Numa simples casa, em seu pequeno quarto, ela estava dormindo inquieta. Mexia e remexia-se sobre a cama. Seus lençóis e cobertores já não mais a cobriam, estando todos caídos no chão.

Doko kara kita no?
De onde é que eu venho?

Das ruas da vizinhança podia ouvir-se uma doce a harmoniosa voz. Grossa e levemente rouca, não havia como negar que vinha — com toda a certeza — de um homem, provavelmente jovem.

Donna sugata o shite iru no?
Qual é a aparência que tenho?

Mas sua forma e aparência estavam escondidas pelas sombras que haviam por aquela escura e fria noite.

Noite da qual nem mesmo Tsukuyomi atreveu-se a realizar adequadamente seu trabalho, e trazer aos céus noturnos a iluminação, frágil e delicada, que a Lua proporciona aos homens.

Dare mo shiranai
Ninguém sabe

A bela jovem acorda de seu perturbado sono, assustada. Um pesadelo. Mais uma vez.

Estranhamente, nos últimos dias Yumiko — uma doce e gentil garota de cabelos na cor do chocolate que alcançavam o meio das costas, olhos num tom de azul-escuro como o céu daquela noite, com uma pele alva, e no augue de sua adolescência, tendo completado à poucos dias suas 15 primaveras — vinha tendo muitos pesadelos. Ela só queria tirar esses sonhos de sua mente.

De sua vida.

Sou sa boku ga yumekui shirokuro, baku.
Sim, eu sou o monocromático comedor de sonhos, baku.

Yumiko então, recordou de algo que sua mãe contou-lhe quando pequena. Parecia coisa de criança, bobagem, mas estava disposta a fazer qualquer coisa, desde que isso afastasse aqueles — malditos — pesadelos de sua cabeça.

— Dou meu sonho para o baku comer. — Repetindo essa frase mais duas vezes, o ritual foi feito.

De acordo com sua mãe, isso bastaria e ela poderia voltar a dormir. Yumiko só não esperava por aquilo.

Kore wa ojousan
Esta jovem está...

A garota ouviu a melodiosa voz cantar-lhe próxima aos seus ouvidos — ou orelhas, como seu irmão provavelmente corrigiria-lhe, já que “cientificamente falando, agora existe somente orelhas” —, assustando-a.

Ela virou, pronta para dar um belo tapa de quem quer que fosse o invasor de seu quarto. Mas ao completar tal ato, já não encontrara mais ninguém.

Yonaka nemurezu ni iru no kai?

Com problemas para dormir durante a noite?

A voz soou novamente, desta vez, vindo da borda da cama da garota. Yumiko virou-se e encontrou nada mais, nada menos, que um belo rapaz. Ele possuía a aparência similar à de seu irmão mais novo, Ryuu.

Cabelos negros e desgrenhados, olhos castanho-avermelhados, pele clara como a dela. De fato, era parecido com seu irmão. Mas o sorriso travesso e um tanto malicioso que tinha no rosto, e o olhar divertido que carregava, era algo que com toda certeza seu irmão nunca mostraria. Ele era inocente — e distraído — demais para mostrar tais feições.

Além de que parecia ter aproximadamente a idade dela, com um ou dois anos à mais. Ryuu era três anos mais novo que Yumiko.

— Quem é você? — Perguntou a menina.

— Ora, ainda pergunta-me isso? — Disse o rapaz. Mesmo que somente falando, sua voz ainda era harmoniosa. — Tu me chamas e não sabes quem sou?

— Chamar? Mas eu não chamei… — Yumiko é interrompida pelo garoto, que apesar de com certeza belo, vestia-se de forma um tanto peculiar.

— Disses que dar-me-ia teus sonhos para que eu os comesse, não? — Falou o moreno

De forma antiquada, talvez seja melhor para descrever suas vestimentas, bem como suas falas. Usava uma camiseta bege listrada com um colete preto por cima, e a clássica calça — igualmente preta — formava o conjunto, faltando apenas o paletó para completar o visual. Vestia também o sapato típico para esse conjunto, um chapéu preto e uma bengala de madeira acompanhavam o garoto.

— Hã? Mas eu… Você é o baku?! — Perguntou espantada

— Sim, senhorita. — Falou com um sorriso.

— Mas você não deveria ser um youkai, com o corpo de um urso, pernas de tigre, o nariz igual a de um elefante, com a calda de um boi e os olhos de um rinoceronte? É assim que contam… — Disse Yumiko. — E por que tão parecido...

— Posso adotar forma humana, menina. — Respondeu o “baku” — E portanto adotei a aparência que lhe fosse mais familiar. E… Achas mesmo que sou assim? Aos olhos humanos, minha cara, adoto a foma que lhes convém, quando assumo minha verdadeira aparência.

Ele em nenhum momento desfez o sorriso. Ela agora já estava mais relaxada. De que outra forma afinal ele entraria no quarto, que ainda mantinha as janelas trancadas e a porta em nenhum momento fora aberta, se não fosse o que diz ser?

— Pergunto-lhe novemente jovem dama: Estás com problemas para dormir esta noite?

— Sim… — Disse ela num murmuro.

Sore nara boku ga
Nesse caso, talvez eu deva…

O baku voltou a cantar. Sua voz era verdadeiramente encantadora, e Yumiko se surpreendeu com a doçura na voz do ser à sua frente.

Mahou o kakete ageyou ka
Te lançar um feitiço.

Ele se aproximou mais da garota e sentou na borda da cama, bem perto dela. Estendendo-lhe a mão, com o mindinho erguido, cantou:

...Hora yubikiri de yakusoku shiyou
...Anda, vamos juntar os nossos dedos e fazer uma promessa.

— Promessa? — Perguntou Yumiko

— Sim — Respondeu-lhe o baku. Ela entrelaçou o seu próprio mindinho ao dele. — Teu nome?

— Yumiko. Suzuki Yumiko. — Falou a menina

Kowai yume o mita? Boku ni makasena yo
Você teve algum pesadelo? Deixa que eu trato disso
Marugoto tabete ageyou
Eu vou comê-los completamente

Cantou ele. A menina sentia todo o peso de suas costas esvair-se.

— Mas lembre-se, terás que pagar um preço por meu serviços. — Falou o baku

— Posso fazer qualquer coisa. — Disse Yumiko

— Tens certeza? — Como resposta, ouve somente um acena afirmativo da cabeça dela. — Na lua cheia, o preço terá que ser pago por ti. Lembre-se disso.

Mou shinpai nai yukkuri oyasumi
Não há mais preocupações agora você pode dormir tranquila
Ya na koto zenbu wasurete sa
Esquecendo todas essas coisas horríveis.

Ele cantou novamente para ela, e ajudou-a a deitar-se na cama. Sorrindo para Yumiko ele disse:

— Durma por hora, chame-me sempre que precisar, Yumiko-hime-sama — Em seguida, o baku desapareceu, e a jovem em segundos adormeceu.

Desta vez, sem pesadelos.

*x*x*x*x*

Segundo dia da lua crescente. Finalmente, Tsukuyomi resolveu aparecer para iluminar a noite, mesmo que ainda timidamente.

Yumiko esta sentada em sua cama. A dias ela já não mais tinhas pesadelos, mas agora eles voltaram. Pensou se chamaria novamente aquele misterioso ser que surgira diante dela a algum tempo atrás, um baku como ele disse ser.

— Baku… — Murmurou a garota — Dou-lhe meus sonhos para você comer.

A frase fora repetida mais duas vezes, como na última vez em que ela teve os pesadelos. Não demorou, e logo ela pode ouvir a voz daquele ser.

— Mais pesadelos, Hime-sama? — Falou o baku

— Isso — Disse num murmuro

— Então acalme-se que logo eles irão sumir.

Em seguida ela pode sentir um alívio quando o moreno “comeu” os pesadelos levando embora as ruins sensações que estes traziam, bem como toda a má sorte que eles carregavam.

— Baku… — Murmurou ela antes que ele sumisse.

Kore wa ojousan...
Esta jovem, está...
Mata tanomigoto ga aru tte?
Dizendo que tem outro favor a me pedir?

— Sim… — Respondeu ela

Sorrindo para a morena, o baku continuou a cantar com sua rouca voz.

Kotowaranai sa
Eu não vou recusá-lo
Kore koso ga boku no shiawase
Já que isto me deixa realmente feliz

— Não consigo mais dormir. Já estou acordada a algum tempo.

— Posso ajudá-la com isso Yumiko-hime-sama — Falou calmamente — Mas…

...Sore nara kisu de yakusoku shiyou
...Nesse caso, vamos fazer uma promessa com um beijo

— Um beijo?! — Perguntou ela espantada. Não esperava por isso

— São as normas. — Respondeu ele

Motto yume o mitai? Boku ni makasena yo
Você quer sonhar um pouco mais? Deixe que eu trato disso

— Entretanto, só posso fazê-lo se selarmos o contrato. — Disse-lhe, agora, sério. Mas ainda calmo.

— Bem, eu… Certo. — Falou a menina.

— Tens certeza que queres isto? Estás ciente que terás que pagar o preço futuramente… — Alertou-a, novamente, o youkai.

— Tenho certeza.

Ele aproximou-se dela, ainda sentada na cama, e inclinando-se sobre a garota tocou-lhe os lábios com os seus. O singelo “selinho” não durou mais que pouco segundos. Mas isso bastou para que Yumiko sentisse um arrepio passar-lhe nas espinha.

Ela nunca beijara antes, e seu primeiro beijo acabou por ser com um youkai. Um youkai de bela aparência, mas um youkai.

Zenbu ataete ageyou
Eu vou te dar um pouco de tudo

— O que queres que eu faça por tu, Hime-sama? — Falou ele

— O que você pode fazer por mim? — Perguntou Yumiko

— O que você quiser. — Disse o baku.

Depois de poucos minutos, quando ela já adormecera, o youkai sai do quarto da garota e pelas ruas da vizinhança pôs-se a cantar.

Kanbi na sutoorii tanbi na inmu o
Belas histórias, apetitosas e perversas fantasias
Kokoroyuku made meshiagare
Eu vou comê-las até você ficar satisfeita

— Yumiko-hime… — Falou o baku para o vento — Você terá que pagar o preço. E ele não é pequeno…

Continuando sua caminhada, girando sua bengala e olhando para o céu com a Lua, começando a aparecer timidamente, ele cantava.

Motto, motto nozomeba ii
Você pode ter mais e mais favores
Yokubou o sarakedashite
Me fale os seus desejos

O baku sorriu, agora um tanto perversamente, sorriso do qual ele, por hora, não pretendia mostrar a sua “hime-sama”. Sua contratante realmente não fazia ideia de onde estava se metendo e o youkai estava ciente disso e também sabia das consequências que isso iria trazer a garota.

Mou nido to nukedasenai
Você nunca mais vai ser capaz de escapar
Sokonashi no paradaisu da
Deste paraíso interminável

Mas não é que ele se importasse realmente com isso… Ele só tinha que fazer o seu trabalho até o fim, e logo ele receberia sua recompensa.

Saa, tsuki ga michita nara yakume wa owari sa
Bem, quando a lua cheia chegar, o meu trabalho estará terminado

*x*x*x*x*

Lua cheia. A noite estava bela, com a Lua trazendo sua bela e delicada luz prateada e as estrelas acompanhando-a. Quase nenhuma nuvem pairava no céu.

Numa simples casa, em seu pequeno quarto, ela dormia tranquilamente. Aconchegada abaixo de seus cobertores e lençóis.

Yumiko é acordada com o cutucar de alguém. Sentou-se em sua cama, e quando seus olhos se acostumaram com a escuridão do quarto, ela percebeu a presença do baku.

— O que faz aqui? Eu não te chamei desta vez… — Falou a menina

— Não precisava chamar-me desta vez. Já é lua cheia, meus serviços acabaram Hime-sama. — Falou sorrindo — Hora de pagar o preço.

— E qual é? — Perguntou ela.

O-dai wa...wakatte'ru yo ne?
O pagamento será...você está bem ciente disso, certo?

Um aceno afirmativo vinda menina bastou para que ele continuasse, agora com um sorriso não muito gentil em seu rosto.

Sono hitomi no oku azayaka na yume
Dentro desses teus olhos, esses sonhos vividos,
Zenbu, zenbu moratte ikou ka
Devo tirar tudo, tudo que te pertence

Ela arregalou os olhos, e assustada tentou afastar-se do youkai. Havia ela entendido direito?

O baku sorria-lhe agora perversa e cruelmente, conforme ela começava a sentir diversas sensações.

Sua esperança, aos poucos, saia de seu corpo. Sua alegria começava a esvair-se. Seus sonhos, objetivos, começavam a parecer completamente impossíveis...

E inalcançáveis.

Mijime na kao da ne kore ga genjitsu
Que feição mais desgraçada, está é a realidade
Kimi ga eranda koto darou?
Não foi você mesma que escolheu isso?

Ele cantou, ainda sorrindo cruelmente para ela. Ele sempre soube, e sempre avisou a ela que teria que pagar um preço. Ela continuou, simplesmente, por que quis.

Agora, ela nunca mais teria pesadelos.

Yume ni oboretara yume wa kanawanai
Se você apenas tiver "sonhos", os teus sonhos nunca irão se realizar

Mas também já não teria mais sonhos.

Pois todos eles, foram devorados pelo baku.

...Monokuro no sekai e youkoso!
...Bem vinda a esse mundo monocromático!