Nascidos da Noite - Livro Rigor Mortis escrita por Léo Silva


Capítulo 14
Capítulo 14 - Noite feita de sangue




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/482420/chapter/14

São Paulo, 2020

As ruas eram demasiadamente assustadoras à noite – mesmo antes dos semi-vivos se mostrarem. Agora, sair de casa sem proteção era suicídio.

Samanta ia um pouco à frente, como se guiasse Cachorro Louco pelas ruas de São Paulo. Antes de saírem ela disse algo do qual ele se lembraria para sempre. Ainda estavam diante da fogueira, onde brasas crepitavam. Feito estrelas no chão.

Eu não sei o que determina de que lado estamos. Não sei que força é essa que nos impulsiona. Só sei que é assim, que sempre foi assim. Não consigo imaginar, por mais que me esforce, uma única explicação lógica para alguns serem considerados bons e outros, maus. Heróis e vilões. Anjos e demônios. Humanos e vampiros. Mas posso te garantir que eu não escolhi ser isso que eu sou. Eu me tornei isso. Sabe, eu queria ser feliz, queria mesmo. Ser normal, como toda garota da minha idade. Então, uma noite, aconteceu. Mas não foi uma fatalidade, não, não foi. Certamente o vento me disse que eu deveria estar ali, e deveria passar por isso. E eu estava lá, e agora tenho que lidar com isso. Não sei o que está acontecendo, a sociedade mudou um pouco, mas acho que não mudou o bastante. Ainda somos olhados de lado, como se fôssemos os (únicos) monstros. Talvez eu tenha um pouco de culpa, não sei, mas também sei que há outras pessoas nisso, tão culpadas quanto eu. E são essas pessoas que nós visitaremos hoje à noite. Eu não garanto que será agradável, mas sei que será necessário. E eu vou precisar da sua ajuda, assim como você terá a minha.

A senhora que toma seu chá. O padre. O vendedor de caixões. Todos terão que me encarar antes desta noite terminar.

Dito isso, começaram a caminhar por São Paulo. 

Primeiro, Samanta pensou em roubar um carro. Depois desistiu da ideia, se esgueirar pelas sombras pareceu mais sensato. Dois garotos dirigindo poderia chamar muito a atenção de alguma autoridade. Dois garotos de rua, por outro lado, não chamam a atenção de ninguém.

Trinta minutos de caminhada e chegaram ao endereço que ela já conhecia da outra vida: um sobrado mal iluminado, cujo enorme portão de ferro ostentava diversas cruzes de carvalho. Samanta parou a alguns metros, protegida pela sombra. A moradia era rodeada por altos muros cobertos de musgo, e parecia abandonada.

 – Preciso que abra o portão, entre na casa e me convide – disse ela, mostrando a ele uma chave enferrujada.

 – Não pode simplesmente voar por cima do muro? – perguntou Cachorro Louco.

 Samanta sorriu. Sob a parca luz que a atingia ela parecia uma estátua ornamentada por dois rubis, que eram seus olhos brilhando no escuro.

 – Meu querido, e não se valem os mortos dos caminhos dos vivos? A magia que me impede de entrar está em todos os lugares.

 Ele entendeu. Deu dois passos na direção do portão. Enfiou a chave no velho cadeado e girou-a. Empurrou o portão, ele gemeu e começou a se movimentar. Cachorro Louco entrou, Samanta seguiu-o e foi esconder-se nas sombras do quintal.

 O garoto caminhou até a porta do sobrado. Tudo estava coberto por teias de aranha. Ela garantia que alguém ainda morava ali, aparentemente alguém que não se preocupava nem um pouco com higiene. Apertou o botão da campainha, ele afundou e desapareceu. Claro que não está funcionando. Deu duas batidinhas na porta. Se queria poder convidar Samanta para entrar não poderia simplesmente invadir, mas teria ele mesmo de ser convidado pelo dono. Ela não resiste a garotos, jovens, disse Samanta. Vai querê-lo, acredite em mim. Deu mais duas batidas, e não obteve resposta alguma.

  Cachorro Louco olhou para as sombras e viu um braço apontando. Ele começou a dar a volta pelo prédio. Havia muito mato, e árvores mortas com galhos e raízes retorcidas que pareciam mãos prestes a agarrá-lo. Alguém deveria limpar aquele lugar. Havia, também, um poço coberto por tábuas de madeira, parcamente iluminado por um pequeno poste. Do outro lado, ele encontrou uma porta. Pregado a ela havia um enorme crucifixo. Jesus com os olhos caídos, e uma expressão de total desalento. Não estariam todos eles assim?

  Cachorro Louco levou a mão na direção da maçaneta, então a porta se abriu e ele foi atingido por um spray que o fez cair de costas sobre uma das raízes retorcidas. Ainda se recuperando do susto e do ataque, olhou para a porta aberta.

  A mulher que o atingira era uma senhora, talvez rondasse os cinquenta anos. Usava óculos que pareciam pára-brisas de caminhão e vestia uma camisola de renda preta. Os cabelos começavam a esbranquiçar, e ela parecia prestes a atacá-lo.

   – Por que não está derretendo? – perguntou ela.

   – Não sou um vampiro.

  Cachorro Louco se levantou. Os olhos da senhora não o largavam nem por um segundo. Ela ainda segurava o spray de água benta apontado para ele, talvez duvidando que o tivesse acertado e esperando por uma segunda chance.

  – Então deve ser um ladrão... É, hoje em dia quem não é vampiro, é ladrão.

  – Não sou nenhuma das duas coisas, senhora – disse ele, finalmente de pé.

  As costas doíam um pouco por ter caído de mau jeito, e Cachorro Louco gemeu ao tentar acertar a postura.

  – Então, por que tentou invadir minha casa? O que quer aqui?

 Cachorro Louco encarou-a. Enquanto caminhavam, Samanta explicou seu plano. A mulher não resistia a um garotinho, essa era sua fraqueza. Sim, vergonhosa fraqueza. Depois de fazer o que queria ela costumava jogá-los no poço. Então ela continuava. Sempre queria mais.

 – Eu não tenho família... Nem casa. Achei que esta casa estava abandonada...

 Por um instante ele achou que os olhos dela brilharam de uma forma estranha. Talvez caísse no conto do vigário.

  – Mas não está, como deve ter percebido. Agora, vá embora! – gritou a mulher.

  – Eu posso trabalhar por comida... Limpar o quintal – insistiu ele.

 Por um instante a mulher ponderou entre mandá-lo embora mais uma vez, ou entrar, pegar a espingarda do marido e atirar nele. Depois, pensou melhor. Por ora não precisava dele, mas as coisas não estavam muito boas no Brasil. Poderia ficar mais difícil conseguir o que ela precisava. E ele não era um vampiro.

  A mulher baixou o spray.

 – Tudo bem... Você pode trabalhar... Como é mesmo o seu nome?

 – Eu me chamo Adam.

— Meu nome é Dorotéia. Adam, Você começa amanhã. Por ora, entre e vamos conversar.

 O garoto, que não se chamava Adam, entrou no sobrado, observado por dois olhos vermelhos imersos na escuridão. Aquela noite de sangue estava apenas começando.

***

Londres, Inglaterra, 2020

Lord August tomava uma taça de vinho quando Florence entrou no aposento.

A vampira sentou-se na cama, ao lado dele, e abraçou-o delicadamente. Ele olhou para ela com carinho. Acariciou os longos cabelos de Florence. De olhos fechados, a vampira parecia em transe.

 – Minha doce Florence – sussurrou ele. – Como está nosso hóspede?

— Nesse momento despoja a jovem senhora – disse ela, abrindo os olhos.

Sim, era exatamente o que ele precisava (embora não gostasse de como aquilo soara). Que Simon fizesse sua parte e deixasse um descendente antes de partir. Deveria, inclusive, batizá-lo assim que tivessem certeza do sexo (e seria convenientemente bom se fosse um homem, embora não estritamente necessário). Florence sabia como prever o sexo de bebês desde muito cedo, tinha de admitir que nisso ela era boa.

  – Sentirá sua falta? – choramingou ela de repente.

 August levara a mão à taça e tomava mais um gole do vinho. Quando terminou, voltou a olhar para ela, alisando levemente seus cabelos recém penteados.

 – Por que sentiria, se tenho você? – mentiu.

O olhar da vampira pareceu condescendente. Ela apoiou a cabeça no ombro de August, e suspirou.

— Por que o senhor, meu lorde, anda um tanto quanto... melancólico.

— Minha doce e inocente Florence, sabe o que acontecerá quando Kassius cumprir sua demanda pela Noite Eterna?

Florence ergueu os olhos para o mestre. Não disse palavra alguma, nem precisava. Sabia que aquele tempo juntos tinha sido terrivelmente longo, porém, igualmente feliz. Se vampiros ainda podiam sentir alguma coisa – e ela queria que a resposta para essa indagação fosse um retumbante sim—, Florence sentia que amava August.

— Primeiro, ele abrirá as portas do Outro Mundo. Depois, todos ouvirão O Chamado dos Primeiros. Aqueles que atenderem irão guerrear contra os humanos resistentes. Quem não atender será caçado e destruído. Diante desse quadro, não tenho o direito de sentir ciúmes ou saudades do nosso hóspede.

Embora sinta, quase acrescentou. Realmente sentirei.

— Quando as trombetas soarem, toda a magia que aqui nos encerra acabará. Será o fim da nossa Idade Média – disse ele. – Minha época preferida, realmente uma pena. Talvez o Renascimento fosse um pouco mais interessante pela alta produtividade dos humanos, mas a Idade Média foi a melhor época para ser vampiro.

Bebeu mais um gole do vinho.

Florence sabia que os poderes de August iam muito além de controlar o tempo ao seu redor – assim como desconhecia totalmente a extensão dos mesmos. Todo poder tem um limite, ele dizia, mas é importante que o inimigo o desconheça. Assim, tinha dúvidas o quanto ele escondia.

 – O que fará se Simon falhar em sua missão? – perguntou ela.

 Lord August permaneceu calado. Sim, havia essa possibilidade. Sempre há. Mas não queria pensar nisso. Queria acreditar, por um segundo que fosse, que estava fazendo a coisa certa desde muito tempo. Desde que ele mesmo falhara em sua missão. Por isso, preferiu o silêncio, embora soubesse exatamente o que faria caso tudo saísse terrivelmente errado.

 Florence não insistiu.

 – Por que não toca alguma coisa para nós? Nem me lembro quando foi a última vez que ouvi a Moonlight Sonata.

Florence levantou-se com um sorriso no rosto e foi para o piano. Começou a tocar, enquanto Lord August se servia de outra taça de vinho, e mantinha aquele olhar melancólico que o tomara por completo nos últimos dias.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Nascidos da Noite - Livro Rigor Mortis" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.