Em Família escrita por Aline Herondale


Capítulo 15
Duet Desafiador


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem.



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Haviam se passado três dias desde o incidente com Pette e o lápis, melado com seu sangue, continuava sobre minha escrivaninha – como um troféu.

Deixei de lado os exercícios de gramática que estava fazendo e procurei, dentro do meu estojo, o meu apontador de metal. Mesmo já tendo se passado vinte e quatro horas o sangue ainda chegou a grudar na lâmina do meu apontador, quando girei o lápis para retirar aquela camada escarlate da sua superfície de madeira. Joguei o “bagaço” do lápis junto com o apontador no lixo. Apertei o lápis, agora novo em folha, na mão e tive a certeza de que havia ficado enfim livre das irritações de Pette. Achei até que havia feito pouco.

De repente minha mente começou a divagar sobre idéias de diferentes maneiras que eu poderia tê-lo machucado melhor, variando entre da forma mais dolorosa para a com mais seqüelas. Sacudi a cabeça, expulsando tais pensamentos e me assustei a forma intensa com a qual estava concentrada naquilo. Não tinha me dado conta de quando havia desviado minha atenção para o idiota do Pette.

Retornei para os exercícios de gramática.

Mesmo com o pouco tempo para pensar em outra coisa que não fossem os testes finais, sempre que conseguia meus pensamentos vagavam até o porão da minha casa, mais especificamente para o freezer – onde minha babá estava escondida. Eu não sabia o por quê do tio Charlie tê-la deixado lá, afinal, qualquer pessoa, até mesmo minha mãe, poderia descobrir que tínhamos um corpo entre as nossas carnes. Mas seu plano estava seguindo vitorioso, pois, além de mim, até hoje, ninguém ainda havia descoberto de nada.

E mesmo com minhas constantes leituras sobre a psicologia e luto, a mente do meu tio ainda trabalhava de modo desconhecido para mim. Qualquer que fosse seu objetivo ali, eu não descobrira ainda.

Eu nunca mais descera para procurar pelo sorvete, e toda vez que precisava abrir alguma coisa, feito de forma semelhante à forma que abrimos um freezer, eu vi a imagem da minha babá na minha frente. Aquilo me causava um arrepio intenso na espinha e era preciso piscar uma ou duas vezes para a sua imagem se dissolver da minha frente.

Com isso acontecendo a todo momento, Lena percebeu que algo me incomodava e perguntou qual era meu problema. Respondi que não era nada mas Charlie desconfiou, pois, após um dos nossos jantares, ele perguntou se gostaríamos de sorvete e pediu que eu o buscasse. Me neguei e praticamente saí correndo da mesa, dizendo que precisava estudar.

E isso estava me deixando louca! Eu precisava espairecer ou não agüentaria e, aproveitando uma tarde em que minha mãe saiu às compras, decidi tocar um pouco do piano.

Bastou eu sentar no banco que as imagens – de Charlie me olhando pelo canto dos olhos, de quando o vi tapando buraco com aquelas pedras pentagonais e muitas outras – me veio à mente. Suspirei e endireitei a coluna, porque estava pensando nele, afinal?! Estava ali para relaxar e era exatamente isso que eu ia fazer.

Decidi tocar minha peça preferida: Duet de Philip Glass. E apesar de ser uma peça escrita para um dueto, eu me contentava em apenas tocar até a parte em que o solo acabava. Depois começava tudo de novo, repetidas vezes.

De tanto tocá-la, eu já sabia todas as notas de cor então estava olhando reto e não prestei atenção na movimentação que fez-se atrás de mim. Já estava chegando no final do solo quando alguém surgiu ao meu lado e começou a me acompanhar, fazendo um dueto. Encarei aqueles dedos longos e levantei o olhar, encontrando meu tio Charlie concentrado nas notas que tocava – com um sorriso de canto. Devido à sua altura precisou se curvar um pouco para conseguir tocar enquanto estava de pé.

Prossegui enquanto sentia a pele dos nossos dedos se tocarem sutilmente, devido ao fato das teclas necessárias para que tanto eu quanto ele tocasse, aquela parte, serem uma do lado da outra. Fiquei atenta para não errar nenhuma nota.

De repente lembrei-me de que ali mesmo, dias atrás, havia pego minha mãe ensinando Charlie a “tocar piano”. Então como ele saberia esse ato decorado? E tocá-lo de forma tão natural – sendo um iniciante, segundo Lena?

Segundos antes de chegarmos à parte em que um iniciante não conseguiria tocar, levantei a cabeça no mesmo momento em que ele se virou para me olhar. Suas enormes órbitas azuis brilhavam. Seu sorriso continuava ali, e me sentindo com vantagem, tornei meus olhos bicolores para as teclas, terminando o ato inicial. Ele agora, com certeza, iria embora. Não tinha espaço para si ali.

Eu não podia estar mais enganada.

Charlie colocou suas mãos sobre as teclas que eu tocava, expulsando meus finos dedos dali. Sentou-se na ponta do banco me obrigando a me afastar para o lado e tirar meu pé do pedal, que logo foi ocupado pelos seus sapatos envernizados. Ele definitivamente queria guerra. Não me importei de estar conseguindo sentir perfeitamente seu cheiro de lavanda com madeira, nossos braços estarem se acariciando e eu estar dividindo o mesmo banco comigo. Eu precisava mostrar-lhe o quanto tocava.

Chegou meu momento e eu deslizei meus dedos sobre as teclas de forma ágil e precisa, esperando que ele não conseguisse me acompanhar, mas lá estava ele, fazendo o mesmo. Ele era mesmo um iniciante? Olhei-o e Charlie olhava para as teclas, sorrindo. Isso só podia ser algum tipo de brincadeira para comigo.

Com raiva toquei mais intensamente e precisamente mas ele conseguia acompanhar todos os meus movimentos. Travávamos uma verdadeira batalha de notas, ali.

De vez em quando nos olhávamos por dois ou três segundos antes de voltarmo-nos para as teclas. Eu estava atônica. De toda e qualquer forma queria o expulsá-lo dali. E estava tão focada em fazer aquilo que não percebi seu gran finale.

Na penúltima parte do ato, Charlie precisou tocar as notas mais agudas – que ficavam na extremidade oposta à que ele estava do piano. Então ele esticou o braço, passando pelas minhas costas, e pressionou seu peitoral contra minha espinha. Virou o rosto para o outro lado e o senti apoiar o queixo, de leve, no meu ombro.

Aquilo me causou um frenesi.

Tudo só piorou quando senti sua respiração bater contra meu pescoço – pelo fato de eu estar com uma tiara de tranças e um coque. Definitivamente estava fadada a errar alguma hora; mas não podia me permitir. Senti seu perfume mais forte ainda e sua barriga firme se esfregando contra a lateral e costas do meu corpo – me empurrando para frente.

Uma sensação estranha começou a crescer dentro de mim e precisei encontrar forças onde não existia para manter o corpo firme e as mãos continuarem tocando.

Minha respiração foi ficando entrecortada e meus batimentos dispararam, uma sensação quente se concentrou entre minhas pernas e eu apertei meu íntimo numa tentativa de fazer aquilo ceder, tendo o efeito contrário. Só piorou e eu senti necessidade de apertá-lo mais e mais. Cruzei as pernas.

Sutilmente tombei a cabeça para trás e senti a respiração de Charlie mais forte bater na minha bochecha.

E tão rápido como ele veio, ele se foi e voltamos às posições convencionais – lado a lado. Mas eu já não estava mais a mesma. Meu corpo parecia querer se desprender de mim e minha cabeça girava, tentando se equilibrar sobre meu pescoço, enquanto eu apertava ainda mais as pernas. Meus olhos pareciam pesar uma tonelada e eu lutava pra mantê-los abertos. Engolia seco, piscava, fazia de tudo mas a sensação continuava ali se intensificando. Charlie olhava para mim e sorria, para então retornar as órbitas cinzentas para as teclas. Eu não ligava mais se estava debochando de mim.

Não naquele momento.

E tão de repente seu ato acabou e eu permaneci sozinha, tocando. O som das últimas notas ecoou pela casa e eu abri os olhos, assustada pela sensação ter ido embora no momento em que meu tio tirou os dedos do piano. Enquanto tentava sair do meu transe sentia Charlie olhar para mim com olhos famintos e admirados, mas eu não conseguia mover um músculo. Ainda não.

Pelo canto do olho eu o vi apoiar a uma das mãos atrás de mim e aproximar o corpo do meu. Seu rosto seguiu até minha bochecha e ele deslizou a ponta do seu nariz na minha mandíbula. Inspirei alto quando senti seu toque frio e ele abriu um sorriso ao notar.

Pisquei, já conseguindo finalmente responder por mim e virei rapidamente o rosto, encontrando ninguém ali. Ninguém.

Olhei para o lugar do banco que estava vazio e pensei se não havia tido alucinações.

Totalmente assustada comigo mesma corri para o segundo andar e me joguei na cama.

Não percebi quando adormeci, de sapato e tudo.


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Notas finais do capítulo

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XOXO



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