Corpo de Humana... Coração de Yokai escrita por Caramelkitty


Capítulo 5
Conversa com Kirara




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O nascer do sol...

Esperança e promessa de um novo dia. Os raios matinais banhavam a paisagem de luz, fazendo vibrar as cores verde do matagal e azul prateado do rio. Os pássaros despertavam e começavam a entoar as suas melodias, maneira própria de agradecerem a vida que lhes era dada.

Takara, se fosse um pássaro, não cantaria! Apesar de nenhuma nuvem estar presente no céu, o espírito da rapariga acordara taciturno. E apenas ela e Kirara sabiam o motivo.

A Yokai gata miou compreensivamente e Takara acariciou-a da cabeça à ponta da cauda com um ritmo firme e repetitivo.

– Bem Kirara, e é isso! Já sabes mais sobre mim do que qualquer ser que pisou esta Terra.

Kirara chamou a atenção para as garras da menina.

– Ah, isto? Adquiri-as depois... se ainda não estiveres cansada das minhas lamúrias eu posso continuar a contar-te a minha história. Já percebeste decerto que eu odeio humanos. Não foi só por causa daqueles malditos que infelizmente me puseram no mundo. Pouco tempo após o assassínio dos meus pais, fui encontrada a vaguear na floresta por um monge de uma aldeia. Ele levou-me para a aldeia onde fui acolhida como um milagre. A menina que sobreviveu aos Yokais da floresta! – Takara adquiriu um sorriso de desdém, relembrando a forma como todos a admiravam para no momento seguinte a odiarem. – Conheci alguns amigos nessa aldeia. Mas não eram humanos! As crianças da minha idade não se aproximavam muito de mim, achavam-me estranha, e tentavam convencer os adultos de que eu era uma hanyou e que queria matá-los a todos. Quão egoísta da parte deles pensarem que eu me importaria com os seus corpinhos mal lavados e as suas alminhas já cheias de ganância se podia ter os mais variados alimentos. Sentia-me tão vigiada... os anciões seguiam-me com os seus olhos de paciência a cada passo que eu dava. E um dia, eu cansei-me de ter sempre a nuca queimada por olhares de desconfiança e fugi para a floresta.

Os olhos da garota brilharam ao lembrar-se do seu amigo Yokai guaxinim, Kito. E descreveu pormenorizadamente a cena do primeiro encontro que tiveram.

Takara estava sentada numa pedra a comer gemada, feita por ela mesma. Decerto a vizinha não iria incomodar-se em ter um ovo a menos sendo as suas galinhas as campeãs da aldeia. Botavam mais ovos do que aqueles que podiam ser consumidos e era então exportado o excesso. Olhou para o lado e viu entre as folhas de um arbusto, dois olhinhos castanhos que a espiavam. Logo se irritou. Não bastava na aldeia? Aqueles humanos já estavam a exagerar. E sim, nessa altura já Takara se considerava como Yokai.

– Quem está aí? Se ainda não matei ninguém nessa porra de aldeia, então o mais provável é que não o faça. Decidam de uma vez se eu sou ou não inofensiva mas não fiquem a me seguir para todo o lado!

O rapazinho saiu dos arbustos completamente submisso. Tinha uma longa cauda com pelagem cinzenta às riscas pretas, bigodes e um nariz preto que lhe dava um ar ternurento.

– Gomen, eu não estive a seguir-te o tempo todo, juro! Eu só senti o cheiro de... comida e segui-o. Não queria enfurecer-te!

Se fosse qualquer outra rapariga, Takara desataria aos berros e clamaria pela ajuda dos exterminadores da aldeia. Mas Takara descontraiu e abriu um largo sorriso ao ver o seu «semelhante».

– Desculpa eu! Pensei que eras outra pessoa! Queres um pouco, já fiquei enjoada... – Takara ofereceu a gemada para o pequeno Yokai que aceitou de imediato.

– Meu nome é Kito! – Apresentou-se enquanto lambia os dedos lambuzados. – E não posso ficar a conversar muito tempo, porque os meus pais não gostam de humanos.

– Eu fui criada por Yokais e também não tenho muita afinidade com humanos, podes descansar os teus pais. Olha, que tal encontrarmo-nos aqui amanhã à mesma hora?

Kito olhou-a com alguma hesitação. Poderia confiar na humana que não era humana?

– Trago tarte de maçã!

Palavras mágicas e irresistíveis! O acordo foi aceite e dia seguinte lá escapuliram as duas crianças das suas respetivas casinhas para se encontrarem na pedra a meio caminho dos dois mundos paralelos: o mundo dos Yokais e o mundo dos humanos!

Tudo corria bem, Takara começava a sentir-se amada novamente. Até as crianças começaram a aproximar-se mais da nova Takara que ganhara um pouco de tolerância.

Mas numa noite...

Takara acordou com o som de flechas a serem atiradas, rugidos e archotes a queimarem. Levantou-se e saltou pela janela para poder ver o mais rápido possível o que estava a acontecer. A maioria dos aldeões estava em pânico mas alguns deles mostravam determinação e formavam uma roda em volta de uma Yokai que fez os olhos de Takara arregalarem-se de espanto. Era um enorme lince, de dentes aguçados e duas caudas. Era listrado, tinha o seu corpo marcado por partes amareladas e partes completamente pretas, incluindo as patas,o fochinho e grande parte do lombo. O animal rugia com fúria e atacava os aldeões que chegavam mais perto. Cordas foram atiradas e prenderam a Yokai por breves momentos. Mas, assim como Takara já esperava, o enorme felino rebentou as cordas apenas elevando-se fazendo os aldeões caírem para trás.

Takara conhecia bem os Yokais para saber que, num caso normal, aquele felino de aspeto assustador seria dócil. E isso só podia significar que ele estava assustado, talvez ferido ou envenenado.

Ignorando os gritos das pessoas à sua volta, colocou-se em frente ao Yokai no preciso momento em que este ia atacar de verdade um homem, podendo ferí-lo mortalmente. Ante a calma da rapariga, a Yokai parou de debater-se com as cordas que insistiam em enrolá-la e faze-la fraquejar.

– Está tudo bem! – Sussurrou Takara aproximando-se. Cautelosamente fez uma festa no fochinho negro do lince que apenas a olhou com uma expressão indecifrável.

Encorajada pelos seus avanços, Takara baixou-se e analisou as patas da Yokai. Estavam sujas de sangue, mas nenhum dos aldeões parecia ferido, pelo que Takara calculou que devia ser sangue de Yokai, um Yokai que enfrentara recentemente.

– Vou subir para o teu lombo e ver se estás ferida. Posso?

O espanto dos humanos presentes era quase respirável. Abismados, viram Takara subir com cuidado para cima do Yokai e afastar o pêlo espesso.

– Ferida! Corte superficial, mas venenoso... Gomen pela recepção pouco calorosa. Acho que se mostrares que não és agressiva, eles irão acalmar-se.

Mas nesse momento, uma flecha quase arrancou a cabeça de Takara. Passou a raspar pelo seu pescoço e espetou-se numa árvore. Takara levou a mão ao arranhão, apercebendo-se de que quase tinha perdido a vida.

– Vejam, ela é amiga do Yokai! Bem que os meus filhos me avisaram, ela também é dessa raça e juntou-se ao Yokai para nos exterminar. Avante homens, flechas nos arcos.

Mais flechas foram disparadas. Com um salto vigoroso, a Yokai lince desenvencilhou-se das cordas e começou a afastar-se ainda com Takara nas costas. Os puxões das cordas deixaram esfolados em vários pontos do corpo do vigoroso animal, mas ela não se queixou. Takara sentiu uma humidade pegajosa nas suas mãos, quando se inclinou em busca de mais apoio.

– Estás a sangrar! Eles... eles acertaram-te! – Exclamou.

Mal podia acreditar! A Yokai que tanto a impressionara estava a morrer e a morrer por causa dela!

«Devia ter deixado aqueles covardes serem todos mortos» Pensou com rancor e nojo. «Eu salvei-lhes a vida! Salvei-os e eles agradeceram tentando matar-me! Odeio-os! Odeio humanos!»

Poucos metros depois, a Yokai cedeu e caiu, o sangramento era agora mais notório e manchava a terra de vermelho escuro.

Takara não pôde evitar. Tinha prometido que nunca mais chorava, mas aquilo era demasiado cruel. As lágrimas começaram a escorrer-lhe pela cara.

– Gomen.... Gomen... eu não queria...

Deitou-se sobre o corpo que se esvaía em sangue, com soluços estrondosos sentindo a culpa a queimá-la por dentro. E aquilo doía mais do que mil flechadas.

Kirara notou lágrimas a quererem escapar dos olhos de Takara quando esta parou a narrativa. Mordeu o lábio inferior e esperou até sentir-se mais controlada.

– Por mais que eu tente... para todo o lado onde vou só causo dor e morte. Por isso é que eu sou tão rude para as pessoas, se eu fizer amigos, eles vão padecer da minha desgraça. Acho que fui amaldiçoada. Fui eu a causadora da morte dos meus pais e da Yokai lince e não quero causar a morte de mais ninguém!

Takara levantou-se e colheu um ramalhete de lírios.

– Acho que fica perto daqui o local onde ela morreu! Eu enterrei-a e fiz uma lápide pequenina...

Takara avançou alguns metros adentrando na floresta. Chegado a um local olhou em volta, afastou a vegetação e descobriu um pedaço de pedra arredondado que estava espetado sobre um monte de terra dura do tempo. Pousou o ramo de lírios na base da lápide e permaneceu de joelhos por um tempo incontável, de olhos fechados, murmurando palavras até cair lentamente sobre a campa, vencida pelo sono de noites mal dormidas.

Kirara saltou para perto da menina adormecida e enroscou-se junto com ela, não sem antes reverenciar a falecida. Kirara sempre quis saber o que tinha acontecido e finalmente as suas dúvidas serenavam, deixando apenas a tristeza e a mágua.

Então fora assim... fora assim que a sua mãe morrera!


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