pequena ruga se formou em sua testa. Tão descuidado... O que seria de Luís se ela não estivesse ali o tempo todo tomando conta, prestando atenção?

Luís sentou à mesa para tomar o desjejum. Serviu uma xícara de café, pegou um pãozinho e passou um pouco de manteiga. Havia também a tapioca com leite de coco e salada de frutas, tudo recém preparado com o capricho costumeiro de Clarice. Comia em silêncio, já concentrado no dia de trabalho que teria pela frente, e que certamente não seria fácil. Teria aulas no segundo e terceiro anos do São Mateus, mais duas no primeiro ano do Maria Auxiliadora e ainda algumas provas para corrigir.

Ele já estava terminando a refeição matutina quando Clarice apareceu segurando uma caixa embrulhada em papel de presente.

— Feliz aniversário! — ela falou, entregou a caixa e aguardou a reação de Luís. Ele não costumava ser uma pessoa efusiva, não demonstrava os sentimentos com facilidade, às vezes era até taciturno demais. O comportamento fechado do marido era razão para que ficasse apreensiva e ansiosa. Luís recebeu o presente, enquanto ainda mastigava um pouco da tapioca.

— Obrigado. Não precisava, Clarice — ele falou, passando a língua nos dentes para retirar os farelos de comida, gesto que rendeu um daqueles olhares tortos de sobrancelha erguida da esposa.

O primeiro apagão aconteceu no momento que rasgou o papel de embrulho que Clarice havia feito com tanto esmero.

— Dizem que dá sorte rasgar o papel — disse e sorriu, embora fosse um sorriso sem vontade, quase forçado. Os esforços de Clarice para que as coisas parecessem boas eram louváveis, o café da manhã, a amabilidade com a qual ela falava, o presente, tudo. Mas havia algo que colocava em xeque a solidez do casamento.

Luís viu o desenho da maçã mordida, e então aconteceu. Por um milésimo de segundo ele não estava mais na cozinha, não tinha consciência da família ao redor, tampouco do presente, e a tapioca com leite de coco não era nada mais que uma imagem distorcida em algum recôndito da mente. Não era mais ele. Havia uma voz fria, um sorriso sardônico e um par de olhos negros transbordantes de crueldade.

Livre-se dela.

— Luís? — A voz de Clarice o trouxe de volta à realidade, mas ao olhar para ela incialmente, era como se estivesse olhando para uma completa estranha.

Livre-se dela.

— Luís, está tudo bem? — Ele piscou os olhos e balançou a cabeça, precisa desanuviar os pensamentos nublados. Então sorriu e terminou de rasgar o papel.

Não precisou fingir surpresa quando lançou os olhos sobre o MacBook Air com tela de retina. As informações técnicas do produto estavam escritas na caixa, Luís não as saberia por si, estava certo de que não saberia diferenciar um computador com tela de retina de um com qualquer outra tela. Ele nem gostava de usar computador, na verdade. Mas já tinha muitos alunos adolescentes fissurados em tecnologia que passavam a maior das aulas brincando com seus Iphones e IPads. Por isso não era tão difícil para ele adivinhar que aquela máquina que acabara de ganhar de presente era um item que não cabia no orçamento da família. O que ele não conseguia explicar era como Clarisse havia esquecido isso.

— Vai ajudar você a escrever seu livro — disse ela. Ele virou a cabeça para encará-la e dessa vez não era como se estivesse olhando para uma estranha, mas como se a visse como ela era realmente, como a mulher que o sufocava, que manipulava, que queria tomar todas as decisões por ele, que o transformara em um fracassado. Mas esses não eram seus pensamentos, não poderiam ser. Assustado, Luís balançou novamente a cabeça.

— Onde você conseguiu dinheiro para comprar esse computador? — perguntou. Podia não saber muito sobre computadores, mas estava certo de que aquele MacBook custava uns cinco mil reais ou mais. Dinheiro do qual eles não dispunham. Ou será que Clarice havia esquecido que ele trabalhava em duas escolas diferentes, que ainda tinham o financiamento da casa, as prestações do carro e o colégio dos filhos para pagar?

Clarice abriu a boca, mas não tinha palavras. Não estava preparada para lidar com a ingratidão do marido. Não quando estava tão disposta a fazer com que aquele casamento funcionasse. Não quando o estava ajudando, sendo compreensiva, deixando ele livre e dando apoio para que ele pudesse, finalmente, escrever o maldito livro que tanto sonhava.

— Por que você quer discutir agora?

— Eu não ‘discutindo, mas você não deveria ter gasto tanto dinheiro com um computador.

— Você precisava de uma computador novo, Luís. Há meses!

— Não um computador de cinco mil reais!

— Por que você ‘ preocupado com o dinheiro?

— Por que eu ‘... — Luís prendeu a respiração, contou até cem mentalmente, soltou o ar. Tanto esforço para ficar calmo, porém foi em vão. Aquela sensação de ser possuído por pensamentos que não eram os seus o invadiu novamente. — Porque sou eu quem vai pagar, porra!

Ele nunca havia falado assim antes. Nunca havia sequer gritado com ela. Bem, eles às vezes discutiam, tinham brigas comuns de casal, mas aquele olhar duro, narinas dilatadas e respiração entrecortada pelo nervosismo não era uma coisa habitual entre eles.

Houve mais gritos e acusações de ambas as partes. Clarice acabou praticamente obrigada a contar que havia gasto o limite do cartão de crédito para parcelar o valor de oito mil reais. Os três mil excedentes da estimativa que havia feito, não deixaram Luís mais feliz. Ele não se conformava, não aceitava que sua esposa achasse normal gastar aquele dinheiro todo com apenas um objeto. Aquilo era mais do que ele ganhava durante um mês inteiro de trabalho.

— Como você pode não entender isso, pelo amor de Deus?

As crianças estavam quietas, assustadas com a repentina briga. Era certamente a primeira vez que viam o pai elevar tanto o tom de voz, embora já estivessem acostumado com o jeito pão-duro dele. Clarice tinha os olhos cheios de água, mas controlou as lágrimas. Não as deixaria cair, não daria esse prazer ao marido.

— Eu pensei que estaria te fazendo um bem.

— Pensou? Você deveria me conhecer melhor então. — Luís estava vermelho, com os batimentos cardíacos acelerados; ainda era cedo e já tinha manchas de suor debaixo dos braços. — É melhor nós irmos para a escola — disse aos filhos. Filipe e Camila apanharam suas mochilas e saíram em direção à porta. — Acho que você deveria devolver esse negócio.

— Eu não vou devolver porcaria nenhuma. — De repente Luís foi acometido por uma vontade de esbofetear a mulher.

Meu Deus, o que ‘tá acontecendo comigo? Por que eu ‘tô pensando essas coisas?

— Nós conversaremos mais tarde.

Tirou o Fiat Palio cinza ano 2008 da garagem. O carro havia sido financiado em sessenta vezes por um banco. Ainda faltavam quinze prestações.

Os dois filhos iam calados. Filipe sem largar o brinquedo tecnológico, e Camila também estava entretida com o celular. Luís sentiu-se de repente envergonhado pela maneira rude como havia tratado sua esposa na frente deles. Que tipo de pai faria aquilo? Que tipo de exemplo estava dando para eles? Olhou pelo espelho retrovisor e viu sua filha teclando no celular, ao mesmo tempo sorria e balançava a cabeça. Sentado no banco da frente, Filipe sequer piscava os olhos, os dedos deslizavam incessantemente pela tela touch do aparelho. Fosse lá o que estivessem fazendo, deveria ser mais importante do que as desculpas que ele pudesse proferir.

Será que a única coisa que você sabe fazer é reclamar?

Deixou os garotos no Colégio São Mateus e seguiu caminho para o Maria Auxiliadora, onde daria as primeiras aulas. Entrou na sala cinco minutos atrasado e encontrou uma verdadeira zona, por isso antes de começar a aula, precisou conter os pré-adolescentes ávidos por fofocas.

— Abram a apostilha na página trinta e nove, pessoal — falou. Os alunos que estavam sentados na frente obedeceram imediatamente, mas os que estava mais atrás ainda conversavam. — Sem conversas paralelas, por favor, gente.

O assunto daquela aula era Orações Subordinadas. Apesar de o professor ser incisivo, pedir repetidamente por silêncio e atenção, as crianças permaneciam dispersas; conversas paralelas rolando pela sala e os malditos celulares trocando mensagens pelo Whatsap. Luís não fazia ideia do que fosse whatsap, mas os próprios filhos passavam o dia inteiro conectados naquilo. No seu tempo usavam pedacinhos de papel, os quais amassavam para atirar no ventilador depois.

— Todo mundo guardando o celular, hein?

O desgaste durante aquela aula foi maior do que geralmente costumava ser. Além da dificuldade em prender a atenção dos alunos, ele ainda estava se sentindo estranho. Como se ouvisse uma voz que não era a sua e pensamentos que não eram seus. As coisas que ele ouvia dessa voz estranha eram ideias que ele preferiria suprimir, algo como verdades inconvenientes que ninguém gostaria de expor. Mas havia também uma frase recorrente.

Livre-se dela. A culpa é dela.

A quem a voz se referia e qual era a culpa, Luís não sabia. Ou uma parte dele não admitiria saber. Por mais de uma vez ele teve aquela mesma sensação que tivera pela manhã, como se saísse do ar por alguns segundos. Quando voltava desses apagões, encontrava os alunos olhando para ele de olhos arregalados, como se tivesse visto alguma assombração. Luís lembrava-se apenas de estar explicando a matéria.

— Na próxima aula nós iremos fazer uma atividade avaliativa, tudo bem? — É claro que ninguém ficou contente, mas não era de se esperar uma reação diferente. Alunos são alunos desde sempre. Ninguém pode ser sempre feliz. — Vejo vocês na quinta-feira.

Os alunos teriam um intervalo de cinco minutos antes que o próximo professor chegasse, por isso começaram a sair da sala. Luís ficou juntando o material. Apagou o quadro, guardou os pinceis e o apagador na bolsa, fechou o livro e o diário de classe e colocou os dois na pasta. Terminou de arrumar as coisas e deixou a sala. Encontrou o colega Maurício, professor de Matemática. Os dois se cumprimentaram brevemente, comentaram alguma coisa sobre a reunião que estava marcada para dali a dois dias, e então ele seguiu para a sala dos professores onde ficou pelas duas horas seguintes corrigindo provas e fazendo planos de aulas.

Almoçou em um restaurante self-service perto da escola e depois foi para o São Mateus. A aula no segundo ano aconteceu sem qualquer incidente além dos normais. Estava trabalhando tópicos de redação na turma e os alunos até estavam bastante participativos. Talvez o tema da aula ajudasse, já que o professor os instigava a usar a criatividade e não ficavam presos àquela rigidez da gramática normativa. Era obviamente mais agradável dar uma aula da qual os alunos demonstravam interesse em participar do que ter que ficar chamando a atenção para que eles não dormissem.

As duas últimas aulas do dia eram no terceiro ano. E as coisas voltaram a desandar. Já estava começando a considerar aqueles pensamentos e sensações estranhas de mais cedo como coisas da sua cabeça, talvez decorrentes do fato de estar fazendo quarenta anos. Havia, afinal de contas, certo simbolismo nessa idade. Talvez aquela voz que ele ouvira fosse alguma manifestação do seu subconsciente ou qualquer coisa que poderia ser explicada pela Psicologia.

Aquela turma de pré-vestibulandos era a mais difícil. Apesar de estarem a poucos meses do Exame Nacional do Ensino Médio, que os levaria para a universidade, aqueles garotos só pensavam em se divertir. Com exceção de dois ou três mais aplicados, que demonstravam interesse e concentração na aula, a grande maioria da turma era um sacrilégio. Conversavam, brincavam, usavam o telefone. Era deprimente. Os pais daqueles meninos pagavam mensalidades caríssimas para que eles pudessem estar naquela escola e eles não demonstravam o mínimo de interesse.

— Pessoal, eu já pedi para vocês pararem com a conversa. Por favor.

Diante do pedindo mais enérgico, a conversação diminui um pouco, mas tão logo o professor virou-se novamente para o quadro para fazer anotações, os sussurros retornaram. Luís se impacientou e a voz em sua cabeça voltou a falar com ele. Chamando-o de fraco, dizendo para que ele tomasse uma atitude, perguntando por que ele deixava que as pessoas o humilhassem, dizendo que ele deveria se sentir envergonhado por ser um fracasso.

Como você é ridículo! Nem essas criancinhas estúpidas te respeitam.

Alguém havia contado uma piada, a sala inteira ria alto por uma razão que Luís desconhecia.

Devem estar rindo de você. O palhaço da turma.

— Calem essas malditas bocas antes que torça os pescoços de vocês com as minhas próprias mãos. — Luís não teve consciência das palavras que saíram de sua boca. Não eram suas palavras, tampouco foi a sua voz que as proferiu. Ele piscou os olhos, balançou a cabeça, confuso. Os alunos agora estavam calados, olhando assustados para o professor.

Luís tentou retomar a aula, mas o que viu escrito no quadro o deixou paralisado. Aquilo explicava o motivo do silêncio repentino da turma e as caras assustadas dos estudantes. O quadro branco estava todo preenchido com uma frase escrita com o pincel preto, repetida várias e várias vezes.

Matar todos eles. Matar todos eles. Matar todos eles.

Jesus Cristo!

Luís passou a mão nos cabelos, descendo pelo rosto. Não havia dúvidas que a letra no quadro era sua e ele ainda segurava o pincel, mas não havia a lembrança de ter escrito aquelas palavras. Mal conseguiu abrir a boca para dispensar a turma, não tinha mais como continuar aquela aula, tão desestabilizado estava. Felizmente faltava apenas dez minutos e os alunos não reclamaram por terminarem antes do horário. Num instante esvaziaram a sala.

Tão logo ficou sozinho, Luís guardou rapidamente o material e foi embora sem sequer passar na secretaria. Ainda tinha trabalhos para corrigir e planos de aula para preparar, mas sua cabeça não estava num estado propício ao trabalho. Contudo, não conseguiu ir direto para casa.

X———X——— X———X

Chegou em casa já à noite, por volta das dezenove horas. Entrou, guardou o material e foi ao banheiro tomar um banho rápido. Encontrou os filhos já sentados à mesa, enquanto Clarice servia a comida.

O jantar aconteceu em meio a um silêncio indigesto. Filipe e Camila comiam calados, imersos em seus mundos digitais, enquanto os pais remoíam as mágoas. O fato de ser aniversário de Luís não mudava nada. Estavam em meio a uma crise sem precedentes nos quinze anos de casados. E pensar que tudo havia começado por causa de um maldito computador!

Depois do jantar, enquanto a esposa colocava a cozinha em ordem e os filhos assistiam televisão, Luís foi sentar-se à escrivaninha que lhe fazia as vezes de escritório. Ficava no canto da sala, perto da estante de livros. O computador velho de cinco anos atrás estava desligado. Apertou o botão e esperou enquanto a máquina inicializava. Então viu o notebook que ganhara de presente ao lado. Clarice o havia tirado da caixa e deixado ali, provavelmente de propósito. Abriu o computador e apertou o botão de ligar. Quase instantaneamente a logomarca da Apple surgiu na tela e em poucos segundos a máquina estava pronta para o uso. Enquanto isso, o desenho das janelinhas coloridas ia se formando na tela do micro antigo.

Abriu o editor de texto do Macbook. Começou a digitar palavras aleatoriamente. As teclas eram macias agradáveis. Quando o computador velho deu sinais de vida, Luís não lhe deu maior atenção e continuou escrevendo. Quando parou, a casa estava em silêncio, a televisão já havia sido desligada e as crianças não estavam mais na sala. Estranho, poderia jurar que não passara cinco minutos desde que sentara naquela cadeira, mas quando olhou para o relógio viu que passava de meia-noite. Quase cinco horas haviam passado sem que ele percebesse? Não seria assustador se tivesse pegado no sono ali mesmo em frente ao computador. Não era uma coisa rara de acontecer. Às vezes ficava até tarde tentando escrever algo e adormecia, mas não era esse o caso. De maneira alguma. Luís desviou os olhos para o editor de texto aberto na tela do notebook e para seu horror, tinha escrito seis páginas e meia.

Meu Deus, seis páginas, mais de três mil e quinhentas palavras! Aquilo era mais do que J. R. R. Tolkien escreveria em um dia. E ele havia feito em menos de cinco horas. Era impossível. Uma sensação de desespero tomou conta dele. O que estava acontecendo com ele e por que estava acontecendo com ele? Perguntava-se, mas as respostas que desejava não estavam em lugar nenhum.

Levantou-se, ainda atordoado com o fato de ter perdido as últimas horas da vida, e foi para o quarto. Clarice estava deitada, virada de costas para o lado dele. Luís se trocou e deitou-se na cama. Ficou ali de costas, mirando o teto e ouvindo a respiração regular da esposa.

— Eu sinto muito por hoje de manhã — disse e esperou. Algo lhe dizia que Clarice não estava dormindo ainda. Demorou mais ou menos um minuto para que ela falasse.

— Eu tentei falar com você mais cedo, mas você simplesmente me ignorou. — A voz dela tremia e só então Luís percebeu que a esposa estava chorando.

— Clarice... O que aconteceu? Quero dizer, o que aconteceu desde que eu terminei de jantar e sentei na escrivaninha? O que eu fiz ou falei, ou... — Ela vai pensar que eu ‘tô ficando maluco. Mas o que importa? Não está tão longe assim da verdade. Eu realmente ‘tô ficando maluco.

Ela ficou sentada, acendeu a luz do abajur e virou-se para ele; passou as mãos no cabelo e fungou.

— Você ficou lá sentado, olhando para a tela, digitando e nem sequer olhou para mim! E quando eu tentei chegar perto...

— O que?

— Você me olhou de uma maneira assustadora, como se não fosse você. — A mulher o encarava com olhos suplicantes, como se implorasse por uma resposta. Luís estava certo de nunca tê-la visto tão assustada antes. — O que há de errado com você?

— Eu não sei — balbuciou. — Eu não sei o que ‘ acontecendo comigo, Clarice, eu comecei a ouvir essa voz estranha na minha cabeça e esquecer o que estava fazendo. Eu sinto muito — ele estava chorando e foi surpreendido pelos braços da esposa ao redor do seu pescoço.

— Vai ficar tudo bem. Nós vamos procurar um desses médicos de cabeça e você vai ficar bem, eu prometo.

Ela acha que você ‘tá maluco, ela quer levar você a um desses médicos de loucos e vai te trancar em algum hospício. É isso que ela vai fazer. Mas você não vai deixar, não é? Você vai mesmo deixá-la foder ainda mais com a sua vida? Porque essa é a única coisa que ela sabe fazer, foder com a sua vida, desde o começo.

Naquela mesma noite, depois que as lágrimas cessaram, eles fizeram amor. Clarice estava assustada com o comportamento anormal do marido, aquele dia inteiro havia sido tenso. Havia tentado falar com ele à tarde, mas quando telefonou para a escola, Luís já havia ido embora, e quando tentou o celular encontrou-o desligado ou fora de área. Quando ele chegou em casa, já na hora do jantar, ela pôde perceber que ele havia bebido, o cheiro de álcool era indisfarçável, mas o marido agia como se não lembrasse de nada.

Estava claro que havia um problema sério com o marido, mas quando se entregou a ele naquela noite, o medo e a apreensão foram superados por um prazer até então desconhecido. Ela gemia, surpreendia pela maneira selvagem como ele a tomava, e pelas sensações que aquilo lhe causava. Arranhou as costas dele com tanta força que temeu tê-lo feito sangrar. Mas Luís não deu mostras de se incomodar. Enquanto a esposa se sentia completa pela união física tão intensa, ele nunca havia estado tão distante dela.

No momento que gozou dentro dela, Luís não lembrava sequer de ter começado a beijá-la. Quando voltou a si, ainda deitado sobre o corpo da esposa, percebeu que tinha as mãos fechadas em volta do pescoço dela, como se estivesse prestes a sufocá-la. Afastou as mãos rapidamente e rolou para o lado. Clarice grunhiu ao se ver livre do peso do corpo do marido sobre o seu. Ainda ofegante, o buscou novamente para junto de si, mas contentou-se em deitar a cabeça sobre o ombro dele e passar o braço em volta do corpo, ainda sentindo a sua respiração irregular.

Luís estava assustado, temia por algo que sequer conhecia, mas estava claro para ele que não detinha mais o controle sobre seus próprios atos. Fosse o que fosse que estivesse controlando sua mente, não gostava da sua esposa e a culpava por alguma coisa. Agora ela dormia tranquila em seus braços, confiante de que aquele era o lugar mais seguro onde poderia estar.

X———X——— X———X

Um mês depois

Luís estava sentado em frente ao computador. O mesmo que havia ganhado de aniversário. Eles haviam conversado e chegaram à conclusão de que, com alguns ajustes, os trezentos reais da parcela do cartão de crédito não seria um problema tão grave no orçamento. Além disso, depois de usar aquela máquina tão melhor do que a que possuía antes, Luís teve que reconhecer que fora um bom investimento.

Mas a sua preocupação imediata não era com as contas. As coisas não haviam melhorado desde o dia do aniversário, os apagões continuavam acontecendo, com uma frequência maior agora e isso já estava refletindo em sua vida profissional. Na semana passada teve uma reunião com o diretor do São Mateus e o tema foram as reclamações dos pais dos alunos que queixaram-se que os filhos relataram um comportamento atípico do professor de Língua Portuguesa. Quando o diretor o questionou sobre ir dar aula embriagado, Luís negou veementemente a acusação.

— Isso deve ter sido uma brincadeira das crianças — dissera ele ao diretor. — Embora eu me assuste com a capacidade que eles tem de fazer brincadeiras inconsequentes — acrescentou. O diretor findou concordando, Luís gozava de uma boa reputação na escola, já era professor há dez anos e tinha credibilidade. O diretor ainda disse que ele poderia pedir para investigar a origem das fofocas, mas Luís preferiu que as coisas fossem tratadas como a bobagem que era, não deveriam dar muita importância ao que não tinha importância.

Agora, enquanto tamborilava com os dedos na mesa de madeira e encarava a tela do computador, ele não lembrava do que havia dito naquela conversa com o diretor. Também não lembrava-se de ter ido trabalhar alguma vez embriagado, nem mesmo ter se embriagado alguma vez em sua vida, mas lembrava do cheiro de álcool que estava impregnado em suas roupas na noite passada quando ele chegou em casa depois das dez da noite. E se havia acontecido uma vez, o que impedia de ter acontecido outras vezes?

Mas havia algo ainda mais perturbador em meio a toda a loucura na qual se transformara sua vida. O arquivo de texto que havia criado na noite do seu aniversário aumentava a cada dia. Tinha agora trezentas páginas. Trezentas páginas!

Luís sempre gostara de escrever, desde jovem, quando ainda estava no colégio, destacava-se nas aulas de Redação. Decidiu fazer faculdade de Letras e sempre alimentou o sonho de tornar-se escritor profissional. Conseguiu publicar alguns contos e poesias em antologias de pequena expressão, mas aos poucos sua paixão teve que ser substituída pela necessidade de cuidar da família, e era muito difícil para um escritor iniciante viver apenas de sua arte.

Não havia desistido do sonho de ser um autor publicado, talvez um best-seller, mas com uma jornada de trabalho de quarenta horas semanais, não lhe sobrava muito tempo para se dedicar à escrita. No máximo, rabiscava algumas linhas, fazia algumas observações, acrescentava algo no rascunho de um romance que havia começado a escrever alguns anos antes.

Agora tinha trezentas páginas escritas em um tempo recorde. E embora não tivesse a mínima ideia de ter escrito qualquer uma daquelas palavras, a qualidade da escrita era perceptível. Lia e relia vários trechos, cada vez mais intrigado com aquele mistério. Estava sendo dominado por uma espécie de alter ego sádico, alcoólatra e com talento literário? A ideia era risível.

— Hora do jantar, pessoal. — A voz veio da cozinha. — Eu não vou chamar outra vez. — E mesmo dizendo isso, Clarice precisou chamá-los ainda mais de duas vezes até que o marido e os filhos foram sentar à mesa para a refeição.

Sentou à mesa da cozinha junto com os filhos, enquanto a esposa servia a comida. Era quase a rotina normal, só que agora Luís sempre estava preocupado com a possibilidade de ter feito alguma coisa da qual não lembrasse. Olhou para Clarice e reparou na mancha arroxeada que ela tinha no pescoço. Mesmo a blusa de gola conseguia esconder. Ele havia feito aquilo — não lembrava de ter feito, mas sabia que o fizera —, mas não via a marca como uma chupada carinhosa, afinal, ele nunca fora adepto à pratica de sexo com selvageria. Preferia ser carinhoso, talvez pudesse ser até um pouco chato, mas não sentia prazer em machucar a esposa. Aparentemente, seu lado negro pensava diferente.

— Filipe, guarda esse tablet um instante, por favor — disse, voltando a atenção para o filho mais velho que se se dividia em jantar e jogar no aparelho eletrônico. O garoto não obedeceu ao pai de imediato. — Você ouviu o que eu falei ou não? Olha para mim, Filipe! — Filipe olhou e não gostou do que viu. A expressão no rosto do seu pai era tão assustadora que ele sentiu o sangue gelando. — Eu mandei você guardar essa porcaria, não mandei? Então por que você ainda não guardou?

Luís se levantou e foi até o filho. Filipe se encolheu, assustado. O pai arrebatou o seu brinquedo das suas mãos e o atirou ao chão. O medo do garoto foi substituído por raiva.

— Por que você fez isso? Você ‘maluco? — Luís avançou para o filho. Filipe levantou-se da cadeira e tentou fugir, mas não a tempo de impedir que seu pai pegasse em sua orelha e puxasse. E ele puxou com força suficiente para assustar o menino.

— Maluco, ham? Quem você pensa que é para chamar o seu pai de maluco, hein, seu moleque atrevido? Que tal se eu te der uma liçãozinha, hein? Você ‘tá merecendo, não tá, não? Talvez você aprenda a controlar essa boca suja. — Luís falava e puxava mais a orelha já vermelha do filho, enquanto Filipe chorava, apavorado de medo.

— Desculpa, papai, eu não quis te chamar de maluco.

— Eu não quero as suas desculpas, seu desgraçadozinho. — Ele deu um puxão mais forte que fez o garoto gemer. — Pare de choramingar feito uma mulherzinha, seu merda. — Deu um empurrão em Filipe, fazendo-o escorregar e cair. Estava desabotoando o cinto quando Clarice se pôs no meio.

— Luís, pelo amor de Deus, para com isso.

— Não se meta nisso, esse assunto é entre eu e esse bostinha.

Clarice tentou impedi-lo de bater no filho, então a fúria virou-se contra ela. Ao ver a mãe ser agredida, Filipe enfureceu-se e atacou o pai e não evitou apanhar também. Camila estava chorando, gritando, implorando para que eles parassem, mas ninguém estava prestando atenção à garota. O pai estava batendo com o cinto no seu irmão, enquanto a mãe tentava, em vão, impedi-lo.

Camila estava com muito medo, mas de alguma forma sabia que aquela pessoa que estava agredindo seu irmão, não era seu pai. Precisou buscar toda a coragem que tinha dentro de si para fazer alguma coisa, mas não podia ficar vendo aquilo acontecer e não fazer nada. A garota pegou a jarra de suco e segurou. Não sabia se conseguiria acertar, e algo dentro de si dizia que era errado atirar algo em seu pai, mas também era errado que ele batesse na família. Então ela mirou e tentou imprimir força suficiente para lançar a jarra na direção da cabeça do pai.

Não o acertou com força bastante para fazê-lo desmaiar, a jarra sequer batera na testa dele. Acertou-o no peito e depois caiu e espatifou-se no chão, mas foi o bastante para desviar a atenção de Luís. Ele parou o braço que descia para acertar o filho mais uma vez no ar e olhou para a garota chorosa à sua frente. Camila tremia e soluçava, temeu que seu pai viesse lhe bater também.

— Camila... — ele falou, com uma voz quase inaudível, olhando para a filha com os olhos perdidos. — Por que você está chorando, filha?

— Você tem que ir embora, papai. — Luís sentia uma agonia crescente no peito ao olhar para o rosto da filha banhado de lágrimas. Ele se virou e se deu conta de Filipe que ainda estava no chão. O garoto tinha os olhos vermelhos de chorar e um filete de sangue escorria de um corte na testa.

Luís deu um passo em direção ao filho, mas antes de chegar até ele, Clarice tomou a frente e protegeu o corpo do garoto com o seu.

— Fica longe dele. — Ele andou para trás, titubeante, olhando com a expressão de quem não entendia nada. E realmente não entendia. Não sabia por que sua filha chorava, por que seu filho estava machucado e por que eles estavam com tanto medo. No entanto, estava certo de que era ele o causador de todo aquele sofrimento. A dor da inconsciência de seus atos dilacerava o seu peito.

Vagou pela cidade, sem rumo, a noite inteira. Como já estava se tornando praxe, quando acordou sentado numa mesa de um bar fétido, não lembrava-se de ter chegado lá. Tentou imaginar quantas outras coisas das quais não lembrava teria feito. A lista provavelmente já estava enorme.

Decidiu que não voltaria para casa. A imagem de Camila chorando copiosamente e lhe dizendo que ele deveria ir embora não saía de sua mente, isto é, quando ainda era a sua mente no comando. Amava os filhos, a família, faria qualquer coisa por eles, mas naquele momento, estava claro que ele era o perigo. Se a maneira de mantê-los seguro era ficando longe, ele faria esse sacrifício.

Apesar da decisão, uma força mais poderosa que a sua vontade o impelia a voltar. Era aquela voz lhe dizendo que eles não podiam expulsá-lo de sua própria casa, que a casa era dele, que ele havia trabalhado duro para comprar a porcaria da casa, portanto ele tinha todo o direito de ficar lá. Era ele quem dava o sangue, dia após dia, para que não faltasse nada à família. Foi ele quem abdicou de todos os sonhos por aquela família. Ele quem desistira de tudo. E o que ganhava em troca? Ingratidão apenas.

Ingratidão é tudo que você recebe. Sua esposa acha que você é um fraco, seus filhos não te respeitam. Ninguém te respeita. E sabe por quê? Porque você não merece, você não se impõe, você um completo perdedor.

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Ele agora era dois homens vivendo no mesmo corpo. A cada dia, o lado sã enfraquecia um pouco mais e a metade negra o dominava. Luís lutava com todas as forças que lhe restavam, mas elas não eram suficientes. Bebia todos os dias, faltava ao trabalho, voltava para casa tarde da noite e forçava a mulher a se deitar com ele. A tomava a força. No dia seguinte, via os hematomas no corpo dela e se perguntava por que Clarice não ia à polícia, por que ela não buscava ajuda? Ele mesmo conhecia a resposta. Ela estava com medo. Todos eles estavam. A família havia se tornado refém do terror.

A situação nas duas escolas onde dava aulas tornou-se insustentável. Houve diversas conversas com os diretores, com pais de alunos, com os próprios alunos. Luís não era capaz de lembrar o teor dessas conversas, lembrava-se apenas de dirigir-se a elas, mas então era o seu outro lado quem tomava a frente e resolvia as questões à sua própria maneira — maneira essa que lhe rendeu duas demissões por justa causa.

Estava desempregado há dois meses, havia contas empilhadas em cima da mesa. Estavam usando o dinheiro da poupança para as despesas mais urgentes, mas os recursos eram poucos e a fonte secaria rápido. Ele não pode requerer o seguro desemprego, já que o afastamento do trabalho deu-se por causa justificada. Cada vez que saía de casa para tentar reaver o emprego, ou mesmo procurar outro, ia parar num lugar completamente distinto daquele aonde planejara ir inicialmente.

Definitivamente, o seu lado negro não estava disposto a suar a camisa. Agora passava a maior parte do dia diante do computador. O arquivo de texto começado meses antes — no início de toda essa insanidade — crescia consideravelmente, embora não tão rápido quanto no início. Nos, cada vez mais raros, momentos de lucidez, Luís olhava para o documento e se questionava se ainda faltava muito para terminá-lo — fosse qual fosse a intenção do seu alter ego, aquele rascunho parecia estar intimamente ligado à sua existência.

Por sorte — ou talvez por que Clarice implorou — as crianças não perderam a bolsa na escola, continuavam estudando, o que era bom, principalmente para que ficassem mais tempo longe do pai. Camila e Filipe agora saíam da escola e iam para a casa da avó. Às vezes dormiam lá, e quando o pai — o outro — ficava muito irritado com isso, Clarice se oferecia como vítima do seu sadismo. Além disso, a cidade inteira já o intitulara como bêbado ou louco. Ou ambos.

O que pode ser pior do que ser inimigo de si mesmo? Luís lutava constantemente contra o monstro em sua cabeça, mas não era uma batalha justa. Passou a ficar mais tempo em frente ao computador com o arquivo de texto aberto e criou um segundo arquivo, o qual intitulou “memórias”. Resolveu também escrever tudo o que estava passando por sua cabeça, antes que suas lembranças fossem varridas para sempre — sensação que crescia cada vez mais em seu coração.

Aproveitou aquele instante de controle sobre si mesmo para pensar em alguma maneira de acabar com aquilo. Mas como poderia acabar com algo que sequer entendia? Era um paradoxo. Relembrou o momento em que aquele pesadelo havia começado. Exatamente no dia do seu aniversário de quarenta anos, quatro meses atrás, mas o que desencadeara o processo ainda era um mistério. Houve o caso do notebook, mas sabia perfeitamente que aquilo era apenas a ponta do iceberg. Fez pesquisas na internet sobre transtorno dissociativo de identidade, na esperança de encontrar uma explicação científica plausível para o que estava acontecendo com ele, mas a matéria era controversa no próprio campo da Psicologia, talvez ele precisasse buscar ajuda profissional e expor o seu caso para algum psicanalista.

Aquela deveria ser a coisa certa a fazer. Lembrou de uma conversa que teve com a esposa, que parecia ter acontecido em outra vida. Clarice havia dito que tudo ficaria bem, que eles procurariam um daqueles médicos de cabeça e ele voltaria a ficar bem. Luís queria ficar bem, e queria procurar um desses médicos da cabeça, mas não seria assim tão fácil. A coisa dentro dele não deixaria. Ele lutaria contra. Não, ele teria que acabar com isso sozinho, não haveria nenhum Freud envolvido.

Olhou para o relógio na parede e viu o ponteiro maior se arrastar lentamente até encontrar o menor no ponto onde havia o número doze. Levantou-se da cadeira, não se preocupou em desligar o computador. Caminhou lentamente até o quarto. Entrou, acendeu a luz e foi sentar na cama. Clarice se assustou ao perceber sua presença, e ao olhar para a esposa, Luís teve um vislumbre do pânico que a dominava ultimamente. Os olhos de Clarice estavam fundos, rodeados por olheiras roxas, resultado das tantas noites sem dormir direito.

— Onde estão as crianças? — perguntou baixinho, como se tivesse medo de machucar Clarice com o som de voz. Ela já estava suficientemente machucada.

— Na... na casa da minha mãe — Clarice conseguiu dizer. Quando Luís esticou o braço por cima do lençol da cama e tentou pegar em sua mão, ela se encolheu, assustada. Uma dor forte invadiu o peito dele. No que tinha se transformado? Que espécie de pessoa deixaria outra tão apavorada? O sofrimento no rosto dele aplacou o medo que ela sentia, e no fundo dos olhos negros, pode reconhecer o marido. — É você...? — Parte pergunta, parte constatação. Os olhos cheios d’água, a esperança de que o homem a quem amava ainda estava ali, em algum lugar, o Luís que ela conhecia ainda existia.

— Sou eu.

Dessa vez, ela não apenas deixou que ele lhe tocasse, o abraçou com força e soluçou com a cabeça em seu ombro. Ele chorou também. Chorou por tudo pelo que já haviam passado e pelo que ainda teriam que enfrentar.

— Você precisa me ajudar a acabar com isso, Clarice — disse ele, pegando as mãos dela entre as suas. A mulher assentiu.

— Nós vamos procurar um médico, um dos bons e tudo isso vai acabar.

— Não, nada de médicos.

— Luís...

— Escuta, você sabe que não vai adiantar procurar um médico. Eu não sou louco, se eu fosse, não poderia ter essa conversa com você agora, não é? Ele, essa coisa, não vai deixar que nada interfira em seu caminho. Eu não sei o que ele pretende, mas seja lá o que for, ele não vai deixar que nada o impeça. Nós temos que dar um fim nisso, Clarice. — Ela fez uma careta, uma expressão de dor e recomeçou a chorar. — Eu sei que é difícil, mas você precisa ser forte, pelas crianças.

— Não...

— Você tem que fazer, é a única pessoa que pode.

Clarice o abraçou mais forte, e só por aquela noite foi como se não houvesse um estranho entre eles. Ele chorou e beijou o rosto inchado da esposa. Pediu perdão por tudo que a tinha feito passar. Ela não queria que fosse uma despedida, não queria olhar para o marido, para o homem que conheceu quando ainda era uma garota e pensar que não o veria outra vez. Mas sabia que era assim, sabia que aquele era o suspiro final antes do grande golpe. Ao menos naquele momento, se permitiu abraçá-lo uma última vez, sentir o calor do corpo dele e a força dos seus braços lhe envolvendo.

Aproveitando a calmaria, ela dormiu. Com a certeza de que a tempestade não tardaria.

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Luís abriu o documento “memórias” e releu o que havia escrito. Na última semana quase não tinha voltado ao seu estado normal. A confissão, na qual isentava Clarice de qualquer culpa por sua morte estava pronta. Era o mínimo que podia fazer por ela e pelas crianças. Se ele morresse e Clarice fosse acusada de assassinato, a família estaria acabada. Deu-se conta, naquele instante, de que o outro não havia apagado o que ele escrevera. De alguma forma, era um bom sinal, talvez ele não controlasse tudo, mas não era possível saber até que ponto esse fato seria útil. Mas não ousava ter esperanças, afinal, o outro sabia o que pensava, sabia o que ele havia pedido à esposa, e quando chegasse a hora, ele iria se defender.

Sempre que passava perto da escrivaninha, Clarice tinha esperança de ver o marido, apenas o Luís de sempre, sentado, corrigindo provas, com uma xícara de café ao lado. Mas ele não estava mais lá. Quando olhava dentro daqueles olhos, só conseguia ver uma imensidão escura, na qual, provavelmente, seu marido estava perdido.

Ele havia ficado o dia inteiro diante daquele computador, não se levantara nem mesmo para comer. Ela ouvira o barulho da impressora e o viu mexer nos armários à procura de papel em branco. Apesar de curiosa, ficou aliviada por ele ter passado o dia inteiro quieto. As crianças não estavam em casa, mandara-os novamente para a casa da sua mãe. Havia uma tarefa difícil para fazer e não desejava ter os filhos por perto quando isso acontecesse.

Escolheu cuidadosamente a maior e mais afiada faca que tinha na cozinha e a acomodou no fundo da cesta de roupa limpa. Estava nervosa. E como poderia ser diferente? Se em algum momento de sua vida alguém tivesse lhe dito que ela planejaria assassinar o próprio marido, a ideia a teria aterrorizado. Agora não parecia haver uma solução mais adequada. Apanhou a cesta de roupa e a levou para o quarto; suando frio, passou pela sala, disfarçando o nervosismo, nem olhou para o lado onde Luís — ou a coisa em ele se transformara — estava sentado.

Entrou no quarto, fechou a porta e colocou a cesta em cima da cama. Pegou a faca e a guardou embaixo do travesseiro, sempre olhando para trás para se certificar de que ele não veria. Depois começou a guardar as roupas, num esforço para ficar calma e agir naturalmente. Após conseguir dar conta de todas as tarefas domésticas corriqueiras, tomou banho e se deitou. Então esperou em silêncio que ele viesse.

Quando Luís finalmente entrou no quarto, ela prendeu a respiração. Ficou imóvel, rezando para que ele não procurasse por sexo naquela noite. Como se Deus ouvisse suas preces, ele tirou os sapatos e deitou-se ao lado dela na cama, mas não tentou nada. Clarice passou a mão por baixo do travesseiro e sentiu a faca ali; seu coração disparou, mas ela manteve-se firme, quieta, aguardando o momento certo.

Vários minutos se passaram até que ela se sentisse segura para virar de lado e olhar para ele. Quando o fez, encontrou-o com os olhos fechados, ressonando normalmente. Dormia de costas, com as mãos cruzadas sobre o peito. Parecia um defunto, diria sua mãe. O pensamento macabro fez os pelos dos braços de Clarice arrepiarem.

Ela enfiou novamente a mão sob o travesseiro e tocou o cabo da faca, sem tirar os olhos do homem que dormia ao seu lado. Foi puxando a faca lentamente, como se qualquer movimento mais brusco pudesse despertá-lo e colocar tudo a perder.

Matinha a mão firme, embora o coração batesse desesperado dentro do peito. Só Deus sabia onde ela encontrava força para o que tinha que fazer, mas havia prometido a Luís que o ajudaria a se libertar daquele pesadelo.

Apontou para o peito, no lado esquerdo, mas depois se perguntou se não seria mais rápido cortar a garganta dele. Optou pela segunda alternativa. A consciência assolada pelo horror do que pretendia fazer. Como viveria depois disso? Como olharia para os filhos? Era horrível, mas tinha que fazer.

Antes, porém, que conseguisse desferir o golpe, uma mão forte agarrou seu pulso e o apertou. Clarice gemeu, sentindo os ossos estalando. Deixou a faca cair na cama e encontrou os terríveis olhos negros a encarando com fúria.

Clarice viu a sua vida acabando naquele instante, mas pensou nos filhos e buscou força para resistir. Luís apertava as mãos em volta de sua garganta, mas ela conseguiu tatear e encontrar a faca. Desferiu um golpe desajeito que raspou no braço dele. Não foi suficientemente forte para machucá-lo, mas foi o bastante para que ela se livrasse do aperto e corresse.

Saiu em disparada pela casa escura, tropeçando nas coisas, o coração acelerado. Corria em direção ao telefone, e conseguiu chegar até ele, mas antes que pudesse completar a ligação, o aparelho foi arrebatado de suas mãos e atirado ao chão, espatifando-se em vários pedaços. Clarice voltou a correr, mas sentia a sombra de Luís em seu encalço. Ora, estava trancada dentro de casa com um monstro. Situação que não melhorou quando ela buscou refúgio no banheiro. Entrou e trancou a porta no exato momento em que o marido-monstro ia segui-la. Ele esmurrou, gritando palavrões e fazendo ameaças.

Clarice olhou para a pequena janela. Não havia como sair, sua única esperança era que algum vizinho ouvisse o barulho e chamasse a polícia. As batidas na porta tornavam-se mais violentas, não demoraria até que ela viesse abaixo. Procurou alguma coisa que pudesse servir de arma, mas o mais parecido com isso era a tesoura de aparar as unhas. Uma batida mais forte fez a porta estremecer, a próxima arrancou um pedaço da madeira. Ela se escondeu dentro do boxe e rezou.

Ela quase não teve consciência do que aconteceu depois. Lembrava vagamente do som das sirenes, das portas abrindo-se abruptamente, de ouvir vozes alteradas, mas nenhuma imagem suficientemente nítida.

Acordou no hospital quando o dia já nascera e encontrou a mãe sentada ao lado da cama. Perguntou pelos filhos e depois de se certificar que eles estavam bem, se atreveu a perguntar por Luís.

Ouviu a mãe contar como os vizinhos havia percebido o barulho e chamado a polícia. Como o marido a estava quase estrangulando quando os policiais chegaram. Como ele resistiu à prisão. Como os soldados tiveram que usar a força para levá-lo.

Assim que recebeu alto do hospital, Clarice retirou a queixa contra o marido. Luís era de fato, inocente, não merecia ficar preso por algo que ele não fizera. Ele estava doente e precisava de ajuda. Ela procurou o hospital psiquiátrico da cidade, conversou com um médico, que foi até a cadeia para ver o estado de Luís. Essa visita, mais os depoimentos da esposa, foram suficientes para que ele autorizasse a internação. Foi difícil ver o marido ser colocado numa camisa de força, doía-lhe no peito saber que a vida deles jamais seria a mesma.

As esperanças eram poucas, mas Clarice não as tinha abandonado completamente. Talvez ainda pudesse ter Luís de volta. Algum dia.


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Notas finais do capítulo

É isso aí, já podem dizer o que acharam. Fiquem à vontade para comentar.