Blue escrita por Juliana Natelli


Capítulo 2
Primeiro Natal


Notas iniciais do capítulo

Fiquei tão feliz que escrevi um novo capitulo! Obrigada a todas que comentaram!



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Dezembro de 1938

Já fazia duas semanas que eu estava hospedada na casa dos Mellark. Após passar aquele tempo convalescendo, eu finalmente me sentia bem e revigorada, apesar de estar em completo pavor por dentro. Era o dia em que o Sr. Mellark voltaria para casa. Peeta dissera que a única maneira de eu conseguir ficar ali por mais algum tempo era se eu pudesse convencer seu pai. Ele disse que faria o possível para me ajudar e me daria algumas dicas do que dizer ou de como agir.

– Primeiramente, olhe-o sempre nos olhos. Ele não gosta quando as pessoas não tem firmeza, entende? – dizia Peeta.

Estávamos no quarto de hóspedes em que eu estava acomodada, sentados na cama. Eu usava um dos vestidos antigos de sua irmã mais velha, Annie. Annie era cinco anos mais velha que eu e dois mais velha que Peeta, que tinha quase treze anos. Ela estudava numa internato só para garotas em uma cidade distante, por isso, passava pouco tempo na casa. Mesmo assim, eu estava ansiosa para conhecê-la nos feriados de fim de ano. Peeta só dizia coisas boas a seu respeito.

– Segundo, tente parecer à vontade, mesmo que ele assuste um pouco. Ele é um pouco sério, mas é legal.

– Tudo bem, vou tentar.

Peeta respirou fundo e começou a encarar o armário do outro lado do quarto.

– Tem mais uma coisa – ele parecia preocupado.

– O que foi?

– Você não pode dizer de onde veio, nem quem era sua família.

– Por quê?

– Bom, é porque...

Fomos interrompidos pelo som de uma buzina. Corremos para a janela e vimos um carro reluzente em frente à casa. Eu nunca havia dado importância a carros antes, mas tinha que admitir que aquele era impressionante.

– É ele – disse Peeta, e me puxou para fora do quarto pela mão.

Eu tentava inutilmente ajeitar os fios que se desprendiam do meu penteado com a mão livre, enquanto me concentrava em não tropeçar. Quando nos aproximamos da entrada da casa, Peeta desacelerou o passo e se voltou para mim.

– Escute, Katniss. Faça o que eu lhe disse e dará tudo certo.

Eu acenei com a cabeça, minha boca começando a secar.

– Só mais um detalhe: chame-o de Coronel Mellark.

– Coro... – meus olhos se arregalaram.

Não tive sequer tempo de processar e já estávamos na presença do pai de Peeta. Ele era um homem alto, tinha um porte rígido que impunha respeito, mas chegando a ser quase elegante. Os cabelos eram louros, assim como os de Peeta. Também possuía os mesmos olhos azuis, porém sem um terço da gentileza de Peeta neles. Seus lábios formavam uma linha fina e reta, que se curvaram ligeiramente quando me viu.

– Boa tarde. – Falou ele.

Eu não conseguia pronunciar uma palavra, então fiz uma leve mesura. Peeta se aproximou do pai, sorrindo. A princípio, achei que iriam se abraçar, porém Peeta apenas estendeu a mão.

– Que bom que está de volta.

Coronel Mellark aceitou o aperto de mão, seu sorriso um tantinho maior.

– Fico feliz em vê-lo, filho.

– Querido! – a voz da Sra. Mellark podia ser ouvida vindo da sala de estar. Ela logo se juntou a nós no hall de entrada.

Andou até o marido e depositou um beijo em seu rosto.

– Como foi a viagem? – ela perguntou e só agora eu notava como estava mais arrumada que de costume. Eu podia sentir o cheiro forte de seu perfume de onde estava, a três metros de distância.

– Foi tudo bem, Carolin. Pude vir sem nenhum imprevisto.

– Ah, isso é ótimo. Sabe, estamos sem cozinheira há semanas! Ela ficou doente. Pedi para as criadas ajudarem na cozinha, mas nenhuma delas tem a menor noção de como segurar uma frigideira. Estou tendo que ficar no fogão, imagine só...

– Mas que infortúnio. Se quiser, chame alguém para substituir a antiga por um tempo.

– Farei isso, meu bem. O que não posso é continuar a fazer tudo nesta casa.

Ele concordou e enfim se virou na minha direção. Sra. Mellark correu até mim, pousando a mão sobre meu ombro.

– Esta é Katniss. Peeta a encontrou muito doente e abatida, já estava com um pé na cova a coitadinha. Só conseguiu levantar da cama há três dias.

– E de onde vem, Katniss? – Coronel Mellark questionou.

Meu olhar recaiu sobre Peeta. Era exatamente o que eu não podia contar. Agora, mais do que nunca, eu sabia que seria um perigo revelar minha identidade e minhas raízes. O uniforme de exército do coronel fazia meus joelhos tremerem.

Tentei a todo custo falar, minha boca abrindo e fechando, porém não saía som. Peeta veio ao meu socorro.

– Katniss contou para mim que era filha de um fazendeiro do sul. Mas perderam tudo num incêndio e ela foi a única sobrevivente, os outros morreram pelo fogo. Ela estava com medo de ir parar em algum orfanato, por isso fugiu. Pai, ela não tem mais ninguém.

– Peeta! – Sra. Mellark reprovou seu tom de súplica. – Não comece a ter ideias, seu pai não tem tempo para essas tolices. A menina vai para a polícia na semana que vem no mais tardar. Quero que tenhamos resolvido isso antes do Natal...

Parei de ouvir o falatório da Sra. Mellark devido ao peso do olhar do coronel. Ele me analisava cada centímetro, tão pensativo que parecia quase em transe. Eu sabia o que ele poderia estar pensando. Se eu tinha aparência de um judeu, afinal, a história toda de Peeta parecia um tanto improvisada. Felizmente, eu tinha os traços de minha mãe, que mesmo sendo judia, sempre possuíra uma beleza clássica alemã. Contudo, os cabelos escuros e a pele cor de oliva poderiam levantar alguma suspeita, ainda que fosse comum encontrar pessoas não judias com tais características.

– E qual é o seu sobrenome, Katniss? – ele perguntou como se estivesse esperando para dar o bote.

Eu não podia dizer a verdade, mas o silêncio não era uma escolha.

– Everdeen – esse era o sobrenome mais comum que eu conhecia daquela região.

Peeta me olhou impressionado, como se não acreditasse que eu havia realmente mentido para seu pai. Coronel Mellark ergueu as sobrancelhas, talvez um tanto surpreso com a resposta que recebeu.

– Katniss Everdeen... Interessante. Bom, Srta. Everdeen, vejo que Peeta já lhe tem muito apreço. Não há muitas crianças nessa vizinhança para brincar com ele, e seria muita maldade mandá-la para passar o Natal em algum orfanato.

Eu e Peeta nos entreolhamos, surpresos. Sra. Mellark deu um passo à frente, incerta se contestava, mas falando mesmo assim.

– O que está dizendo, querido? Que ela pode ficar?

– Pelo menos até o Ano Novo. Depois disso, veremos o que fazer.

Ela já ia argumentar, mas Peeta cruzou o espaço à sua frente, agarrando minha mão.

– Obrigado, pai – Peeta disse com o maior sorriso seu que eu vira até então.

– A-Agradeço sua hospitalidade – consegui dizer.

Fomos para o lado de fora brincar, deixando a Sra. Mellark completamente contrariada.

–X-

No domingo, fomos à igreja. Eu nunca havia estado dentro de uma e tampouco sabia o que fazer lá – apesar de eu nunca mais ter ido lá depois daquele dia. Os costumes cristãos eram um mistério para mim. Ainda bem que eu tinha Peeta para me auxiliar. Ele me disse para unir as duas mãos e rezar silenciosamente, já que não conhecia as orações. Essa parte não foi difícil. Fiquei ouvindo enquanto o padre local citava trechos do livro sagrado deles, a Bíblia, ainda que não compreendesse tudo que ele falava.

– Eu também não entendo sempre tudo o que ele diz – contava Peeta, na saída. – Mas é importante, então eu não interrompo para fazer perguntas.

– E o que era aquele negócio branco que você e os outros comeram? É algum tipo de bala?

Peeta riu.

– Não, é a hóstia. Mas você não pode comer, porque não fez a primeira comunhão.

– E você já?

Ele deu os ombros.

– Claro. Todos os garotos da cidade fazem.

– Vocês fazem essa comunhão para ganhar um biscoito? Não entendo.

Peeta riu mais uma vez.

– É um pouco mais complicado que isso.

– Ei, vocês dois! – a Sra Mellark berrou e nos viramos. – Não corram na frente, pensam que podem fazer o que querem?

Esperamos que ela chegasse até nós, seu chapéu escorregava da cabeça por causa do vento.

– Desculpe, Sra. Mellark – eu disse. Ela me lançou um olhar de indignação e continuou a andar.

Apesar de já estar ali há tantos dias, Sra. Mellark ainda estava relutante com a minha presença. Sabia que no primeiro passo em falso que eu desse, ela seria primeira a reportar ao coronel.

Como se lesse meus pensamentos, Peeta sorriu para mim.

– Não se preocupe, ela logo se acostuma.

Balancei a cabeça em negativa.

– Mas até que sua mãe tem razão. Meu lugar não é aqui. Eu deveria procurar uma maneira de chegar à minha tia.

Ele pareceu um pouco chateado em me ouvir falar em partir.

– Você não gosta lá de casa? Não sou um bom amigo?

– Peeta, você é um ótimo amigo e sua casa também é muito boa. Mas eu prometi à minha mãe que iria para casa da minha tia. E se mamãe conseguiu chegar lá e agora está preocupada comigo?

– Você disse que ela não conseguiu subir no trem.

– É, mas pode ser que tenha arranjado outra forma de viajar. Principalmente, porque no fim era o trem errado. Se ela percebeu isso, pode pensar até mesmo que estou morta, o que quase aconteceu para falar a verdade.

Peeta parecia em dúvida se dizia o que tinha em mente. Um lampejo de compaixão passou por seus olhos e ele deu um sorriso.

– Bom, nós podemos pensar em alguma coisa depois. Mas as chances de conseguirmos uma solução agora são bem pequenas, então é melhor esperar.

Na minha ingenuidade infantil de dez anos de idade, estava realmente crendo que haveria uma maneira de sair dali e ir para a Suíça. Mas é claro, Peeta sabia desde o início que eu jamais teria capacidade de fazer aquela viagem. Eu estava presa num beco sem saída e sequer tinha consciência disso.

–X-

Três dias antes do Natal, eu finalmente conheci Annie Mellark, a filha mais velha. Ela era completamente adorável. Tinha cabelos castanhos longos e os olhos azuis dos Mellark. Era mais alta que a mãe e possuía modos refinados, mas ainda assim modesta. E mesmo tão delicada e comedida, ainda conseguia ser divertida e muito gentil. Tornava-se a alma do lugar assim que entrava.

– Meu Deus, que linda que você é – ela me abraçou logo que fui apresentada, gesto que estranhei muito visto que todos na casa pareciam manter distância uns dos outros. – Peeta, você encontrou uma princesinha!

– Acho que você está assustando ela, Annie – Peeta disse, um tanto sem graça.

– Ah, me perdoe, eu sempre quis uma irmã mais nova. Não que eu não o ame, Peeta, mas sempre desejei ter uma irmãzinha para ensinar tudo a ela.

– Bom, se ao menos o papai a deixasse ficar... – Peeta lançou a ideia no ar.

Annie me apertou ainda mais forte contra si.

– Podem deixar que eu vou pedir – ela me soltou e se agachou para ficar na altura dos meus olhos. Parecia bem decidida. – Você vai ser minha irmãzinha, Katniss. Eu juro!

Apesar das intenções de Annie ser nobres, toda aquela situação me remetia à Primrose, a minha irmã caçula. Estaria viva? Estaria com fome e frio? Eu tivera muita sorte por ter sido encontrada por Peeta, mas quem poderia garantir que ela teria o mesmo destino? Eu a amava tanto. Annie era uma pessoa muito bondosa, mas ninguém poderia substituir Prim.

–X-

A ceia da véspera de Natal estava sendo preparada, enquanto eu e Peeta jogávamos palavras cruzadas no chão da sala. O pai de Peeta lia um jornal numa poltrona e Annie folheava um livro no sofá.

Inclinei-me até o ouvido de Peeta para que só ele me ouvisse.

– Você sabia que eu nunca tive uma ceia de Natal?

Ele me mirou, incrédulo

– Mentira.

– É verdade! – falei um pouco alto. Minha reação imediata foi checar os arredores. Ninguém na sala nos dava ouvidos. – É verdade, eu nunca comemorei o Natal. Não temos essa data.

– Que estranho. Bom, pelo menos você não passou pelo terror da fase do Papai Noel.

Pela minha expressão, ele soube que eu estava confusa.

– Você sabe, aquele velhinho que deixa presentes nas casas das crianças boazinhas enquanto elas dormem.

– Isso não parece ser ruim.

– É, mas também tem o Krampus¹ – ele disse, em tom de lamento.

– Krampus?

– Sim, digamos que ele seja um ajudante do Papai Noel. Como eu disse, as crianças obedientes recebem presentes, mas as malcriadas recebem uma visita das garras do Krampus...

Aquela pausa dramática me fez estremecer, a expressão amedrontadora de Peeta não cooperava também.

– E o que ele faz? – eu ousei perguntar.

– Ele entra nas casas no meio da noite, arrastando correntes... Abre a porta do quarto com suas mãos cheias de garras... – eu estava tão absorta no que ele dizia que nem notei como se aproximava. – Vai até a cama... Chega bem perto, e... – ele parou a centímetros de mim. Eu já estava tremendo.

– E? – falei num fio de voz.

Ele ficou mais alguns instantes em silêncio, me encarando. Então, voltou para a posição anterior, fingindo mexer nas letras das palavras cruzadas.

– Nada. É só uma história para criancinhas. Não acredito que você caiu nessa, que boba.

Fiquei zangada. E como fiquei. Peguei o tabuleiro e o virei, estragando todas palavras que já tinham sido formadas. Peeta boquiabriu-se, definitivamente não prevendo aquela reação. Annie ergueu o olhar de seu livro, curiosa com a agitação.

– Ih... Vocês vão arrumar isso aí depois? – ela indagou inocentemente.

– Peeta vai – falei, me levantando e me sentando junto a ela no sofá.

Annie riu, olhando para o irmão que ainda estava abismado.

– Pois é, Peeta. Nunca deixe uma mulher irritada – piscou para ele e voltou a ler.

Passados alguns minutos, a ceia estava na mesa. A Sra. Mellark desceu as escadas num vestido verde todo engomado, e até maquiagem ela tinha posto. Fomos à mesa e nos sentamos. Fiquei de frente para Peeta. Ele sussurrava do outro lado da mesa um pedido de desculpas, que na hora eu fingi que não vi.

O Coronel Mellark pigarreou, chamando a atenção de todos. Congelei na cadeira. Ele faria algum tipo de pronunciamento.

– Antes de comermos, eu gostaria de dizer algo. Katniss – ele olhou diretamente para mim. Aliás, todos olhavam. –, você gosta daqui?

Fiz que sim com a cabeça.

– Gosto muito, senhor.

– Bom, eu quero que saia do quarto que está.

Tanto eu quanto Peeta engasgamos com o ar, Annie levou as mãos ao rosto. Sra. Mellark suspirou.

– ...E quero que se mude para o andar de cima, no antigo quarto da Annie. Lá há muito mais espaço para você se acomodar. Vou providenciar também os documentos que perdeu no incêndio.

O alívio foi tanto que eu fiquei à beira das lágrimas, mas me segurei para não parecer tão sensível.

– Ela precisa de vestidos novos! – Annie lembrou, agora mais entusiasmada que nunca. – Está usando os meus velhos, não é justo, não acha, papai?

Coronel Mellark sorriu para a filha.

– Tem razão, Annie. Por que vocês duas e sua mãe não vão à cidade na segunda e compram alguns?

– Sim! – Annie bateu palmas. Sra. Mellark resmungou alguma coisa.

– E então, Peeta? O que achou da novidade? – perguntou o pai.

Peeta olhou dele para mim. Eu estava tão contente que não contive um sorriso em sua direção, colocando uma pedra sobre toda a birra de antes. Ele retribuiu o sorriso com um duas vezes maior.

– Eu acho que temos sorte por ela ficar. E espero que ela seja muito feliz aqui.

As esperanças de Peeta se concretizaram. Eu vivi alguns de meus melhores momentos na residência dos Mellark. Entretanto, como nada pode ser perfeito, algumas de minhas mais terríveis memórias foram causadas ao lado deles.

Por enquanto, eu iria apenas apreciar meu primeiro banquete de Natal, com o homem vestindo a farda daqueles que caçavam meu povo, e esquecer minha verdadeira identidade.

–X-

Notas:

¹: Krampus (Se alguém tiver curiosidade.)


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Notas finais do capítulo

O clima da fic vai ficar um pouco mais animado na próxima fase que começa no segundo capítulo. Eles vão estar mais velhos também (às vezes vou adiantar o tempo um pouquinho, não estranhem se de repente passarem uns anos hehe!!)
Obrigada pra quem leu, e por favor comentem dizendo o que acham (é importante demais na hora de escrever, a opinião de vocês pode mudar o rumo da fic!!)
Beijinhos!



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