Fire & Desires escrita por Pear Phone


Capítulo 13
Shallow Heart


Notas iniciais do capítulo

Esse capítulo é menor em relação aos outros porque iria ficar muito grande se eu colocasse o resto, e por causa do suspense que eu achei devidamente necessário.
Ele é bem importante para o enredo. Espero que a maioria compreenda o verdadeiro sentido dessa organização misteriosa e enigmática, sempre lembrem-se de que podem sempre argumentar sobre o sentido figurado dos capítulos nos reviews. A tradução de "Shallow Heart" é como se fosse "Coração Superficial", e funciona como se ambos (enredo e título) se relacionassem.
Espero que me perdoem pela demora e que não desistam de acompanhar a fanfic, porque eu amo vocês.
Sobre o que eu disse da Carly no outro capítulo, quis dizer que a situação de saúde dela será omitida, e não ela mesma. Ou seja, grande parte do enredo ainda se relaciona com ela, de mesma forma que gira em torno de Sam e Freddie. A partir do capítulo seguinte acredito que todos consigam entender mais ou menos o propósito do que aconteceu até agora.
E, mais uma vez, amo vocês.



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Freddie se afastou e me olhou de um jeito estranho, como se alguma coisa tivesse deixado a desejar, e tal, e eu só continuei em silêncio apreciando o quanto aquele piano tão próximo de nós era realmente bonito. Mas o que estava acontecendo comigo?

Desviei meus pensamentos, ou melhor, minhas reflexões. Resolvi focar totalmente na realidade que eu estava vivendo naquele momento, mas eu realmente não via um porquê para tudo aquilo que estava pensando antes. Eu me pegava sendo facilmente induzida pela minha própria mente o tempo todo e não sabia de onde vinha essa tal força, senão do Universo.

— O que acha que vai acontecer com a Carly? — eu ousei perguntá-lo depois de uns segundos.

— Sei que está preocupada, mas vai ficar tudo bem. Eu prometo. — Ele sorriu e eu sorri de volta.

— Não perguntei se você acha que ela vai ficar bem, e sim, tipo, o que costumam fazer com as pessoas em manicômios. Eu já ouvi umas histórias horríveis da minha tia-avó sobre como é ruim ser tratado no meio de outros milhões de loucos, mesmo que seja tudo invenção daquela cabeça velha que mal funcionava. Fiquei pensando se isso pode ser realmente bom pra ela, quer dizer, se isso seria no mínimo eficiente para Carly.

— Achei precipitado. — Ele desviou o olhar. — Carly nunca foi louca e acho que nem isso tudo a faria ser, porque ela... — Me lembrei de que era bem provável que eles já se conhecessem antes, mas resolvi não interromper o que Freddie estava dizendo.

Deixei que ele continuasse, mas, para minha surpresa, ele mesmo parou de falar.

— O que você estava dizendo, Freddie?

— Quero dizer que ela não parece louca, na verdade ela parece exageradamente normal. Achei injusto isso tudo de hospício. Achei que foi... exagero?

Me dei conta de que ele mesmo tinha repreendido sua voz por ter ido longe demais a respeito da Carly. Isso tinha me deixado com muita raiva. Com muita raiva mesmo.

— Sei — disse e tentei não ser fria. Desviei o olhar e reprimi a vontade de gritar.

Ele tinha percebido tudo, porque geralmente ficava boa parte do tempo percebendo as coisas que eu fazia. Ele era tão atento e prestava tanta atenção no espaço em que estava que seria impossível enganá-lo, nem mesmo mentalmente. Argh!

— Preciso ir ao banheiro — ele disse. Eu assenti.

Eu mal sabia que tinha um banheiro ali dentro.

Ele saiu e, involuntariamente, me veio em mente de onde Carly poderia conhecê-lo.

Freddie tinha passado a vida toda, até ali, estudando numa escola que ficava dentro de um orfanato, pelo que eu sabia, que estava cheia de crianças que o julgavam por se comportar timidamente, mas que nunca o excluíram de nada por algo que envolvesse seus pais. Ele nunca tinha conhecido seus pais e quase ninguém dali tinha. Eram crianças como ele, desesperadas por amor, desesperadas por alguém que lhes desse atenção, mas que nunca discriminaram uma às outras pelo simples fato de não terem família. Elas eram todas iguais e tinham passado por altos e baixos que crianças normais não saberiam explicar. Elas eram todas unidas pelo mesmo laço que se rompeu, e nada mudaria isso. Elas desenvolveram a mágoa de viverem sempre sozinhas, mas nunca souberam o quanto dói ver bem de frente sua família indo por fogo abaixo. Eram só crianças inocentes, mas eu, não. Eu não era inocente. Eu sofri. Eu tinha sido deixada de lado por todo mundo. Eu frequentava uma escola onde crianças sorriam e tinham família. Mas eu não tinha nada a ver com aquilo.

Carly não era órfã, pelo contrário, ela sempre teve uma família ao seu lado. Ela tinha amigos, tinha uma vida no mínimo luxuosa na cidade grande e tudo que o pianista tinha me dito sobre ele não se encaixava nem um pouco com ela. Eles não podiam ter se conhecido numa escola ou se esbarrado no meio da calçada, então tinham se conhecido de outro jeito, e isso me deixava muito mais nervosa. Pensar que eles dois poderiam ter tido algum envolvimento não era bom, e pensar em como deveria ter acontecido... Era isso que piorava tudo.

Criei um monte de "porquês" que explicassem o estranho e odiado fato de ele se aproximar de mim só pra saber dela, e então ele voltou.

— Por que está me olhando assim? — Eu estava acompanhando seus passos e estranhei sua pergunta tão repentina.

— Porque... preciso saber a verdade.

— Que verdade?

— A verdade sobre a Carly.

— O que é que eu tenho a ver com a Carly?

— Você a conhecia? — disse e me arrependi depois, mas disse.

Ele deu umas voltas até decidir ficar parado. Fiquei com medo da resposta.

— Você ficou mais louca ou o quê? — ele respondeu com outra pergunta.

Gostaria que o Universo tivesse se conectado comigo de alguma forma para me dizer o que fazer, mas, infelizmente, naquela hora isso não aconteceu. Acho que me senti apenas eu mesma naquele momento, e despejei as palavras que vieram:

— Eu percebo como você fala dela... — eu comecei. Ele pareceu prestar mais atenção. — Como você... aparenta estar preocupado sem que isso tenha a ver com o meu sofrimento. Percebo que, no fundo, você esteve comigo naquela clíninca porque se importava com ela de algum jeito, e que brigamos no blecaute exatamente pelo motivo de você ainda se mostrar confiante em relação ao estado dela. Como você acabou de dizer que ela nunca seria dada como louca. Você me confunde tanto que... — Olhei para meus pés, de relance. E aí suspirei. — É como se você tivesse me contado toda a sua história pela metade.

E a outra metade parecia estar longe demais de mim. Como se ela nunca viesse a ser descoberta ou como se nada fizesse sentido. E era tudo incompleto, porque soava incompleto.

— Eu realmente não sei de onde você tira essas coisas. É sério. — Ele estava apenas tentando ser convincente. Apenas tentando.

— Freddie, você sabe disso. Sabe que não pode negar. Por que me diz tudo pela metade?

— O que mais quer que eu diga?

— De onde você tira dinheiro? — Ele pareceu paralisado com a minha pergunta.

— Eu sou um pianista e toco em alguns lugares, Sam. Sabe, eu sou remunerado por isso.

Ou não.

— Você diz tanto que eu devo confiar em você que eu não sei se devo. Na verdade, sempre soube que não devia. — Segui andando e senti quando ele veio atrás de mim e puxou meu braço, me virando contra minha própria vontade.

— Me solta — eu pedi, ou melhor, eu ordenei.

Então, lá estava ele, me soltando. Me senti obrigada a esperar que dirigisse uma sequer palavra a mim, e mais uma vez me arrependi.

— Eu nunca tive nada com a Carly — ele disse.

— Então vocês se conheciam?

— Não, Sam, nunca nos conhecemos antes do desaparecimento dela. — Freddie desviou o olhar.

O vento soprou mais forte e eu me permiti sentir sua corrente gélida.

— Eu não acredito.

[...]

Eu andei pela calçada fria com meus fones ligados, ouvia algum clássico cheio de metáforas e versos indecifráveis gritados de uma maneira sutil o bastante para que se tornasse enigmática. E o clima nunca esteve tão escuro, chuvoso, sombrio e cheio de tensão antes. O ar exalava melancolia e nunca esteve tão pesado e carregado antes, como as lágrimas salgadas de uma criança que cai enquanto brinca, sem visar ou entender as consequências. Mas o silêncio... O silêncio nunca doeu tanto. Porque não era o silêncio que falava ou o silêncio abnegado, ou sequer o silêncio vazio. Era o silêncio vago. O silêncio disperso além da estrada. O silêncio disperso além de mim.

Aquele era o silêncio sem resposta. Soava mais alto do que qualquer ruído.

Então eu olhei para cima e as nuvens tornavam o luar quase imperceptível enquanto meus sapatos faziam um barulho estranho ao se encontrarem com o chão, um som insistente e irritante, que me fazia olhá-los o tempo todo. A sola dos sapatos carregada de pedrinhas da calçada que grudavam ali, porque tudo estava molhado na cidade, depois do céu chorar. Eu murmurei um "pois é, Universo, você também chora" e sorri como se aquilo fizesse sentido, mas aí percebi que fazia pra mim. Minhas mãos cruzadas apertando de leve o casaco que eu usava, como se isso amenizasse o frio que estava fazendo, e minhas pernas apertadas no jeans querendo descansar. Eu fiz um esforço para que elas completassem o caminho e parei. Depois olhei pra trás...

Era a mesma estrada molhada me olhando de longe. Ela não tinha fugido de mim, mas eu tinha fugido dela.

E, logo que subi as escadas — no suor gelado das minhas pernas — aqueles dois dias passaram. Dois dias passaram como duas noites de sono: como nada. Como um apagão. Sem poesia, notas, dilemas, encrencas, sem nada além de quarenta e oito horas do mesmo silêncio da estrada. O mesmo silêncio vago.

Me levantei, passei a mão nos meus olhos numa tentativa de enxugá-los, me livrei das cobertas e de todos os travesseiros quentes e confortáveis, e meu pé descalço sofreu ao entrar em contato com o piso resfriado como gelo, chegando a queimar com um simples toque. Eu andei rápido até o banheiro e pisquei os olhos diante do meu próprio reflexo inchado e vulnerável só de contemplar. E o contemplei, até me sentir arrepiada pelo frio que seguia a queimar nos meus pés. Então fiquei de pé em cima do tapete e o espelho continuava me dando aquela visão dos infernos de alguém que tinha passado dois dias inteiros tomando uma quantidade exagerada de calmantes por hora sem que isso fosse necessário. Me permiti analisar cada parte que constituía meu rosto — das bochechas pálidas e redondas aos lábios secos que exalavam desamor. Passei a língua sobre eles e os molhei um pouco. Dois dias na rotina normal de frequentar o hospício da escola e de pentear meus cabelos desgrenhados em todas as manhãs.

Eu os penteei, me arrumei, me livrei das marcas de expressão ainda de frente àquele espelho e depois de alguns outros segundos estava pronta para mais um daqueles dias que, no início, eu ousei definir como um mero dia normal. Peguei minha mochila, guardei tudo lá dentro e coloquei nas costas bem rápido. Sorri forçadamente para a luz penetrando nas cortinas e corri para girar a maçaneta e sair do apartamento, mas no caminho tropecei num objeto e caí. Caí toda desajeitada e senti meu corpo ficar todo dolorido com o impacto. Meus olhos lacrimejaram e eu peguei impulso para levantar e ver qual era o grande obstáculo que me interrompia naquela medíocre manhã, com um sorriso ainda forçado e irônico no rosto.

Era um livro — eu ri gostosamente. "Um livro", eu murmurei para mim mesma.

Era um daqueles livros idiotas e sem sentido da Carly cheio de poesias que, por sinal, ela não tinha levado na tal fuga. Droga de livro.

Observei a capa e o título e resolvi ler as notas inicias do autor, porque já estava sendo irônica mesmo. Passaram, dali, uns dois minutos. Depois só passei os olhos rapidamente e virei as páginas num movimento repentino antes de lançá-lo no chão, onde eu havia o encontrado e onde o encontraria da próxima vez. Mas com isso vi um bilhete dobrado sair de dentro dele.


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