O peso da verdade escrita por Clara Kessler


Capítulo 2
O santuário.


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura e espero que gostem ^^



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– Então você sabe quem foi? – perguntei, descrente.

– Óbvio, não é como se qualquer mago pudesse vir ao Duat, fazer uma pequena visita ao Salão do Julgamento e levar a pena da verdade como souvenir. – o moreno falou, se retirando da sala.

– Para onde vai? – ele me ignorou. – Se você não se lembra: eu vou com você. – bufei, em alto tom de voz.

– Você fala como se me deixasse esquecer. – resmungou, raivoso.

– Por que tanta agressividade com a moça? – uma voz desconhecida, e reptiliana, divagou.

Anúbis já se encontrava na metade da escada e, de lá mesmo, rosnou, sem nem ao menos se virar para trás:

– Sobek. – olhei para uma porta, do lado oposto da sala de estar, e me deparei com uma cena um tanto desagradável.

Um guerreiro egípcio completo – ou pelo menos, era o que me parecia – com cabeça de crocodilo, segurava na mão direita um escudo recheado de cenas de morte (do tipo horrendas com “h” maiúsculo). Tive sorte por ele estar escondido parcialmente pelas sombras, ou eu teria que enfrentar horas intermináveis com um terapeuta pelo resto da vida.

– Anúbis, meu caro. – o semi-réptil disse com simpatia, claramente falsa, na voz. – Novamente tenho que limpar sua bagunça.

O deus-menino que poucos segundos antes estava parado, de costas, na escadaria se moveu com velocidade sobre-humana, e pulou em cima do guerreiro.

Tentei, rapidamente, associar o nome a alguma lenda ou mito, e então lembrei do meu velho professor de história explicando as crenças egípcias. “Eles acreditavam que todos os rios do mundo tinham sido criados a partir do suor do deus crocodilo, Senek.”. Não, Sobek, como a divindade funerária dissera.

Quando voltei minha atenção aos deuses, eles estavam em um duelo matar ou morrer clássico.

Com um golpe mortal para qualquer humano, Anúbis derrubou o reptiliano que, apesar de desnorteado, parecia ileso.

– Seu réptil abominável, o que faz aqui? – indagou o deus dos mortos.

– Uma pequena visita, amigo vira-lata – o animal arreganhou a bocarra, no que, eu suspeitei, ser um sorriso.

O menino se levantou e afastou-se com o rosto impassível. Moveu-se até se posicionar a minha frente, num movimento de proteção.

– Ok. Se não consegue receber um velho aliado com o mínimo de bons modos, serei direto – suspirou Sobek.

– Aliado? Santo Rá, você trouxe a minha vida a pior desgraça de todas e além disso, tentou, inúmeras vezes, fazer com que magos dos tempos antigos me exacrassem. Você perdeu a noção, ou pior, desconfio que nunca a teve. – cuspiu Anúbis, com um misto de emoções juntas as palavras – raiva, desgosto, nojo e por aí vai.

– Chega, garoto! – berrou a outra divindade, perdendo a paciência. – Fui enviado pelo deus-sol em pessoa. Minha missão é proteger a mansão dos mortos, enquanto você, seu pedaço de lixo, estiver fora. – recompôs-se.

– Seu crocodilo fétido, juro por Néftis, que se tocar em minhas coisas, te enviarei para o fundo do Duat. – avisou o moreno, que estava assustadoramente nervoso.

Foi minha vez de interferir. Toquei o braço do deus dos mortos:

– Acalme-se – sussurrei. – Não está em posição de discutir. – ele pareceu prender a respiração. – As ordens partiram do próprio Rá. – após alguns segundos, ele cedeu. Seus músculos relaxaram e a posição de batalha foi substituída por um par de pernas tensas, como em uma discussão.

– Ouça a maga. – o réptil sibilou.

– Por que Rá anda interferindo no curso das coisas se o atual faraó é Hórus?

– As coisas estão mudando, Anpu. Os mundos irão convergir, não falta muito. – e concluiu. – A profecia irá se cumprir, e logo. – com essa afirmação, o crocodilo se desfez em água.

– O que ele quis dizer? – perguntei, confusa.

– Gostaria de poder explicar. – retrucou Anúbis, me deixando sem saber se ele era proibido de me contar ou, simplesmente, não sabia, como eu.

Me encaminhei a escada:

– Você vem ou não? Preciso de roupas e um kit de magia novo. – afirmei, me lembrando de minha varinha despedaçada no último confronto que tivera com magos rebeldes e psicóticos.

Conjurei algumas roupas no closet gigantesco do deus e as enfiei em uma mochila que achei por lá mesmo.

– Aqui, pegue. – ele falou, me estendendo uma caixinha de couro marrom. – São milenares. A varinha se ligará a sua energia vital e só se quebrará se ela se esvair.

– Espero que não cheguemos tão longe. – brinquei. – Nunca vi nada assim. – franzi o cenho.

– Foi abençoado por meu pai para um de seus seguidores fazer um ritual de separação. – olhei para ele como se ele estivesse se comunicando em outra língua. Anúbis sorriu. – Um ritual de separação consiste em separar um espírito, uma alma, de um corpo.

– Deixa eu adivinhar, quanto mais forte o espírito, mais poderoso o ritual tem de ser.

– Também, mas o que eu quero dizer é: quanto mais forte a ligação entre os dois, mais poderoso o mago tem de ser e mais resistente sua varinha. – seus olhos castanho-amanteigados encontraram os meus. – Claire, por favor, fique. Sobek pode não ser confiável, mas é um guerreiro nato. Você estaria segura aqui.

– Não posso, Anúbis, ou me sentirei culpada pelo resto da vida. - argumentei, provavelmente decepcionando-o.

– Você não terá de se arrepender se não tiver o resto da vida para viver.

Um silêncio massacrante dominou a sala, até que alguém bateu na porta.

– Sim? – Anúbis respondeu, com uma calma inquietante.

– Lorde Osíris mandou-me entregar um embrulho ao senhor, Príncipe dos Mortos.

A divindade dos funerais abriu a porta e um espírito a atravessou. A entidade era translúcida e cinza, ela aparentava ser um velho de aproximadamente 70 anos com um sério problema de calvície e muitos quilos a mais reunidos em uma barriga redonda como uma bola de futebol em perfeito estado.

Ele se ajoelhou e estendeu a Anúbis uma netjeri envolvida em um pano negro, um tipo de faca cerimonial como várias outras no quarto do deus.

O deus recolheu a faca e ordenou:

– Desapareça da minha frente! Volte a fazer suas tarefas, Fuinha. – o fantasma se desfez em fumaça.

– Príncipe? – questionei. – Pensei que você fosse o rei dos mortos ou algo, no mínimo, equivalente.

– Por que? Meu pai é o senhor dos mortos, como eu poderia ser equivalente a ele? – ele disse, indiferente.

– Como assim? Seu pai não é Set?

– Meu pai é Osíris. – o deus sorriu, enquanto se esparramava em uma das suas poltronas negras. – Os historiadores, ou pelo menos, parte deles, costumam se confundir.

Sentei próxima a ele.

– Me explique direito.

– Minha mãe, Néftis, foi confundida com Ísis, ou simplesmente enganou Osíris, até hoje não sei. Na verdade, duvido que um dia descobrirei. De qualquer jeito, eles... – ele enrubesceu. – Bem, se uniram e eu nasci. Assim que Ísis descobriu começou a me caçar, mas eu tinha sido escondido por causa do temor de minha mãe a Set. Ísis acabou me encontrando e após muitos acontecimentos encarregou-se de alimentar-me e eu me converti em seu “guardião”. – usou seus dedos como aspas. – Por ser tão fiel fui ligado a figura de um chacal. – explicou com calma surpreendente.

– Por que não um cachorro comum?

– Você sinceramente acha que eu poderia ser domesticado? – ele sorriu maliciosamente. – Está descansada?

– O suficiente.

– Então vamos. – falou, se levantando.

Com um movimento manual ele abriu as cortinas e elas revelaram um portal negro como a noite.

– Finalmente achei uma utilidade para essas velharias. – nós rimos.

Eu pulei primeiro, mas assim que o frio me alcançou me arrependi.

– Pra onde... – tentei perguntar, porém minhas palavras se perderam no vácuo.

Senti algo tocar minha mão então a retrai. Senti novamente. Entretanto dessa vez, percebi que era apenas a mão de Anúbis.

Vi um clarão e então caímos com tudo no chão. Olhei para cima a tempo de ver o portal se fechar e logo um jovem de quase 30 anos exclamou:

– Santo Rá, Senhor do Oeste, por que não avisa quando vai vir nos visitar? – ele tinha a barba mal feita e os cabelos loiros.

– Luke, quanto tempo! – o deus abriu um sorriso e abraçou o colega, dando algumas batidinhas em suas costas.

Eu me levantei e me aproximei dos dois:

– Essa é Claire, Luke. – o deus apressou-se em explicar.

– Prazer. – sorri.

– O prazer é todo meu. – o loiro disse em um tom provocante. – Maga da casa da vida?

– Também. – admiti, apesar de ser imprudente. Já tinha sido avisada a não misturar minhas origens. Gregos e egípcios são como água e óleo, portanto, não se misturam.

– Como assim também? - ele questionou.

– De qualquer jeito, vamos ao que importa. Preciso de um serviço seu. – interveio Anúbis.

– Claro! Vamos entrando, não queremos ninguém nos bisbilhotando, certo?

Olhei ao redor e vi várias casas, todas bem pequenas e brancas.

– Onde estamos? – sussurrei para o príncipe dos mortos.

– Um santuário. Magos na década de 20 o criaram para servir como esconderijo.

– Esconderijo? Mas por que e de quem eles estavam se escondendo?

– Da sociedade em geral, até mesmo da Casa da Vida. Eles diziam que quanto menos contato os magos tivessem com o mundo exterior mais puros seriam, portanto, mais pura seria sua magia. Não que isso seja verdade, mas aqui eles tinham tempo de sobra para praticar, então o resultado acabava sendo melhor do que nos nomos. De qualquer jeito, quase ninguém sabe da existência desse lugar.

Adentramos o chalé que o loiro nos apontou. No momento em que coloquei meus pés na sala de estar um agradável cheiro de camomila invadiu minhas narinas, o mesmo cheiro que eu havia sentido ao me aproximar do mago. O deus se acomodou em um sofá grande e cor de café, combinando com a decoração típica do período colonial.

Eu não tinha certeza do que estávamos fazendo ali, em um santuário no meio do que... Hm, nos meus dias mais simpáticos, eu descreveria como nada. Sabia que santuários eram, e são, lugares que facilitam a execução de feitiços por terem algo como uma “marca de magia. Como o lugar onde ocorreu a batalha contra Apófis, apesar de marcado com o caos, também era um local onde seria tão fácil fazer um feitiço quanto respirar.

O sorriso malicioso e o jeito despojado de Luke faziam um contrate um tanto curioso com os móveis império-coloniais, me deixando intrigada. Sozinho, de portas fechadas, seria ele o homem sério que decorou essa casa ou o jovem de 30 e poucos anos que esbanjava charme?

– Por mais que eu adore sua vinda não consigo ser cínico o suficiente para fingir que é apenas uma visita cortês. – Luke disse, com as palavras duras, mas o tom dócil. Era visível que não era sua intenção ser grosseiro.

– E não é mesmo. Eu preciso de um favor. – o moreno declarou, com as mãos inquietas balançando sobre o joelho flexionado. Eu os observava a certa distância, como se estivesse desconfiada, encostada na parede com os braços cruzados, me sentindo uma completa intrusa. – Eu preciso de um avatar. – “Ah, ótimo, agora estamos em um filme da Universal.” Pensei, rabugenta como sempre.

O anfitrião me olhou e deu um sorriso de lado, provavelmente percebendo meu cenho franzido.

– Não, ele não vai crescer até ter 2 metros de altura e ficar azul, antes que pergunte. – ri, sem graça. Ele voltou seu olhar para a divindade, dessa vez, desconfiado. Antes que o mago pudesse falar algo, o deus afirmou:

– Até onde eu sei, você anda me devendo um favor.

– E até onde eu sei, esse favor poderia ser pago com um boa garrafa de whisky. – eles sorriram. Os olhos suplicantes de Anúbis pareceram surtir efeito após um tempo encarando o loiro, pois ele enfim disse:

– O que eu não faço por você, não é, seu inútil? – ele se levantou. – Mas ainda faço questão do whisky. – suspirou enquanto servia dois dos copos que, segundos antes, estavam repousando sobre a cômoda. – Está servida?

– Eu? – questionei.

– Sim. – ele me estendeu um dos recipientes em sua mão.

– Não, obrigada. – Entre tudo o que poderia estar me incomodando, o pior, era o fato de eu ser sempre a última a saber das coisas, “rir da piada”, por assim dizer. Quem era a ladra? Eu não sabia. O que era um avatar? Eu não fazia a mínima ideia. Por que eu tinha enfiado na minha cabeça que deveria ajudar o deus dos mortos? Essa, entre todas, era a que mais fazia minha cabeça latejar.

– Certeza? – o mago insistiu.

– Ah, vamos, não pode ser ruim assim, certo? – a divindade indagou. Peguei o copo em um movimento súbito e o virei de um vez em minha boca. Talvez eu realmente precisasse de uma pequena ajuda para digerir certas coisas.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigada por ter chegado até aqui e espero que tenha gostado :3 Deixe seu comentário, ele é muito importante. ^^



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