Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 16
Aurora


Notas iniciais do capítulo

Eu gostaria de agradecer pela recomendação que recebi, de Juliekress. Eu fiquei muito feliz quando li e, sinceramente, recomendações me deixam feliz para todo o sempre. Eu me surpreendi de verdade por receber outra no meio da fic, sério. Me sinto lisonjeada!
Obrigada de novo e de novo. Obrigada a todos vocês, por tudo.

Aqui vai outro capítulo.



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O alvorecer nunca esteve tão escuro depois da escuridão.

Isso mesmo, o dia estava nascendo escuro. E isso não foi uma metáfora ou coisa parecida — eu estava, claramente, sem cabeça pra metáforas naquele início de manhã. Pelo menos não era um dia frio nem nada, na verdade a temperatura era agradável e bem diferente das últimas em Seattle. Olhei mais uma vez — uma aurora sombria precedia a fraca luz do sol. Não era certamente negra, mas é claro que não, e também não era sombria só porque eu tinha assistido um filme de terror na madrugada anterior. Eu juro que não era só por causa disso.

O silêncio era, novamente, pesado. E, em nome do Universo!, eu já tive inúmeras experiências com o tal do silêncio. Desse silêncio. E, sei lá, ele só era pesado porque tudo estava tenso. O dia estava tenso. O amanhecer, as nuvens, a aurora, os sons, os tons, as árvores, as casas, as ruas, as calçadas, o vento, o ar, o clima, as pessoas, e, por fim, tudo; era tudo exatamente na mesma tensão. Devo ressaltar que, exceto a aurora. A aurora era sombria. Eu já disse e pensei nisso em todas as letras e cores.

Pela primeira vez em toda a minha vida, eu realmente não estava observando um amanhecer da janela. Era além da janela. E isso só veio a acontecer por causa do fato mais conhecido como a madrugada anterior — ela tinha me levado a despertar tão cedo. Tão cedo ao ponto de adjetivar meus pensamentos daquele modo. Tão cedo ao ponto de me fazer enxergar aquela aurora que logo seria tomada pela serenidade habitual de auroras como as que eu costumava enxergar antigamente.

E, não era a aurora, acho que era eu. Havia um tom de serenidade tomando conta de uma mente adjetivada no sentido mais figurado possível e, por Deus!, olha só de quem era essa mente — da Samantha Joy Puckett que alguns parágrafos atrás disse que estava, claramente, sem cabeça pra metáforas.

Maldita madrugada e maldita felicidade inexplicável... Eu tinha ouvido em algum lugar que toda angústia começa com um tipo de alegria, uns dias atrás. Ouvido; não lido.

Mas eu não poderia voltar à madrugada anterior sem dizer o que tinha mudado depois do beijo naquela escada, dos sorrisos, dos malditos momentos felizes. E, definitivamente, muita coisa aconteceu depois do beijo na escada. Infelizmente, não aconteceu o que eu queria ou, quem sabe, o que ele queria. Aconteceu que brigamos mais uma vez e, pra ser sincera, pouco mais de uma vez.

Por quê? Porque eu ainda sabia de tudo pela metade, ainda sabia de tudo ao contrário. Ele tinha me omitido uma grande parte da história dele e eu sabia disso.

Claro, havia mais de uma conversa pendente. Conversas que não tinham a ver com Paul, com Derick, com o meu trauma, com o sequestro.

Eu ainda precisava saber sobre a Carly. Eu sentia que se eu descobrisse sobre ela, descobriria o resto, e daria um largo passo.

O problema todo é que Freddie não queria falar de Carly e eu sabia que ele estava mentindo quando dizia que nunca a tinha visto ou conhecido. Eu tinha toda a certeza do mundo quanto a isso: ele estava mentindo. Estava mentindo mesmo.

Estava mentindo pra mim.

Olhei pros meus pés de relance e vi as unhas crescidas que mereciam ser cortadas, mas parei de prestar atenção nelas quando voltei a prestar atenção nele, quer dizer, pensar na briga ridícula que eu tinha começado alguns minutos antes.

O dia em que ele me contaria uma partezinha da verdade, quem sabe.

— Não parece o mesmo — eu disse.

— O que está dizendo? — Seu olhar viajava, completamente disperso pela sala do apartamento.

Nessa altura, claro, já estávamos no apartamento de novo.

— Você, Fredward. Não parece o mesmo. — Eu fiz ele olhar pra mim. Com palavras.

— O que quer dizer?

— Segundos atrás você estava me dando motivos pra te perdoar e agora faz isso. Sabia que isso estraga tudo?

— Seja mais objetiva, por favor — ele ironizou. Mas eu não me lembro de ter dado motivos pra ironia.

— Olha só, pianista, eu sei que você está mentindo sobre a Carly. Sei que se conheceram e que você não quer me contar por alguma razão que eu desconheço! — Olhei pra ele e vi seus lábios torcidos. Dessa vez os olhos também me encaravam estranhamente. — É sua última chance de acabar com isso.

Ele andou em círculos, respirou pesadamente, me encarou duas ou três vezes, hesitou, chegou mais perto e, de repente, me surpreendeu com a resposta:

— É verdade — ele murmurou baixo, mas eu escutei. — Eu e ela... não sei, acho que posso dizer que nos conhecemos. Mas isso faz tanto tempo que eu pensei que...

— Pensou o quê? — eu fui mais rápida que ele. Minha voz soava bem mas eu não me sentia bem de verdade por dentro.

Aquilo dentro de mim se chamava insegurança.

— Eu pensei que ficaria tudo bem se eu, por acaso, fingisse que nada tinha acontecido. — Ele pensou mesmo que eu iria falar alguma coisa depois daquilo, ou interromper o dicurso, mas eu fiquei ali, calada. — É sério, Sam. Eu não pensava que era tão necessário.

Era a minha vez de hesitar.

— E como foi que vocês se conheceram? — tive coragem de perguntar, depois de uns segundos.

— Eu comecei a pensar que precisava ganhar o meu próprio dinheiro, sabe, desde quando tinha uns treze anos. Foi quando eu tinha quinze que resolvi me dedicar profissonalmente à música, e tudo tinha dado certo. Nessa época eu ainda cursava o ensino médio naquela escola do orfanato e, nas horas vagas, eu pedia permissão pra sair e trabalhar.

— E você a conheceu enquanto ia trabalhar, é? Por que não chega logo no ponto?! — Odiava toda aquela enrolação dele.

— Não, não foi isso, Sam. Me convidaram pra tocar numa cerimônia. Eu pensei que fosse tocar num casamento, num baile, na inauguração de um restaurante ou outra coisa... mas era uma cerimônia um pouco diferente.

— Como assim?

— Eu ia tocar num velório. — Nesse momento ele pareceu olhar pro teto e lembrar exatamente do dia em que tocou profissionalmente num lugar pela primeira vez. — Eu acho que, inclusive, aquele era o velório do avô de Carly.

O silêncio falou por mim. Eu realmente não estava acreditando, mas também não estava desacreditando.

— Eu não sabia sequer o primeiro nome dela, só a vi chorar perto daquele cadáver. Era na cidade onde morava antes — falou, como se explicasse. — E eu, enquanto tocava, ficava reparando nas emoções que ela passou a mostrar naquela hora. Eu sabia que algumas expressões tinham a ver com a música.

— Foi por isso que nunca se esqueceu? — Fiquei com medo, mais uma vez, do que ele poderia responder. Ele não se deu o trabalho, inicialmente. — Foi por isso que nunca se esqueceu dela?

— Eu fiquei surpreso quando ouvi o nome "Carly", mas, de certa forma, eu realmente sabia que se chamava assim. Acho que ouvi dizerem no velório — suas palavras se misturavam.

— Você não me respondeu do jeito que eu queria. — Eu não olhei nos olhos dele e sempre soube que, se fizesse, me sentiria ainda pior.

Eu realmente esperava um silêncio contínuo, redundante e pesado. Bem pesado.

— Não, Sam, não foi por isso. Eu nunca gostei dela. Eu não me senti atraído por ela e, não, eu nunca fui apaixonado pela Carly. Nem tive pena, quer dizer, não até o estupro.

— Então você... lembrou dela por acidente? Realmente não queria se lembrar? Foi algo automático? Não era a intenção? — indaguei tudo ao mesmo tempo, e minha respiração quase falhou por alguns instantes.

Era simples. Eu realmente estava imaginando coisas, talvez.

E eu senti vontade de beijá-lo de novo porque estávamos mais próximos. E tive que me controlar, claro — havia muito mais conversas pendentes. Muito mais. Essa era só a primeira. Era só de manhã.

E grudei meus lábios nos lábios dele.

Acho que eu aprendi a perdoar.

A tarde passou voando e eu tive que contar meus segredos enquanto ele contava os dele, porque foi assim que combinamos. Foi assim no pôr do sol e no início da noite.

E, finalmente, a madrugada chegou. Eu tinha escovado meus cabelos e ainda assim estavam bagunçados. Ficamos horas e horas decidindo nossas vidas até decidirmos qual filme assistir, mas eu acabei ficando com a decisão final. Eu nunca, nunca e nunca assistiria um filme de tecnologia, ou coisas nerds que nem o Freddie gostava de assistir, ou de pianos e de coisas desse tipo. E eu passei a evitar os filmes de terror, mas eu assistiria um bom filme de terror com ele. É diferente de assistir um bom filme de terror sozinha.

Então, a decisão foi tomada do meu jeito e assistimos um bom filme de terror — "bom" não implica na qualidade do filme, por incrível que pareça. Era meia-noite. Não muito tarde, não muito cedo. Só meia-noite.

Eu olhava pra janela e a noite era nada além da janela. Nada além de uma visão através do vidro. E o luar era unicamente o luar sombrio e reluzente — claro, sem causar danos aos céus. Era ainda o luar que me pregava peças e o que retratava perfeitamente um dos momentos menos piores entre o pianista e eu. Eu e o pianista.

O filme era daqueles idiotas de casas assombradas e era inspirado em fatos reais. Realmente. Quando eu olhei pra casa assombrada do filme eu vi toda a estrutura, a decoração, as mobílias, a fachada, o jardim, a fonte, a paisagem... e me lembrei da casa que me fazia ter pesadelos desde os meus cinco anos de idade. Da época dos natais felizes que se tornaram os natais mais tristes. Lembrei-me de quando morrer quase significava matar.

Mas não significava e eu não vou dizer por quê. Eu não vou explicar mais metáforas quando a minha vida já é uma.

Não agora, não nesse momento.

Eu pensei que se eu realmente posso assistir um filme de terror que me lembra incêndio, então eu poderia visitar a casa onde um incêndio aconteceu. Mas não sozinha. Eu iria visitar a casa com o meu pianista.

Em outras palavras, eu ia visitar a casa onde tinha perdido meus pais. A casa onde tinha torturado a mim mesma. A casa onde vivi sendo torturada por Grace.

A aurora, o alvorecer... Era nessa parte que eu estava?

A calçada, a rua. Os passos que chegavam cada vez mais perto dali.

Eu via as árvores e o canal se aproximando devagar; sentia Freddie segurar minha mão esquerda. Ele sabia que era difícil pra mim rever tudo aquilo e que seria difícil rever todos aqueles cômodos e olhar pras minhas feridas depois. Lembrar que foi dali que elas surgiram antes de tudo virar uma imensa cicatriz que ainda era a mesma dor por dentro, sem metáforas.

Uma parte de tudo aquilo tinha a ver com nós dois e eu não sabia por quê. E também não queria saber.

Um tudo misturado com nada que, naquele dia, não poderia ser metafórico.

Me virei para contemplar a casa e senti algumas lágrimas descerem pelas minhas bochechas. Não era como quando eu via o fogo, era diferente. Era simplesmente novo e era um novo diferente do novo que eu estava acostumada a experimentar, ou da aurora. Não era sereno, tampouco sombrio. Eu quase senti como se não existisse medo — o medo existia, só não acontecia.

Tudo em volta da casa era, na verdade, nada — por isso o nada cheio de tudo. Literalmente, era isso que acontecia. Minha memória era só saudade dos tempos de criança feliz que corria pelo jardim e fazia bagunça com as outras crianças. Acho que o trauma me fez lembrar da minha infância com precisão e não havia nada que eu não lembrasse dali. Os machucados de quando eu caía no terreno lamacento onde a maioria gostava de brincar, porque gostava de se sujar. Aqueles machucados que eram totalmente despropositais e inocentes. Depois, o choro que era livre de mágoa e completamente livre de insanidades.

Eu já tive uma infância normal, da qual me permiti lembrar naquele momento. A infância antes da depressão.

Mas aquilo era só a parte de fora: as árvores, os jardins, o canal. Ainda tinha a parte de dentro que não me trazia lembranças tão boas quanto aquelas.

O telhado velho e cinzento, a pintura descascando toda e completamente gasta. Fazia muito tempo desde a última visita até a grande casa e, eu tinha de admitir, estava acabada e poderia desmoronar acima de qualquer um que se atrevesse a adentrá-la — e, obviamente, eu me arriscaria. A coragem, mesmo que quase escassa, ainda estava lá por causa da madrugada anterior.

Tinha um caminho que dava acesso à porta, do qual eu me lembrava. Andamos, parei na frente dela.

A porta estava aberta, simplesmente aberta. Nada além de aberta.

Foi fácil empurrá-la e ir da varanda até o primeiro dos extensos cômodos. A sala, de aparência morta, exalava um cheiro de nada perfeito, soava como um nada também. Era daquele nada que as memórias vinham. Mais cruéis.

— Está tudo bem, Sam? Tem certeza de que deveríamos vir? — Freddie perguntou. Até ali não seria mentira dizer que eu ainda estava disposta a entrar. Até ali, não seria.

— Está tudo bem. — Segui a andar. A madeira gemia embaixo dos meus pés, estranhamente, e aquele foi o primeiro dos sons que eu ouvi dentro daquele lugar.

Os objetos estavam jogados e espalhados — pareciam até os do meu quarto. Mas havia diferença porque uma parte deles formava uma pilha não muito grande. Os vidros da janela, quebrados. O lustre que se movimentava com o vento atravessando os vidros quebrados da janela ameaçava cair. O teto era precário e as paredes, na mesma situação, eram cheias de rachaduras e de umidade.

O ar estava pesado e as lembranças persistiam em me invadir, dessa vez, numa sequência. Eu perdi o equilíbrio por causa da tontura, mas Freddie me segurou, e ficou tudo bem pra mim. Não ficou tudo bem pra ele.

— Sam, a gente tem que voltar. Isso não vai fazer bem pra você e... — a voz dele ecoava, espalhada pelos arredores da mansão.

— Freddie, eu realmente quero esquecer tudo que aconteceu, mas é impossível.

— Eu não devia ter aceitado vir — ele bufou. Vou admitir que me aliviava vê-lo preocupado comigo, mesmo que eu não desse razões pra isso.

Eu sabia: se ele estava comigo estava tudo bem. E estaria.

A sala, pra resumir, ainda tinha quase nada. Além de poeira e de mobília empoeirada, bagunçada, jogada e furtada. O resto era o ar empoeirado que também me fazia tossir. Os quadros e retratos das paredes já não faziam mais parte da decoração, porque tinham caído no chão. Quebrados, despedaçados, deixados de lado. Era quase totalmente vazio.

As lembranças eram cheias.


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Notas finais do capítulo

Digam sempre o que acham, isso ajuda muito. Realmente.