Histórias De Monstros E Homens escrita por Larissa Megurine


Capítulo 1
Patas Sujas




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Naquele tempo, a floresta era enorme. As árvores viviam por centenas de anos e atingiam incríveis alturas. De seus troncos grossos, brotavam inúmeros galhos, que serviam de lares para aves e para aqueles que pudessem escalar até lá. A grama macia extendia-se por toda a vasta região e geralmente trazia um cheiro agradável de orvalho ao ambiente, mesmo quando o sol já estava alto no céu. Aqui e ali no chão, bem como nas copas das árvores, vérias flores conferiam à paisagem verde outras cores. Era um lugar belíssimo!

Eu sei porque eu vi. Eu vivia lá, assim como muitos outros, antes de tudo mudar. Devo alertar-lhe que, com minha cabeça de animal, posso não ser capaz de explicar os pensamentos e sentimentos dos humanos desta história... Segundo dizem,nem eles mesmos sabem explicá-los. Mas tentarei.

O ano era 3084. Bem nos limites da floresta, existia o Reino da Landísia, que era governado pelos homens. Eles estavam completamente cientes de nossa existência, mas preferiam interagir apenas com os de sua própria espécie.Fora isso, não me recordo de nada muito especial a respeito de lá.Mas o que interessa é que, bem no início do inverno daquele ano, nasceu um menino. Ele foi sempre muito bem cuidado e cresceu saudável, ainda que não tivesse garras nem penas.

Quando ainda era muito novo, uma libélula moradora da floresta entrou em seu quarto e falou com ele. O garoto assustou-se, a princípio, pois antes só havia falado com outros humanos, a maioria bem maiores do que ele, mas então ele sorriu e respondeu, com seu escasso vocabulário de criança, a pequena criatura. Ela logo percebeu que ele nada sabia sobre o mundo lá fora, ou mesmo sobre a floresta, e resolveu que zelaria pelo menino e ensinar-lhe-ia sobre todas as coisas, antes que crescesse e seus conhecimentos e opiniões estivessem demasiado distorcidos e imutáveis.

O menino era simplesmente fascinado pelo animal e pelas histórias que este lhe contava. Ele amava sua vozinha fina e o colorido de seu corpo. Não sendo capaz de chamá-la pelo que era, nem muito menos por seu nome real, o garoto chamava a libélula apenas de "Bela". Ela riu ao ouvir ser chamada assim pela primeira vez, mas gostou e deixou que o menino continuasse a fazê-lo. Por mais que ela fosse mais uma espécie de tutora, eles concordaram em dizer aos outros humanos que ela era "de estimação", para que não ocorresse nenhum escândalo. Os homens podem ser bem preconceituos com outras espécies...

A libélula passou quase oito anos com o garoto, nunca ficando longe por mais de uma semana. Um dia, no entanto, ela lhe disse que teria que ir embora, pois estavam surgindo complicaçõesna floresta. Ela completou dizendo que "nunca o esqueceria" e que "voltaria assim que possível", mas ele tinha perfeita noção de que "complicações" havia sido bastante eufêmico e que ele provavelmente não tornaria a vê-la. Isso o fez chorar incansavelmente depois que a amiga partiu. Por fim, cansado de ouvir os adultos falando que ele estava exagerando, ou que era só um animal tolo, o menino passou a repetir aos outros apenas que "Bela fugiu".

A perda da amiga libélula obrigou-o a se relacionar mais fortemente com as pessoas de sua idade. Só três crianças acreditaram em sua história e em sua não-usualamizade com o inseto. Eles se tornariam seus maiores amigos, mas também acabaram por tornar sua vida bem mais complicada, mais tarde.

Ele realmente achou que nunca mais veria a libélula.

–--

Foi quase dez anos depois que ela voltou.

– Onde está o garoto humano William? - Bela perguntou, pousando no parapeito da janela, para dentro da casa. Mas não era o mesmo local onde ele costumava viver. Era bem distante, a um mar de distância e provavelmente era única habitação humana em quilômetros. A casa ficava às margens de um lago de águas cristalinas e era inteiramente de madeira, pintada de branco. Pelo outro lado, a casa era parcialmente escondida por colinas suaves.

Quem ouviu a libélula, porém, não foi o menino seu amigo, mas uma moça alta e muito bonita. Ela tinha olhos bem escuros e cheios de atitude e cabelos avermelhados, que batiam pouco abaixo de seus dos ombros. Usava um vestido simples, que não conseguia valorizar sua pele clara, mas que também não a fazia parecer menos bela. Ao contrário da primeira reação do garoto, anos atrás, não havia espanto nos olhos dela ao ouvir o animal. Era quase como se já o esperasse.

– Você é Bela? - A jovem perguntou, sorrindo tímida e se aproximando.

– Eu sou. - A libélula respondeu, concordando com a cabeça pequenina.

– Venha. - A humana falou, chamando-a com a mão. - Vou levá-la até ele. Eu disse que você ainda viria...

Bela atravessou o quarto, seguindo a humana. Elas seguiram por um corredor, até chegarem a um lance de escadas, que a moça desceu rapidamente.

– Will! - Ela gritava, com um enorme sorriso no rosto. - Will! Bela está aqui! Ela voltou!

De repente, um rapaz saiu de um dos cômodos, aparentemente confuso com o que ouvia. Ele era bem mais velho que o menino de quem Bela se lembrava, mas os olhos mostravam que era a mesma pessoa, assim como o sorriso que abriu ao ver a libélula.

– Bela! - Ele gritou e correu até ela. - Pensei que nunca mais a veria... Como está,velha amiga? Ah, senti tanto a sua falta...

– Também senti a sua. - Ela respondeu, pairando à altura dos olhos dele. - Eu teria voltado antes, mas vós sabeis que a guerra tornou isso impossível...

Ao ouvir isso, tanto o rapaz como a moça desmancharam seus sorrisos e trocaram olhares tristes. William assentiu e a libélula prosseguiu:

– ... Era demasiado perigoso para todos nós... Vós nunca estiveis na guerra pessoalmente, mas posso lhes garantir que, lá na floresta, a situação era terrível!O conflito entre as abelhas e as aves já havia começado há algum tempo, antes mesmo que a guerra fosse declarada.

– Conte-me tudo, Bela. - William falou, ansioso. - Está tudo acabado? Sabe o que aconteceu às nossas famílias?

Houve um breve momento de tensão. Então a libélula começou a contar a história:

– Foi há cerca de um ano. - Bela narrou. - Havia uma garota, uma humana, na floresta. Ela usava um comprido casaco peludo, então conseguiu não chamar tanto a atenção dos outros animais... Ela estava sozinha, talvez perdida... As árvores gabam-se de ter feito a maior parte!... Tu deves lembrar-se do que te contei sobrei as árvores falantes; elas cantam as histórias para qualquer um que esteja perto o suficiente para ouví-las. Segundo elas, foi graças a seus conselhos que a moça não morreu na floresta. E elas contaram a ela tudo sobre a guerra, desde o dia em que ela começara.

" Conta-se que a rainha das abelhas, Zalejandra, não suportava mais ser subjugada na cadeia alimentar, já que eram elas que faziam as flores continuarem a florescer. Suas colmeias eram frágeis ao ataque de outros animais que, segundo ela, não compreendiam a complexidade de seu trabalho. A rainha começou a culpar as aves, que roubavam as árvores para fazer seus ninhos e as prejudicavam nos céus. Zalejandra conferenciou com todos os insetos e conseguiu, por fim, convencê-los a juntarem-se às abelhas numa guerra às aves. Foram usados todos os tipos de veneno nos ataques e os pássaros estavam sendo massacrados.

"Para igualarem as forças, as aves buscaram aliados. Os animais terrestres não queriam tomar nenhum dos dois partidos, pois diziam que a posse dos céus não lhes dizia respeito. Em desespero, elas foram além dos limites da floresta atrás de apoio. E, surpreendentemente, o encontraram. Tanto as criaturas da neve, das montanhas ao sul,quanto aqueles a quem se referiam como sendo 'os das patas sujas' aceitaram... Só mais tarde descobri que estes eram os humanos. Confesso que fiquei surpresa ao ver que que o senhor conseguiu que lhe escutassem e se envolvessem em uma guerra como esta... Mas fiquei igualmente feliz ao ver que o fez, ainda que tenham tido tantas perdas..."

– Landísia foi invadida! - William interveio. Havia revolta em sua voz, mas não se sabe se era com o que a libélula acabara de dizer ou com ele mesmo. - De nada adiantou que tivéssemos pactos com todas as aves das redondezas quando os exércitos das abelhas chegaram ao reino! Famílias foram destruídas e nem sabíamos como nos defender...

– O reino pode ser reconstruído. - Bela interrompeu. - Mas a aliança entre as espécies permanecerá. Aceite ou não, a vossa presença foi fundamental para o término da guerra.

" De qualquer modo, ela continuou por todo o inverno e mais um pouco. Não apenas os animais, mas a floresta inteira sofreu nesse tempo. A vida foi morrendo aos poucos... Já não havia mais tantas árvores e flores. Os bichos que não participavam das batalhas passavam os dias inteiros dentro de suas tocas, com um medo enorme do que os aguardaria se saíssem. Mas, de algum modo, a menina humana conseguiu liderar os aliados das aves em um ataque direto a Zalejandra e derrotou a rainha e seu marido. Esta parte da história tem já tantas versões que é impossível saber qual é a verdadeira... O fato é que, após isso, a guerra não teve mais razão para continuar. As aves, vitoriosas, todas reconheceram que a garota era uma heroína, mas ela desapareceu antes que qualquer um pudesse dizer-lhe isso. Também ninguém sabe quem ela era."

Fez-se um silêncio sombrio. Tantas coisas eles queriam saber...

– ... E nossas famílias? Tem notícias deles?- A ruiva perguntou. - Sei que chegou a conhecer meus pais, antes que fosse embora...

– De fato, os conheço. - Bela concordou. As famílias dos dois humanos eram muito próximas, então certamente ela sabia quem eram. Ela olhou para o rapaz. - Sua mãe voltou para o seu lar, junto com sua tia. Ambas lamentam imensamente sua partida, mas elas são fortes. Sei que conseguirão por suas vidas nos eixos novamente muito em breve... Mas o reino ainda terá certos problemas políticos, já que continua sem alguém para ocupar o trono.

William assentiu, entristecido. Bela olhou para a moça e continuou:

– Senhorita Leão, como sua casa foi atacada durante a invasão, a família de William os acolheu e seus pais estão vivendo com os dele.

– ... E meus irmãos? - Ela perguntou, ansiosa.

Bela suspirou e respondeu:

– Seu irmão perdeu a vida na última batalha, durante o ataque à fortaleza das abelhas. - A ruiva abafou um grito, cobrindo a boca com as mãos. William passou um braço pela cintura da moça. Ela o abraçou forte, enquanto ele tentava consolá-la. A libélula continuou, pesarosa. - O corpo dele foi encontrado nos arredores, um dia depois. Os outros soldados humanos o levaram para seus pais para que tivesse um enterro apropriado.

A garota escondia o rosto no peito de William e lágrimas escorriam pelos olhos dela sem parar, mas seu choro era mudo. O rapaz afagava seus cabelos e ele também parecia estar lutando para controlar suas emoções. Ele perguntou para a libélula, com a voz vacilante:

– Sabe o que aconteceu à irmã dela?

Bela negou com a cabeça pequenina e, um pouco hesitante, respondeu ao amigo:

– ... Nem sinal dela.

A ruiva desmoronou. Seus joelhos se dobraram, forçando ela e William, a quem ainda estava abraçada, a sentarem-se no chão. Ela começou a chorar alto e a soluçar. Agora, o rapaz não escondia mais a tristeza. Ele gritou, negando, enquanto suas próprias lágrimas se misturavam com as da garota. Em algum momento, Bela despediu-se dos dois, mas nenhum conseguiu dar muita atenção a isso. Quando já estavam exaustos de chorar, foi que passou por suas cabeças que deveriam ter pedido a ela que ficasse mais tempo.


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Notas finais do capítulo

Eu sei, é triste e não tem cara de primeiro capítulo... Mas, e aí, vão querer conhecer melhor a história de cada um dos personagens? Em breve, eu volto com a segunda história P.S.: eu sei que a linguagem desse capítulo estava... um tanto formal... Mas os outros, ou pelo menos a maioria, vai ser um pouco mais normal



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