Em Família escrita por Aline Herondale


Capítulo 28
Escrita de Tinta


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem.



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Fechei todas as persianas do escritório e tranquei a porta.

Liguei a luminária sobre a mesa e respirei fundo enquanto desenrolava o barbante do primeiro bolo. Deveriam ter uns cinco ali, com cartas decoradas de um modelo diferente cada, endereçadas por uma caligrafia elegante.

“Querida Evie,

Feliz aniversário. Hoje você faz cinco anos. Gostaria de ir a sua festa mas seu tio está na África, tirando fotos para a revista...”

Dizia a primeira.

Abri uma por uma e comecei a ler todas as suas narrações.

“Querida Evie,.Eu escrevo esta carta para você de Florença. Ontem eu andei durante horas pelo David de Michelangelo. Ele tem um estilingue! E uma marca sobre o ombro esquerdo...”

“Você é minha querida e única sobrinha.”

“Minha parceira invisível e calada”

“Esse é mais um dos muitos dos nossos capítulos juntos... “

“Perdi quando seus primeiros dentes caíram.E nunca verei os buraquinhos no seu sorriso quando seus dentinhos ou quando crescerem quando se tornar uma bela moça. “

E a medida que eu abria cuidadosamente um novo envelope, compreendia um pouco mais sobre os pensamentos do meu tio. E estranhamente aquelas palavras começaram a me afetar.

Sem eu me dar conta.

“Saudações de Saint-Etienne onde todos que conheço tem o costume de dar dois beijinhos. Acho que esse costume de abraçar e beijar você também acharia desconfortável. Mas se descobrisse que era você em meu abraço, certamente faria uma exceção. Você também faria? ”

“Feliz dia de São Valentin.”

“Feliz Dia das Bruxas!”

“Feliz Natal. Achei que nunca receberia uma carta sua! [...] Costume ver suas mensagens, à noite, com as estrelas.”

“Sinto coisas tão fortes que se tornam quase insuportáveis e penso se, para você, a vida também é dificuldade pelo fato de você ouvir o que os outros não podem ouvir, e ver o que os outros não podem ver. Sei que um dia você será muito especial Evie. E você já é.”

“Sei que lá no fundo você sente uma certa solidão[...]. Você é única.”

“Por favor, saiba que estou com você e que temos o mesmo sangue.”

“Esta noite adormecerei imaginando como você crescerá e carregará nosso nome.”

E assim sucessivamente ele começava todas aquelas milhões de cartas. Com o mesmo cumprimento e a mesma despedida, contendo uma frase específica em todas.

“Como quero te conhecer.Com todo o meu amor,Charlie.”

Após ler todas levei alguns segundos para aceitar internalizar a realidade. Minha cabeça latejava e seu soltei meus cabelos do rabo de galo.

Mesmo depois de todas aquelas cartas eu ainda ainda precisava saber de uma última coisa – questionamento que, infelizmente, não poderia ser feito ao meu pai –.

Lena.

Ela ainda estava ali mas talvez, assim como eu, não fizesse idéia da existência daquelas cartas. Ela mesma já havia deixado claro que meu pai explicara que Charlie estava sempre viajando.

Mas Lena era Lena.

Não suportei a ideia de que minha própria mãe poderia saber de informações como aquela e não esperaria ela terminar de se arrumar para descer para o café. Com o bolo de cartas nas mãos subia apressadamente as escadas, porém no meio do trajeto algumas caíram e precisei retornar alguns degraus para catá-las.

Foi quando notei um carimbo vermelho na parte traseira de uma das cartas.

“Instituto Crawford”, dizia.

E foi quando me dei conta de que em nenhum momento tive a curiosidade de conferir o remetente.

O fiz.

E a medida que jogava uma a uma das cartas no chão minha certeza de que começava a entender algo da cabeça do meu tio escorria de mim.

Todas as cartas tinham o carimbo desse Instutito Crawford. Todas. Uma a uma, com a mesma letra, o mesmo canto direito superior, o mesmo endereço, durante anos. Então...como Charlie poderia ter visitado todos aqueles lugares, visto todos aqueles monumentos e me contado sobre eles com tamanha riqueza de detalhes se, na verdade, nunca esteve lá?

Um enorme calafrio percorreu minha espinha e eu corri atrás do telefone sem fio, deixando um rastro de cartas ricamente decoradas pelo caminho. Retornei para o escritório e tranquei a porta ao passar.

Enquanto uma voz eletrônica pedia que eu aguardasse um atendente receber minha ligação um vulto do lado de fora da casa chamou minha atenção. Eu havia deixado uma fresta da janela e a abri para enxergar o que havia lá fora.

Congelei.

Meu tio Charlie carregava uma escada de madeira sobre um dos ombros e segurava uma tesoura de jardinagem numa das mãos. Seu corpo não transmitia esforço algum e ele tinha o semblante tranqüilo – mesmo que seus óculos Club Master escondessem boa parte de seu rosto –. Eu não esperava vê-lo tão cedo. E fazendo esforço, até porque Waylon Holt havia lhe deferido um soco violento no estômago. Mas talvez ele não fosse tão sensível como eu imaginava.

Aliás, o que eu sabia do meu tio afinal?

Charlie de repente parou e virou o rosto até mim e meus músculos travaram. Ele sorriu e caminhou até chegar bem próximo ao vidro – o único mísera objeto que nos separava – e abriu um sorriso de dentes.

Enquanto a atendente gritava por mim do outro lado da linha meu tio levantou a tesoura na altura dos meus olhos e a abriu e fechou, talvez, numa tentativa de me fazer rir. Ou só por fazer mesmo. Eu me sentia a última pessoa adequada à fazer suposições sobre ele.

Charlie abaixou a moa e suspirou. Depois virou o rosto e encarou o enorme pé de Ipê amarelo que tinha ali. Parecia pensativo e sem se despedir caminhou para longe do vidro.

Nesse minuto a atendente já havia desligado e o telefone estava mudo. Minha chance havia ido embora junto com ela. E só foi quando ele se afastou que eu consegui percebi o quanto prendia a respiração. Soltei o ar dos meus pulmões de uma vez e minha cabeça rodou.

Algo aconteceu dentro de mim.

Após ler todas aquelas cartas, ver todos o seus atos e ajudá-lo a matar tantas pessoas, cheguei a conclusão de que: eu não tinha medo dele. Eu não tenho medo de Charlie.

E por esse motivo quando uma idéia nasceu em meio aos meus pensamentos sobrepostos eu não estranhei e nem temi. Sabia que só assim saberia que havia, de fato, me transformado em uma mulher. Que era capaz de enfrentar e decidi as coisas por mim mesma.

Informações, falas, objetos, frases, lembranças e perguntas sem respostas chegavam aos poucos e eu fui visuazilando o quebra-cabeça ser montado. Uma a uma as peças se encaixando.

E depois de muito tempo eu finalmente soube o que deveria fazer.


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Notas finais do capítulo

NÃO ME DEIXEM! COMENTEM DIZENDO O QUE ACHARAM.
XOXO



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