Nascidos da Noite - Livro Rigor Mortis escrita por Léo Silva


Capítulo 7
Capítulo 7 - Sonhos despedaçados




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Flórida, Estados Unidos, 2020

Clarissa suspirou profundamente e sentou-se diante da parede perfeitamente branca.

Estava descalça, para não perder o contato com este mundo. Em uma das mãos segurava um copo de água-benta (para a libertação) e na outra um crucifixo (para não perder sua alma). A mente de um vampiro é como uma terra árida onde nada além do mal cresce, e Clarissa sabia disso (mais do que gostaria de saber, inclusive). Entrar nela poderia ser a última coisa que faria. E se fosse descoberta, rastreada, seria seu fim.

Douglas ajudou-a, segurando uma foto onde Clarissa e Kassius apareciam juntos. Na verdade apenas as roupas de Kassius eram visíveis, flutuando ao lado de Clarissa.

Ela olhou detidamente para a foto – os olhos procurando por uma pessoa que não estava lá, mas que ela sabia que estava lá. Durante muito tempo aquela foto pareceu perfeita, mas agora era apenas uma prova do quanto fora ingênua. Douglas pareceu ler seus pensamentos, e tocou-a de leve no ombro.

— Um dia você vai se perdoar – disse ele.

Clarissa limitou-se a sorrir levemente. Não havia pelo que se perdoar. Precisava corrigir os erros do passado, isso sim. Douglas começou a mexer no livro, procurando por algo que não estava ali – ou talvez protelasse na expectativa de fazê-la desistir.

— Tem certeza de que quer fazer isso? – perguntou ele.

— Tão certa quanto essa luz que nos ilumina.

— Ótimo. Então vamos começar.

Douglas nunca tinha conduzido um ritual de projeção astral antes, nem mesmo de possessão – mas assistira a ambos, e agora conduziria os dois ao mesmo tempo. Sabia que a projeção astral era um dom, geralmente a pessoa nascia com ela, mas também sabia que era possível projetar a própria alma com os encantamentos corretos – menos eficientemente do que quem tinha o dom, mas era o que tinham naquele momento.

— Douglas...

— Sei o que vai perguntar, e não precisa se preocupar. Isaac está morto, não pode lhe fazer mal.

Clarissa não tinha tanta certeza disso. Algo lhe dizia que Kassius ainda tinha alguns truques na manga, bons truques. Mas ela empurrou aquele temor para o fundo de seu estômago, e esperou digeri-lo até desaparecer por completo.

Douglas abriu o Livro das Lamentações em uma página onde se via uma enorme figura. Na figura uma criança voava em um céu enegrecido – e seu corpo repousava tranquilamente em sua cama. Ela tinha o dom da projeção astral.

— Enquanto estiver fora, deve manter sua mente livre de qualquer preocupação – disse Douglas, passando as mãos pelo livro. – Deve apenas entrar na mente de Kassius, ver o que ele vê, sua localização, e então voltar para cá. Nada mais. Nada de tentar fazê-lo pular de um lugar alto ou espetar uma estaca no próprio coração. Se precisar voltar imediatamente basta beber a água.

— Tudo bem, não vou tentar bancar a heroína.

Douglas ajoelhou-se em frente a Clarissa. Fitou-a detidamente, seus olhos se encontraram, se afastaram e voltaram a se encontrar novamente.

— Mas nós somos os heróis... E você não precisa fazer isso.

— Douglas, eu não sei conduzir a cerimônia, e Juliette e Evan não estão aqui. É tudo o que posso fazer.

Ele assentiu com os olhos.

— Nós vamos encontrá-los depois que descobrirmos o que Kassius pretende – disse Douglas se levantando. – Enquanto isso, se concentre no que tem que fazer.

Clarissa concordou, e olhou para o crucifixo em sua mão. Que Deus nos proteja.

***

Ela virá, sei que virá.

Kassius terminava de costurar a cabeça de Isaac a seu novo corpo. Ficou meio desproporcional, mas serviria para o propósito que ele imaginara.

E quando vier terá uma surpresinha bem desagradável, e aprenderá a não mais mexer com Kassiano Francisco III.

Terminou de costurar e olhou detidamente para a horripilante face de Isaac. Seus olhos se abriram, brancos feito dois ovos cozidos. Quando abriu a boca, uma mistura de vômito e sangue saiu. Ele tossiu, então encarou Kassius.

— O que está acontecendo?

— Olá Isaac. Bem-vindo de volta ao mundo dos vivos.

Isaac olhou para as próprias mãos, como quem nunca tinha visto mãos antes.

Desajeitadamente, ergueu-se da banheira – água estava cheia de sangue. O Isaac vermelho e nu escorregou e caiu novamente dentro da banheira. Naquele momento Kassius já estava longe o suficiente para não ser atingido pelos fluídos.

— Achei que eu estivesse morto – disse Isaac.

— E estava – Kassius mantinha os braços cruzados. – Eu trouxe você do mundo dos mortos. Jurou obediência a mim, Isaac, e agora terá que cumprir seu juramento.

Isaac conseguiu se levantar. Saiu da banheira espalhando água e sangue pelo chão, e parou em frente a Kassius.

— O que quer que eu faça? Esse corpo... É muito grande para mim... – disse com o pescoço meio tombado.

— Foi o melhor que consegui, seu mal agradecido! – Kassius mantinha um sorriso diabólico no rosto. – E logo você se acostuma. Por hora precisamos apenas esperar. Ela virá até mim.

Isaac ainda olhava para o próprio corpo com uma mistura de curiosidade e desprezo.

— Clarissa?

— E quem mais? Quem tem o poder de me tirar do sério com sua impertinência? Quem ainda tenta deter minha ascensão?

Kassius sentou-se na cama. Apertou os lençóis entre os dedos.

— Quando ela chegar eu quero que dê um jeito nela. Use seu dom.

— E depois? O que fará comigo?

Kassius mantinha o olhar distante.

— Depois poderá descansar, Isaac. Eu o libertarei de seu juramento, Isaac. Então poderá descansar.

Isaac encarou Kassius.

— Tenho uma ideia melhor: acho que já sei qual o corpo ideal para mim.

****

Clarissa tentou manter sua melhor lembrança em mente enquanto fazia a travessia entre os dois mundos.

Mas a lembrança que tinha não era tão boa assim.

Estava em uma campina, e corria por entre as flores amarelas. Crisântemos. Um campo inteiro deles. Clarissa corria, suas pernas quase se entrelaçavam, e ela corria. O pai a esperava em um lugar mais alto, e quanto mais Clarissa corria, mais distante dela o pai parecia. Ela via o pai, mas o pai não parecia vê-la. E Clarissa continuava correndo.

Atravessar os mundos era como ter sua alma rasgada ao meio por uma lâmina. Clarissa sentia como se cada poro de seu corpo fosse perfurado por uma agulha, lentamente, até o limite da dor. Então, era puxada para os lados, a pele se esticando e esticando até romper com um estrondo.

Tudo se transformou em nada diante dos olhos de Clarissa.

Então, o amarelo ficou branco, e Clarissa se viu flutuando por cima de si mesma. Por cima de Douglas. Estava fora de seu corpo. Havia feito a passagem, e agora via a si mesma lá embaixo, como se olhasse um estranho.

Preciso procurar por Kassius. Aqui o tempo passa lentamente, como se fosse comprimido. Então, tenho tempo. Começou a flutuar para longe dali.

Deixando seu corpo para trás, Clarissa flutuou para longe do hotel onde se encontravam. Primeiro, estranhou não sentir mais nada do que costumava sentir quando ainda estava encarnada— como o vento ou a sensação de peso. Estava completamente livre de tudo o que caracterizava a vida humana.

Ela voou por cima dos prédios. Viu os carros passando velozes nas auto-estradas, pessoas caminhando nas praias e outras nadando. Viu as ondas quebrando contra a areia. Estava se distraindo. Precisava se concentrar – e tentar encontrar a vibração exata de Kassius.

Desceu ao nível da areia e se concentrou. Projetou a imagem de Kassius em sua mente – de uma forma tão clara que foi como se ele estivesse ali, na sua frente.

Foi como se um interruptor fosse pressionado dentro de Clarissa, e de repente ela conseguisse ver a aura de Kassius – um emaranhado de fios vermelhos se dirigindo na mesma direção. O oceano. Os fios iam em direção ao oceano.

Clarissa começou a seguir os fios. E, à medida que avançava, sentia-se cada vez mais próxima de seu objetivo – e também mais assustada. A força emanada por Kassius era impressionante, ela conseguia senti-la consumir suas esperanças, ferozmente, e ela não podia fazer nada para evitar.

Quando os fios se tornaram um só, ela entendeu. Kassius estava em um enorme navio. O Gigante dos Mares.

Clarissa desceu, e ficou ao nível do navio. Conseguia ver a aura vermelha que envolvia Kassius dentro de uma das suítes do navio. Certamente ele esperava por ela – sabia que ela iria, mais cedo ou mais tare teria de se encontrar. E por Clarisse, que fosse mais cedo. Quanto mais rapidamente enfiasse uma estaca no coração de Kassius e consertasse seu erro, melhor.

Ela adentrou o cômodo cautelosamente.

Kassius estava deitado sobre uma enorme cama de casal. Abriu os olhos quando Clarissa se aproximou.

— Clarissa – disse, sentando-se na cama.

Ele pode me ver!

— Sabia que viria – continuou Kassius, encarando a versão astral de Clarissa.

Ela encarou-o com ódio no olhar.

Estavam frente a frente.


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