Filho da Mentira escrita por Sirena


Capítulo 3
O Corvo


Notas iniciais do capítulo

Lembre-se essa é uma Asgard sombria, então esqueçam a tradicional.
Espero que gostem...



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Capitulo Dois

O corvo

Não treinei mais aquele dia.

Hans não me pediu para ficar e não pedi para sair. Simplesmente levantei e me distanciei; passos largos em direção a um destino incerto.

O ferimento ainda doía, queimava como se houvesse colocado brasas sobre a pele abdominal. Porém era incomparável a dor mental, a produzida pelos lábios de Odin.

O ferimento iria se curar, haveria uma cicatriz e finalmente nada restaria a não ser a pele pálida de outrora. Mas aquelas palavras? Eu seria um homem, um idoso e ainda elas ressoariam antes de fechar os olhos para dormir. Elas estariam presentes quando acordasse como uma maldição.

O peso que carregava por ser fraco.

Olhei para as arvores que circundavam a floresta além dos limites do palácio. Era um lugar grande e majestoso, pintados com as cores quentes do outono. As folhas se desprendiam dos galhos, rodopiando ao sabor do vento e caindo no chão que agora era uma mistura singular do verde e marrom da grama e o laranja crepuscular das folhas secas. Aquele era um lugar silencioso, propicio para alguém que precisava descansar ou simplesmente pensar.

Sentei-me em um tronco coberto de juncos, a madeira apodrecida, aparentemente de uma das antigas macieiras da floresta, fornecendo um apoio simplório para minhas pernas cansadas.

Assim que me estabeleci, arranquei o que restara da minha armadura, jogando com brutalidade para além das arvores, desaparecendo a poucos metros dali. Aquela coisa não me seria mais útil.

Nunca mais iria tocar em uma espada.

“Você é uma desonra para todo esse maldito reino” A voz de Odin ressoou novamente, forte e intensa como se ele estivesse aqui, gritando.

Coloquei a cabeça nas mãos, pressionando a têmpora com força, enquanto lagrimas translucidas corriam pelo meu rosto.

Estava com raiva. Dele, de mim, de todos. O pior era que não queria estar. Não queria sentir esse ódio. Eu os amava. Minha mãe, meu irmão e até mesmo Odin. Eles eram minha família.

Era tudo que eu tinha.

Levantei a cabeça, levando minha mão direita sobre o corte. O ferimento voltará a sangrar, gotas vermelhas penetrando o intermédio dos dedos.

Por mais que quisesse permanecer ali para sempre, sabia que se ficasse muito tempo naquela floresta o ferimento iria se agravar. Não que meu pai ou algum curandeiro do palácio iria ajudar na minha reabilitação. Aquilo fora uma lição que Odin aplicara ao filho e como tal, deveria se curar sozinha.

Mesmo assim ainda poderia pegar “emprestado” algum cataplasma na sala de cura do palácio, algum fármaco místico que certamente iria me ajudar na reabilitação.

De qualquer forma era obrigado a voltar.

Comecei a caminhar pelo caminho que chegara um atalho distante e pouco frequentado pelos moradores, com exceção dos caçadores que vinham para floresta para caçar os lobos gigantes que a rodavam. Ainda era possível ver as armadilhas rusticas, as flechas de madeira quebradas no chão e a marcas frescas das garras dos animais que tentaram escapar, seu sangue emplastado no chão.

Eu particularmente presenciara a caça uma única vez. Tinha nove anos quando Odin me trouxe a essa mesma floresta para esta pratica junto com meu irmão Thor, com quinze anos na época. Ambos pareciam excitados com a experiência, ansiosos para acertar os lobos, ouvi-los gritar.

Mas eu não.

Não gostava de ver alguém sofrendo, animal ou não. Achava abominável a pratica da caça, mas era uma criança e consequentemente obrigado a acompanha-lo caso fosse sua vontade.

–Olhe- Disse Odin, apontando para o leste.

Virei à cabeça a procura do seu objeto de desejo. Tratava-se de uma fêmea de lobo gigante escura, com olhos brancos, penetrantes e vivos, a pelagem brilhando com as gotículas de chuva refletidas. Ao seu lado, o filhote dormia enrolado sobre si próprio ao lado da mãe, o pelo consideravelmente mais claro, cinzento e lustroso. Ambos pareciam em paz, pacatos como uma família.

–Qual vai ser?- perguntou Thor, retirando sua espada do coldre.

–Os dois. Mas vamos nos concentrar na mãe. Ela é mais velha e experiente, será mais difícil de abater. - Aconselhou Odin, o arco de madeira antiga posicionada em suas mãos.

–Mas não podemos matá-los. Seria errado se...

–Cala-te- Repreendeu o Pai de Todos, segurando uma das minhas mãos- Nós iremos matar a desgraçada só porque quero a maldita cabeça dela caída no chão. E você seu principezinho insolente vai ajudar. Agora- disse ele um tom mais baixo- Pegue a adaga de prata que lhe dei e se prepare para a diversão.

Segurei o objeto conforme ordenado, embora meu interior ainda estivesse revoltado perante a decisão.

Odin deu um passo à frente, pisando em uma poça de lama oval, a pressão fazendo gotas de agua voarem por varias direções, molhando sua bota de pele de urso. A respiração estava controlada enquanto ele mirava no centro da cabeça da loba, um alvo fatal, sem erros.

–Perfeito- ele murmurou antes de atirar.

A loba ainda cambaleou com a pressão exercida pelo impacto da flecha em seu crânio, o corpo fraco, enquanto ela olhava impotente para o filhote, como se soubesse o seu destino.

–Vamos lidar com o filhotinho agora- Disse Odin, caminhando com passos mais acelerados.

Sempre atrás, desejava silencioso que o filhote se levantasse e corresse, tão rápido que nem mesmo o pai de todos seria capaz de alcança-lo. Que atravessasse a floresta e permanecesse oculto pelos anos que viriam.

Mas não foi isso que aconteceu. Ele ficou apenas ali, parado, olhando para os olhos sem vida da progenitora, enquanto tocava repetidas vezes o focinho em sua face. Procurando um sinal de vida, uma esperança que não existia.

–È uma presa fácil- Thor avaliou - Posso acabar rapidamente com essa cria e...

Mas antes que meu irmão pudesse dar o golpe que acabaria com sua vida, Odin colocou a palma defronte a espada, segurando-a.

–Não Thor. Você não irá fazer isso- Sentenciou um sorriso mínimo aflorando no canto dos lábios- Loki, acabe com o lobo.

–Não- Disse automático, dando um passo para trás, negando com a cabeça.

–Certo. Quer dizer então que você não quer matar o lobo? Sem problemas, você não é obrigado a fazer isso.

Suspirei aliviado por um segundo. Finalmente ele havia entendido meu ponto de vista.

–Mas se não matar o lobo- Ele murmurou no meu ouvido- Eu mato você.

Senti a pressão da faca de caça no meu pescoço, polida e afiada, pressionando a pele fina, fazendo o ar sair com mais dificuldade.

–Pai, não precisa fazer isso. Loki é apenas uma criança. - Defendeu-me Thor.

–Seu irmão precisa de uma lição de vida e morte. Aprender qual vida é mais importante... A dele ou a do animal.

Olhei para o lobo parado na minha frente. Sua cabeça manchada com o sangue de sua progenitora, a cabeça inclinada para o lado, os olhos azuis escuros suplicantes.

–Não pai. - Implorei, a adaga tremula, sem destino- Por favor. Eu não quero fazer isso...

Ele pressionou ainda mais a arma.

–Eu vou contar até dez. Se você não mata-lo eu corto sua cabeça e jogo ela para o seu querido lobinho lamber seu sangue...

–Um- Ele diz após uma dezena de segundos- Dois...

–Não...

–Três... Quatro...

–Por favor...

–Cinco...

Segurei com firmeza o cabo da adaga, pressionando-o com tanta força que a ponta dos dedos ficou arroxeados.

–Seis... Sete...

“Não posso fazer isso” repetia mentalmente “Não posso fazer isso”

–Oito...

A pressão contra meu pescoço ficou mais forte, intensa. Não era uma blasfêmia, uma brincadeira de péssimo gosto que um pai faria para o filho.

Ele realmente iria me matar.

–Me desculpe- Confessei. Lagrimas escorriam lentamente, um reflexo da dor que sentia.

–Nove...

Enfiei a lamina na garganta do lobo. Sem hesitar, sem movimentos bruscos, como se a adaga fosse parte de mim, um osso, uma terminação nervosa. Pude vê-la fincando em seu pelo, atravessando toda a musculatura e parando somente quando a parte da madeira branca do cabo tocou o pescoço do animal.

–Dez. - Ele disse abaixando lentamente a faca.

–Não- Gemi baixinho olhando para minhas mãos sujas de sangue fresco, pingando em fios.

–Eu sabia que você iria fazer isso. No final sua vida sempre é mais importante. È assim que pensa um líder.

Ele colocou a faca em minhas costas, pressionando a região central.

–E é assim que se pensa um covarde- Sentenciou guardando sua arma no coldre em suas costas e se levantando.

Ainda continuei naquela posição, estático, ajoelhado segurando a adaga imóvel por mais alguns minutos. Um torpor, como se eu tivesse num pesadelo. Um pesadelo impossível de se despertar.

Pois era real.

Não me lembro ao certo quando ou como saí daquele estado. Provavelmente foi Thor que me tirou dali, me arrastando para longe de tudo aquilo.

E lá estava eu, no mesmo lugar cinco anos depois. Cinco anos que poderiam ser cinco minutos, pois tudo estava exatamente igual. A chuva fraca, as arvores secas, os lobos. Seus ossos remoídos e quebrados, partes sobressalentes que não pareciam se encaixar.

Mas havia uma cena a mais naquela peça. Algo que não fedia a morte.

Algo vivo.

Um corvo negro e lustroso com penas grandes e com olhos estranhamente vermelhos estava parado, imóvel ao lado do que parecia ser os restos das costelas da loba. Ao invés de voar como seria o habito de qualquer outro de sua espécie ele ficou ali, me observando.

–Olá- Disse me sentindo idiota por estar falando com um corvo- O que aconteceu com você?

Como se me compreendesse o olho virou sua cabeça em direção sua asa direita, em declínio em relação a outra.

–Está quebrada?- Indaguei, esticando minha mão em direção a asa ferida.

Assim que toquei na parte dolorida, o corvo grasnou, dando um pequeno passo para trás, hesitante.

–Você vai morrer se ficar aqui. - Disse, imaginando como ele seria uma presa fácil, uma refeição maravilhosa para os lobos famintos.

Mas eu também não poderia levar ele para casa. Odin certamente seria de desaprovo se levasse para o palácio uma ave cujo povo asgardiano acreditava ser amaldiçoada.

Minha mente então se voltou para o lobo. Deixa-lo ali seria como assassina-lo, como enfiar uma faca em seu peito.

E eu jamais iria fazer isso de novo.

–Que se dane, Odin.- Murmurei, agachando-me para pegar o corvo que veio em minhas mãos de bom grado.

Jamais iria imaginar as consequências terríveis que aquele ato me levaria.

Consequências que poderiam ser mortais.


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Notas finais do capítulo

Comentem :)