A Garota de Capa Preta escrita por Katherslyn


Capítulo 6
Um adeus e uma capa




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Tudo estava parado. O ar, as pessoas, tudo. O silêncio era ensurdecedor, e a garota se aconchegou mais à sua capa. Sentada num banquinho, ela olhava pra tudo, procurando. Procurando o que, exatamente? Ela riu de si mesma, baixinho.


Porém, não era hora de achar graça da situação. Alguma coisa estava errado, e ela sabia que algo de ruim iria acontecer. Dessa vez, ao contrário das outras, ela sentia algo diferente. Dessa vez, o fim realmente estava próximo.


Ela ouviu passos atrás de si, e se encolheu. O ar começou a aparecer ao seu redor, um ar negro, podre e arrepiante. Era ele.


Ele se sentou ao seu lado no banquinho, mantendo uma certa distância. A garota ficou esperando que ele dissesse algo sarcástico, mas não veio nada de sua boca. Resoluta, resolveu ir ao X da questão.


–O que você quer?

Ele virou o rosto para olhá-la. Seus olhos estavam vermelhos, sua boca formava um sorrisinho diabólico. A garota tremeu. Depois de tantos anos, ainda sentia a mesma coisa por esse homem. Medo, repulsa, nojo. Pavor.

–Dessa vez, não quero nada. Vim me despedir.

Os dois ficaram se encarando, pelo que pareceu horas. A garota o olhava intrigado. Se despedindo? Ele não poderia matá-la. Não tinha como, a Capa a protegia. Ele teria, depois de tantos anos, achado uma forma de a tocar?

–O que você quer comigo? - Perguntou, decidida. Não iria se esconder. Aliás, não havia lugar algum para se esconder. Não havia nada.

–Já disse. Me despedir.

Como se obedecendo alguma ordem dele, o banquinho começou a flutuar em meio ao escuro. A garota olhava pra baixo, resignada. O baquinho parou no ar, e as luzes que vinham de baixo se apagaram de repente.

–O que está acontecendo? - Ela perguntou. - Deixe-me descer!

–Descer pra onde, querida? Não existe mais nada abaixo de nós.

O banquinho voltou a subir, cada vez mais alto e mais rápido.

–Deixe-me descer! Me coloque de volta na Terra!

O homem riu alto, debochado.

–Não existe Terra. Não existe nada. Eu consegui o que queria. Você se lembra? Eu concluí minha tarefa. Eu destruí o mundo.

A garota o olhou, chocada.

–Você não pode... Você não...

–Calada. Só não posso como fiz. Acabou.

A garota, ao invés de chorar, abaixou a cabeça, resignada.

–E agora? Essa é a parte que você volta pro lugar de onde veio? O inferno?

–Quase isso.

Os dois voltaram a ficar em silêncio, até que ele se levantou do banco, em pé no espaço.

–Está na minha hora. Foi um prazer te conhecer, querida. Apesar de tudo, de todo o caminho que percorri, euconsegui.

–Você me enganou. Você me usou! - Ela berrou. -Você me fez acreditar que usando essa capa eu protegeria a mim e a todos!

–Eu nunca disse que poderia. Mas sim, você poderia. Se você tivesse sentido coisas boas, a Capa espalharia coisas boas. Mas você já sabe disso. Você escolheu ir pelo lado ruim, o negativo, da auto-comiseração.

–Você tirou tudo o que eu mais amava.

O homem suspirou, com falsa modéstia.

–Isso não é hora de reviver o passado. Viva o futuro. E agora, eu tenho que ir.

–Mas e eu? -A garota perguntou, triste.

O homem a olhou, com nojo.

–Se tivesse escolhido o lado vencedor, você iria comigo. Mas você ficou ao lado dos fracos. O que acontecer com você agora não é problema meu.

O Magistrado se virou e começou a andar, caminhando em direção a uma porta vermelha.

–Não me arrependo de ter escolhido o lado certo. Você pagará por tudo isso. Você sabe, não sabe? A batalha pode ser entre o bem e o mal, mas Ele está acima de tudo isso.

A garota detectou um traço de medo nos olhos dele, mas ele rapidamente disfarçou.

–Adeus.

Ele caminhou decididamente até a porta, e a garota jurava que ouvia gritos de sofrimento por trás dela. Ele entrou, e sem olhar pra trás, pra ela, fechou a porta.

A garota continuou sentada no banquinho, em meio ao nada. O que faria agora? Fechou os olhos, e sua mente vagueou para tempos em que nem sabia ser capaz de lembrar. Um tempo em que ela tinha se esquecido ao passar dos anos.

***


"Havia uma garotinha sentada nas escadas, sozinha. Sua mãe estava cozinhando, e seu pai estava, como sempre, trancado no sótão de casa. Ela não sabia bem o por que, mas sempre tivera curiosidade de saber o que seu pai fazia lá embaixo.

Esperou pacientemente, e meia hora depois começou a ouvir os sons. Uns rosnados, uns barulhos esquisitos. Rapidamente, subiu as escadas e entrou na cozinha, gritando.

–Mamãe, mamãe, o papai ta fazendo algo estranho! Tem uns barulhos esquisitos, lá embaixo. Vem, mamãe!

A garota se agarrava a barra da saia da mãe, aflita.

–Eu estou ocupada. Francamente... Pare de infantilidade e me deixe trabalhar. Estou ocupada.

–Mas mamãe...

–Mas nada. Deixe seu pai em paz e vá fazer algo de útil.

Era sempre assim. A garota ouvia sons estranhos no sótão, vozes e rosnados, e corria pra contar à sua mãe, que nunca acreditava.

Isso durou por pouco mais de um ano, até que seu pai um dia resolveu falar com ela.

–Sua mãe me disse uma coisa. Ela disse que você vive reclamando de sons estranhos vindos do sótão. Isso é verdade?

A garota confirmou com a cabeça, confusa.

–Isso é coisa da sua cabeça, querida. Não há nada lá.

–Não é não, eu ouço sim. Todo dia.

O pai a observou, carrancudo.

–Não, você não ouve. Está entendendo?

Antes que a garota pudesse dizer mais alguma coisa, ele se virou e saiu.

Nos meses que se sucederam, a garota deixou de ouvir sons estranhos vindos do sótão, e depois de meses, chegou a duvidar de sua mente. Será que aquilo era mesmo real? Quando estava quase acreditando que estava louca, certa noite ouviu de novo. Gritos desesperados de alguma mulher lá embaixo, e a garotinha, se levantou, assustada.

Desceu até as escadas e ficou lá, parada, ouvindo. Os gritos da mulher iam diminuindo aos poucos, até virar um gemido baixo, agonizante. Ouvia o som de ferramentas sendo usadas, e o barulho foi diminuindo, até não restar nada.

A porta do sótão foi se abrindo, lentamente, e de dentro dela saiu seu pai. Os olhos dele estavam vermelhos, e um líquido vermelho pingava de suas roupas.


–O que é aconteceu, papai? Por que seus olhos estão vermelhos? Eo que é esse líquido saindo da sua roupa?


O pai simplesmente sorriu, de uma forma assustadora. Até a garotinha, que julgava não ter medo de nada, se assustou. Com medo, subiu as escadas correndo, entrou em seu quarto e trancou a porta. Deitou em sua cama e se cobriu com os cobertores, tremendo.


No dia seguinte, seu pai e sua mãe brigaram, e essas brigas se sucederam dia após dia.


–Ela tinha razão, você é louco! Eu não sei o que você anda aprontando, mas pra mim já chega! Quem garante que você não é um maníaco? Você bem poderia ser e eu nem saberia,
A garota ficava escondida, ouvindo os dois brigarem, até que recebeu uma notícia da mãe: o pai iria embora.


Ao contrário da maioria das garotas que choram ao saber dessa notícia, a garota não chorou, apenas suspirou aliviada.


Dois meses depois, a garota brincava sozinha na porta de casa, observando as outras garotas de sua idade brincarem na rua. Ela nunca tinha sido convidada pra se juntar as outras, e tinha vergonha de pedir.


O dia estava ensolarado, mas, misteriosamente, escureceu. O vento começou a rodopiar com mais força, e a garotinha sentiu uma energia negativa rondando o ar. Olhou pra cima e viu ele, seu pai.


Naquele dia, ele tinha pedido para que não deixasse ninguém entrar no sótão, e que desse um jeito de fazer com que ninguém entrasse lá dentro.


A garota passou semanas contando isso pra sua mãe, que insistia dizendo que isso era coisa da cabeça dela, que o pai dela estava longe. Por fim, depois de tanta insistência, colocaram um muro ao pé da escada, separando o sótão da casa.


Os anos passaram, a mãe casou de novo e ela tentava agir como uma garota normal. Tinha uma tendência a perceber o que a maioria não percebia, observava os detalhes, sabia quando alguém estava mentindo pelo olhar.


Ela tentava ter amigos, mas falhava miseravelmente. Sofria bullyng na escola, as meninas da sua rua só sabiam falar de namorado e fofocar, o que ela detestava, e ela se isolou. Chorava, gritava escondida. E ocasionalmente tinha pesadelos com o pai, ele fazendo maldades.


No começo, os pesadelos vinham em longos períodos de tempo, mas conforme aumentavam a frequência que apareciam ela passou a contar à mãe e ao padrasto. Mas, novamente, foi ignorada. Eles diziam que isso era coisa da cabeça dela, e que ela tinha que parar com isso.


Depois de ser humilhada na frente dos colegas de escola de nerd, chegou em casa e se dirigiu as escadas, sentada nos últimos degraus. Ficou pensando no que teria do outro lado daquele muro, do outro lado daquela porta do sótão. O que havia ali? Ela realmente ouvia vozes ali ou era sua imaginação?


Como se respondendo a sua resposta, ela começou a ouvir ruídos do outro lado, e algo se mexendo. Passos, ela ouvia passos ali.


Contou isso a mãe e ao padrasto e perguntou a onde o pai estava, mas eles não responderam. Sua mãe passou a levá-la ao psicólogo, o que foi mais um motivo de chacota.


Contava ao psicólogo sobre seus sonhos, sobre crianças morrendo, lugares destruídos, os olhos de seu pai vermelhos, sangue, muito sangue. O homem anotava tudo e fazia muitas perguntas, e a garota chegou a achar que ele acreditava nela. Não acreditava. A garota ficou internada por semanas, sob observação de especialistas. Era obrigada a tomar muitos remédios, e foi proibida de frequentar a escola com outros alunos. Passou a fazer cursos particulares, como espanhol, inglês, italiano, russo, chinês e português. Fez também de informática, e se aprofundou nas palavras.


Tudo isso em menos de um ano. Ela passava dias inteiros estudando e muitas noites também, com medo de dormir e ter os mesmos sonhos.


Quando achou que não tinha mais jeito, passou a frequentar a igreja. Nunca tinha sentido seu espírito mais livre do que sentira.


Mas nada tirava da sua cabeça aquele sótão. Não importava quanto tempo passasse, o que fizesse, ela sentia a curiosidade de entrar lá. E entrou.


Foi no aniversário de 3 anos de sua irmã. Todos estavam comemorando, conversando e rindo, e a garota estava sentada sozinha. Resolveu se sentar na escada, e começou a sentir algo estranho no ar.


Encostou o ouvido na parede, e passou a ouvir vozes. Nova ordem, caixões, exterminação era alguma das palavras que ouvira. Todas essas palvras tinham sido palavras chaves pra descobrir, descobrir o que estava na cara de todos. Ela passou a entregar folhetos, dizendo que o fim estava próximo. Mas quem acreditaria numa garota que tomava remédios?


Mas aquela noite, o aniversário da sua irmã, foi sua perdição. Ela deu um jeito de fazer uma rachadura na parede, e uma rachadura foi virando duas, três, até que conseguiu a derrubar. O barulho na casa estava alto, então ninguém conseguiu ouvir o baque que foi.


Passando por cima dos tijolos no chão, encostou a mão na maçaneta na porta, e a abriu. O lugar era escuro, e não se dava pra ouvir nada. Passou a andar mais pra dentro, e a porta se fechou. Sentiu algo rastejando em seu pé, e começou a chutar, tentando achar a parede. Encostou a mão em cima do que parecia uma mesa, e pegou algo parecido com uma capa. A Capa Preta.

O ar começou a ficar gelado, e a garota acabou colocando a capa. Imediatamente, sua visão clareou, e embora o lugar estivesse escuro, ela conseguia ver tudo. A coisa que estava se agarrando ao seu pé se afastou, e para o horror da garota, era o que parecia ter sido uma mulher um dia, toda deformada.


O lugar era apavorante. Havia corpos mutilados, símbolos que ela nunca tinha visto, e espítiros mals a encaravam, a olhando com ódio.

–Laaarrguee eesssaaaa caaapaaa gaaaroootiiinhaaa - Um dos espíritos sibbilou, maldosamente.

–Laaarrgueeee paaarrraaa qqqquuueee eeuuu pooossssaaa teeee toooocaaaarrr. - Outro sibilou.

A garota não sabia na época, mas a capa, embora amaldiçoada e feita com o sacrifício de uma mulher, a protegia. Ninguém poderia encostar nela enquanto usasse.

Rapidamente, a garota saiu dali, e foi contar o que aconteceu a sua mãe. A mãe brigou com ela, por estar estragando a festa da irmã. O padrasto apenas observava, impassível.

Ficou de castigo, um mês sem poder sair de casa, e toda noite ouvia sussurros em seu ouvido, de que ele iria voltar pra buscar a capa, e que se não encontrasse, a mataria. Assustada e com medo, passou a usar a capa pra todo lugar que ia. Ela andava aflita, olhava pra todos os lugares, com medo de que seu pai voltasse e descontasse sua raiva nela.

–Me ajude. - Ela tinha dito pro padastro. - Ele vai vim atrás de mim. Ele quer a capa, não sei por que mais quer. Ele vai fazer maldades. Me ajude.

Ele não acreditou. Ele disse não. "


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Notas finais do capítulo

Como o capítulo ficou muito grande, vou postar em outro o que aconteceu com a garota no banco.



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