Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 8
I See Fire


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é inspirado na música "I See Fire" do Ed Sheeran. Foi importante pra mim escrevê-lo.



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Passei algum tempo vivendo o passado, voltando naquele incêndio, esperando que a dor ou o trauma acabassem e, consequentemente, me machucando ainda mais. Tive a pior das experiências ao tentar recuperar a parte da minha vida que eu havia perdido, porque encontrá-la nunca seria uma tarefa fácil. E, até então, eu não me importava com nada daquilo que vinha acontecendo, com a forma que as pessoas me tratavam, com algumas poucas querendo se aproximar de mim de algum jeito ou talvez criar um vínculo social comigo, por menor que ele fosse. Os indivíduos sempre vão culpar uns aos outros, julgar e defender seus princípios, de qualquer forma. E poucos são aqueles que vão parar o que estão fazendo para sorrir ou apenas acenar para você em vias públicas; pessoas que vão mostrar que de alguma forma você existe ou ao menos importa pra alguém, e, naquele momento, a única pessoa que eu considerava como, no máximo, colega, estava sofrendo por algo que não tinha nada a ver comigo. E parecia trágico, mas eu estava sofrendo com Carly e por ela também.

E detalhar aquele momento que vinha na minha cabeça o tempo todo não exigia muito da minha mente, porque, outra vez, eu estava vivendo na razão de não viver. Nem mesmo os filósofos mais conceituados teriam o privilégio de adivinhar os meus sentimentos; nenhuma tecnologia ultrapassaria os meus avanços internos.

Pela primeira vez eu decidi ser otimista e lembrar de quando tudo estava pior, quando o meu ciclo de depressão só avançava cada vez mais. Continuamente. Sem pausas. Desde aquele incêndio tudo havia mudado: era só eu, uma faca, um rádio numa orquestra angustiante e lágrimas em seguida. Minha vida se resumiu num gênero dramático destituído de drama, e eu não sabia como fechar as cortinas da peça de teatro antes do público pedir por mais. E, eu não sabia como, mas estava começando a pensar no sentido abstrato. Estava começando a pensar no sentido figurado.

Mas, anos depois, naquela exata hora, a depressão, a culpa, o medo, e todos os outros sentimentos simplesmente sumiram... porque éramos só eu e o pianista que eu havia conhecido há algumas semanas; só ele que meio que fez a minha vida viver para algo além da morte. E eu acho que, mesmo que eu não soubesse como "usar a minha língua", seria uma boa ideia beijá-lo naquele momento. E eu fiz logo, mas sem pressa. Porque todos esses fatores não implicavam no meu relativo desejo.

Minha boca estava roçando na dele até que ele tomasse a iniciativa de massagear os meus lábios com os seus, começando pelo inferior e logo estendendo até o outro. Considerando o lugar onde estávamos, aquilo era errado, e o errado me excitava. Literalmente. Mas não passamos daquilo por uns cinco segundos... Minhas mãos que saíram de sua nuca e chegaram até seus cabelos já podiam controlar parte das investidas que ele fazia enquanto nos beijávamos. Consequência: logo o beijo já estava mais intenso. Senti uma mão repousar sobre a minha. Enquanto ele estava sendo um pouco cuidadoso demais — ainda que eu não tivesse paciência alguma —, eu pude sentir uma queimação por dentro. Tudo que eu sabia naquele momento era que ela queria dizer alguma coisa, mas eu estava ocupada demais para ao menos cogitar na hipótese de ir à procura de seu significado.

Eu era a única aluna do ginásio — entre todos, até mesmo os nerds — que nunca tinha beijado uma pessoa qualquer antes e que era completamente virgem, mas isso nunca me incomodou como incomodaria a alguém normal. Porque nada disso me incomodava. Porque eu sabia que as pessoas só falavam comigo por pena, porque não tinha mais nada agradável a fazer ou porque estavam tensas demais depois de muitos segundos em que passavam comigo no silêncio normal. Elas nunca insistiam em algo a mais, e muito menos eu. Eu só ficava lá, quieta.

Me certifiquei de que sempre estive certa, afinal, lá do fundo, eu sempre soube que beijava muito melhor do que todas aquelas barangas — não vou retirar o adjetivo "barangas" do meu vocabulário mental, porque outro termo seria ainda mais ofensivo.

E, o mais ou talvez menos importante: ele beijava bem — considerando que eu nunca havia beijado alguém antes —, era difícil acabar com aquilo. E então eu só não acabei.

Eu só não acabei.

E pensar que em algum momento aquilo acabaria me deixava ainda mais sem fôlego.

Não sei se era uma conspiração do Universo ou sei lá, mas ele também não estava querendo parar. Considerando que estávamos deitados, a consequência do que estávamos fazendo numa clínica médica seria ainda maior... Então eu resolvi abrir meus olhos por algum tempo — obviamente estavam fechados porque eu tive a brilhante ideia de fechá-los, da qual às vezes me arrependo — para ter certeza de que não estávamos sendo vigiados. E não estávamos. Mas a luz que nos iluminava agora estava tomada por uma... fumaça.

Eu me descontrolei e tive que, de alguma forma um pouco brusca, afastar o corpo dele do meu e me levantar apressadamente. Eu só segui meus instintos traumáticos e saí daquele lugar o mais rápido possível e tentei, de alguma forma, escapar dali e ver de onde estava vindo aquela luz estranha, e aquela fumaça que provavelmente apontava que o fogo estava por perto. Só sentia minha pele suar frio e um pressentimento nada bom me invadir até que eu sentisse que havia alguém procurando por mim. Freddie sabia o que estava acontecendo. E todo aquele pânico evidenciava ainda mais o fato de que nenhum ser normal, além dele, continuaria a depositar tanta confiança em mim. Nada me envergonhava mais do que saber que eu não era digna de ser incluída no que os homens ignorantes chamavam de sociedade por causa dessas coisas que me faziam tão diferente. Ele me fazia acreditar que eu era única por isso.

E mesmo que estivéssemos presos com todo o fogo lá fora, Freddie me abraçou outra vez, e eu pude sentir que o meu trauma já não era mais um problema tão grande quanto antes.

— Eu posso ver o fogo, Freddie... Está se aproximando.

— Calma, meu amor. — Ele me apertou contra seu corpo suavemente.

[...]

A luz ainda não havia voltado e a luminosidade que provinha do incêndio vizinho já não estava mais surtindo efeito lá dentro. Logo, tudo ficou escuro, mas de repente acendeu e eu me afastei do pianista, de sobressalto.

— O que estão fazendo aqui?

Ajeitei minha postura e direcionei um olhar firme ao segurança que me encarava duvidosamente. Já sabíamos o que fazer.

Então, como previso, nós apenas corremos na direção contrária o mais rápido que poderíamos correr. Conseguimos despistar o tal cara em poucos segundos, mas ele nos alcançou de novo e a correria se seguiu até mesmo fora do terreno pertencente ao hospital, quando já estávamos no meio da rua movimentada e quase sem fôlego, e mesmo assim rindo daquela situação.

Em algum beco finalmente já não o víamos mais.

E depois de alguns segundos eu percebi tudo que tinha feito, e então disse:

— Desculpa.

— Se está falando do beijo, pode apostar que não tem que se desculpar de nada.

Eu acho que corei.

— Ah, Freddie, estou falando sobre tudo. Sobre você ter achado a saída e mesmo assim não ter saído pra ficar comigo e... sobre você me ajudar com esse trauma idiota que nem eu mesma suporto. Você sabe que eu poderia me cortar ou desmaiar ou...

— Ah, Sam, e eu estou dizendo que você não precisa se desculpar de nada, não ouviu? Porque eu faria tudo de novo.

E, quando eu estava com ele, eu via o fogo de uma maneira um tanto diferente... Como se eu não me sentisse tão inflamável.

E depois de instantes, ele ousou quebrar o silêncio:

— Já sei que nós dois tivemos uma infância dos infernos, mas ainda assim já fomos espermatozoides que venceram a batalha de algum jeito.

— Isso é a coisa mais clichê que poderia sair da boca de um pianista!

— Mas é a verdade. Se você nasceu é porque deveria ter nascido.

E eu só fiquei em silêncio, afinal já sabia que o Universo sempre fazia as coisas pensando na minha futura atitude. E ele fez, mais uma vez, tudo com um devido propósito.

E eu deixei uma ou duas lágrimas caírem do meu rosto, forçando ao máximo para que uma terceira não caísse. Mas ela caiu.

— Eu garanto que outro espermatozoide teria mais sorte do que eu.

— Mas foi você quem venceu.

[...]

Eram quase três horas da manhã quando Freddie me levou até meu apartamento, como no dia em que nos conhecemos, e por mais que durante todo o caminho a minha visão periférica apontasse que certo alguém ao meu lado estava muito tenso, segui a me fazer de idiota e não perguntei o porquê daquilo estar acontecendo. Mas eu sabia que depois de que tínhamos nos beijado ele não parava de ser tão mais "suave" comigo. Acho que ele tinha medo de me magoar ou sei lá, mas também não disfarçava quando me olhava.

Então eu o convidei para entrar sem ser muito sugestiva e ele aceitou, deixou seu casaco em cima da cômoda e logo deve ter reparado a rosa que ainda estava ali, mas não disse nada. Andamos até ficarmos um pouco próximos e eu me sentei no sofá quando nos fitamos por algum tempo indeterminado e que só aumentou a minha ansiedade em relação a tudo que ele vinha escondendo desde a caminhada, eu acho.

— Tem uma coisa que estou querendo saber há muito tempo — ele disse quando eu finalmente levantei meu olhar em direção à sua pessoa novamente.

— Então pergunte.

— É que... Como sabia que, naquele dia em que nos encontrávamos, eu estava tocando Moonlight Sonata?

— Quê?! Eu... não... sabia... de... nada...

— Mas você sabia que quem tocava era Beethoven, ainda. Como sabia disso, Sam?

— Eu nunca demonstrei saber.

— Mas você não nega que sabia.

— Mas eu...

— Você mentiu quando disse que odiava música clássica, jazz, e essas coisas, não mentiu?

— Não... Eu não sou o tipo de garota que mente e muito menos esse tipo de garota que lê livros, faz contas de álgebra, passa a madrugada ouvindo músicas horríveis quando está na fossa... Eca! Não volte a mencionar essas coisas aqui dentro.

E fiquei pensando, depois de tudo isso, em uma forma de finalmente acabar com aquele assunto, mas ele estava realmente interessado em saber que eu sempre me mutilava ao som de Beethoven, por acaso.

— Eu sei muito bem que você não é como elas, mas também sei que não está sendo sincera.

— E se eu só não quiser falar sobre isso?

— Por que não quer?

— É melhor você ir embora.

— Está me expulsando?

— Não, eu só... Ah, Freddie... Por que você complica tudo?

Eu ouvi uma resposta justificativa mas só andei a pesados passos e fechei a porta do quarto com todo o impacto possível, antes de ouvir ainda mais gritos revoltosos.

Eu não queria ignorá-lo mas não podia dizer mais uma dessas minhas experiências sem me mostrar ou me considerar uma dessas garotinhas frágeis. Porque eu era.


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Notas finais do capítulo

Gostaram? Fiquei algum tempo preparando esse capítulo e... Se não tiverem gostado podem dizer.