Arteiro escrita por Star


Capítulo 1
Capítulo único




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Mendoncinha veio ao mundo de oito meses. A mãe lavadeira, pega no susto, pariu alí mesmo, entre os pacotes de sabão em barra e a pedra de escorrer. Quando moleque, sempre foi muito de pregar preças. Chamavam-lhe arteiro. Passava dia de orelha pregada no telefone público da vila velha, discando os números todos que acertava e era só dar linha que o riso de criança se engolia pra perguntar na voz das mais sisudas - “o senhor trabalha com roupa?”. Não podia bater olho em lagarta gorda caída em beira de estrada que punha as danadas nos guardadores de fósforo das tias e quase se ria de morrer com a algazarra armada chegada a hora de pitar. Era só cair pé d’agua que lá o moleque ia, de balde e rede armada, caçar as pererecas molengas pra tacar nas coleguinhas da escola.

O tempo passou e Mendoncinha espichou até merecer ser chamado de senhor Mendonça. Casou-se com dona Vera Lúcia, moça de pernas compridas e riso bonito. Virou pai de família e homem de negócio. Deixou a terrinha e a cara de moleque. O que continuava no Mendonça, apesar do tempo e da vida dura, era o jeito arteiro.

Mendonça era homem arteiro e disso todos sabiam. Até mesmo os colegas de empresa, que depois de anos inda pensavam duas vezes antes de aceitar dele um desses apertos fortes de mão. Adorava pregar peça. Ria de morrer ouvindo os gritos de Vera Lúcia sempre que deixava uma das aranhas de borracha dentro da máquina de lavar. Perturbou a filha de sangue até que ela deixasse de ser um gordo dum bebê engraçadinho e decidisse sair de casa pra fazer família própria. Vera Lúcia, acuada, alegava nos telefonemas pra Lucinha que qualquer dia desses o marido inda ia acabar lhe enfartando.

Lá pelos meados de janeiro, em dia desses de feira, trombou com feirante colombiano com banca montada de frascos coloridos. “Tenho de tudo, patrão. Remédio pra crescer cabelo, pra matar barata, pra tirar olho gordo, pra curar insônia. É só pedir, que eu tenho”, o moreno desatou a falar, de língua enrolada de quem veio da fronteira, “isso aqui, chefe? Um golim com leite faz dormir até boi”.

Esperto como era, Mendonça comprou-lhe logo cinco frasquinhos com nota de onça. Guardou a compra feito segredo de senador e esperou pelas águas de fim de março chegarem. Enquanto misturava o pó estrangeiro no leite, mal se aguentava de rir. Bastava beber o elixir colombiano, esperar que todos achassem que batera as botas e então, enquanto os amigos velassem o seu corpo com os olhos cheios d’agua e dizendo “Mendonça era o maior arteiro que esse mundo já viu, como vai fazer falta”, levantar e pregar um susto na congregação inteira. Talvez fizesse até mesmo o bom senhor padre se mijar de surpresa. Seria a pegadinha do século. Ah, como ele era bom naquilo!

Era essa, ele sentia nos ossos velhos. Essa seria a sua obra prima. Maior do que uma zoada de moleque qualquer. Essa era a sua arte final deixada pro mundo. Todos haveriam de comentar, mesmo depois que se fosse de verdade dessas terras. “Lembra daquela vez que Mendonça fingiu que morreu? Ô arteiro bom que era!”.

Preparada a mistura, deu cabo no leite grosso e deitou na cama do jeito mais morto que sabia. Achou que ia demorar fazer efeito do tanto agito que estava, mas mal encostou no travesseiro a cabeça pesou, o pensamento enrolou e engasgou numa senhora preguiça e ele dormiu.

Mendonça dormiu e dormiu bem. O remédio estrangeiro era dos bons. Quando o efeito começou findar, Mendonça voltou de pouquinho, feito motor de carro velho pegando no tranco. Achou que podia ouvir, mas não conseguia ainda mexer. Sentiu cheiro de pinho e de flor e concluiu pelo alto que devia era de estar na igreja.

Meio dormido meio acordado ouviu um burburinho. Pensou “meus amigos velam pelo meu corpo ainda, os pobre diabos”. Era bem a hora que precisava pra dar fim ao seu truque mais perfeito de todos os tempos, mas mal conseguia ainda mover a beira dos olhos pra dar uns sustos. Quieto no próprio caixão, se resolveu de escutar as preces desesperadas do pobre mundo que o perdeu.

Pra surpresa própria, tudo pareceu muito do silencioso. Ninguém gritava a desgraça que a vida seria agora sem Mendonça andando entre os seus caminhos. Talvez o povo ainda estivesse acanhado com o poder da perda. Mendonça apurou os ouvidos e depois de uns minutos já conseguia entender o que dizia certo burburinho que, por acaso, era sua senhora – agora viúva - Vera Lúcia jogando conversa fora com algum senhor.

“O México, dona Lúcia?”

“Pois sim, o México” Sua senhora viúva respondeu. “O seguro me garantiu dinheiro de tanto que nem se vivesse duas vidas eu podia gastar, então me decidi: comprei passagem e vou pro México. Sempre foi nosso sonho de viagem, sabia? Mas Mendonça nunca comprava os bilhetes. Todo natal aparecia em casa com um envelope e dizia que era hora, mas acabava tudo sendo zombaria. Uma vez só me contou quando já tava de pé pra dentro do aeroporto. Pois agora vou, e vou só!”

“Há de ser uma viagem bem bonita, fico feliz pela senhora, dona Lúcia” O homem disse e Mendonça sabia que era algum sócio do trabalho, consolando a família do morto. "Há de partir é quando?"

"Amanhã, bem na manhãzinha."

"Assim, tão cedo?"

"Se pudesse, meu filho, pois ia mesmo era hoje."

“E Lucinha, como anda?”

“Mandou telefonar, disse que tinha coisa mais importante pra fazer. Tá sem tempo, anda muito ocupada lá pelas bandas do sul. Terra difícil. Pois ainda mais em época de escola do menino.”

“Ah, sim... E quanto à família, como anda sua sogra?”

“Dona Candinha vai mal de saúde. Deu um mal jeito danado nas costas. Disse que vinha fazer visita lá pro fim de agosto. A viagem é dessas bem longas. É época de barro na estrada, sabe.”

“Verdade, dona Lúcia.”

Mendonça esperou pelas lágrimas disfarçadas, pelo soluço escapulido, pelo chorinho que fosse, pelo “que falta o grande Mendonça há de fazer!”, “ele era o melhor arteiro desse mundo, ô se era”, mas nada. A conversa findou-se e silêncio caiu pelo casal de luto que mais parecia bater papo sobre a vida de artista na novela do que a de um amigo do peito tão querido quanto Mendonça era. Ou deveria ser. A sua vida toda pra levar posta pra debaixo da terra e só aqueles dois gatos pingados alí de coração de pedra sem se deixar levar. Até ele choraria mais no próprio enterro.

“Bem, eu tenho que ir de volta que o expediente já já vai começar. A senhora quer carona?” O homem chegou a oferecer, depois de passado o tempo de silêncio respeitoso.

“Pois aceito, sim. Tenho de passar lá no cartório da cidade. Fecha cedo.”

Caminharam de braço dado até pra fora da igreja e o homem de terno abriu pra recente viúva a porta do carro.

“Uma pena que mais ninguém tenha acreditado” ele deixou escapar, muito longe do morto.

“Não tem culpa” a viúva se recostou no banco do carona. “Pois Mendonça, arteiro grande como era...”

“Mas nem mesmo a filha!” o homem soltou, indignado, batendo a porta do seu chevette.

“Lucinha há de entender mais dia, menos dia” dona Lúcia esfregou nos olhos inchados o lencinho discreto, igual a roupa de igreja que agora virara roupa de luto. “Queria eu poder acreditar que fosse essa mais uma brincadeira das suas também. Mendoncinha não parava quieto, mas deixava meus dias alegres, sabe. Pois que faço eu agora da vida, meu Deus, se não ir embora? Sem Mendonça não tem mais vida nessa terra pra mim.”

“Poxa, dona Lúcia...”

“Que Poxa, que nada” Dona Lúcia fungou, guardando apressada o choro e o lenço. “Ande logo com esse caro que o dia é longo. Não tem nada de bonito em ver gente velha chorando.”

Mendonça viajou abraçado com as rosas – de plástico, que o dinheirinho da conta no banco não dava pra muito e viagem pro México há de ser uma facada muito maior no bolso - até o cemitério mais perto. O padre foi dispensado porque não tinham parentes ou amigos pra quem precisasse rezar. O caixão caiu dentro do buraco na terra e, já acordado por inteiro, Mendonça ouviu a primeira pá de terra cair na tampa de madeira. Nada disse. Mais fardo do que homem, o maior arteiro do mundo deixou a terra cair.


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Notas finais do capítulo

Eu inspirei a minha forma de escrever nos autores clássicos do nosso Brasil, mais especificamente, a Raquel de Queiroz, então, se vocês conseguiram sentir isso na história eu vou ficar muito, muito orgulhosa! É isso, estou feliz por participar do desafio, faz tempo que não consigo concluir história alguma. E obrigada por ler. ♥